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“Penso um dia trabalhar em Vila Franca de Xira”

“Penso um dia trabalhar em Vila Franca de Xira”

Actriz Maria João Luís assume-se como “típica ribatejana”

Cresceu entre Alhandra e Vila Franca de Xira. Foi no grupo de teatro “Esteiros” que começou na arte de representar, quando ainda era uma adolescente. Hoje, com 46 anos, Maria João Luís é uma das actrizes mais conceituadas e respeitadas da cena teatral e televisiva portuguesa. Assume-se como “típica ribatejana” e diz que Vila Franca de Xira está a perder “vida e identidade”. Considera que as autarquias têm um papel fundamental na criação de projectos culturais e afirma que “um país sem cultura é um país miserável”. Pensa trabalhar na sua terra.

Considera-se ribatejana?Incondicionalmente. Estou sempre a dizer isso. E sou a típica ribatejana. Defendo sempre os amigos. Sou capaz de bater a alguém que ofenda um amigo. Depois, se for preciso, também bato no meu amigo. Este é o espírito ribatejano. Pelo menos era assim. Espero que ainda continue.Que recordações guarda da sua infância?Não tenho muitas memórias desse tempo. Mas recordo-me de fazer a estrada por baixo da ponte para vir até à vila (Alhandra) e de andar muito tempo a pé. Brincava com os carrinhos de rolamentos na rua e esfolava os joelhos. Hoje isso já não é possível. As crianças têm a porcaria das consolas, playstations, telemóveis e computadores. Acabam, muitas vezes, por não ter a infância que deveriam ter. Lembro-me também que da minha casa se via o “boneco” – monumento a Hércules colocado no alto de Alhandra – onde se realizavam piqueniques. Mas guardo mais recordações depois dos dez anos.Tinha precisamente essa idade quando foi o 25 de Abril. Foi marcante essa época?Realmente aquilo marcou. Alhandra vibrou de uma forma especial. Era uma terra de gente vermelha, de esquerda e lutadora. Não só por ter pessoas do partido comunista – que eram muitos e que ainda hoje devem ser – mas também porque era uma vila onde havia muitos operários e a luta era muito forte. Alhandra saiu em peso à rua. Todas as pessoas a abraçarem-se. Uma explosão de alegria. De um dia para o outro tudo mudou e lembro-me de ver o meu pai muito feliz. Mas há outra recordação que está bem clara na minha cabeça (sorrisos). Um dia cheguei à escola e a professora virou o quadro do Salazar ao contrário. A seguir agarrou em nós e muito contente saiu da sala de aulas e foi a pé deixar-nos a casa, um a um. Depois entra para o grupo de teatro Esteiros…A partir daí nasce um interesse enorme em fazer coisas. A possibilidade de poder experimentar. De se fazer o que se quisesse porque era de liberdade que se falava. Penso que, na mesma altura em que entrei para os Esteiros, também aprendi a tocar bateria numa banda de rock de Alhandra. Os Piso Liso. Ficaram sem baterista e como conhecia alguns dos elementos e o meu pai também tinha tocado bateria numa outra banda, experimentei. Consegui fazer alguns ritmos e entrei para o grupo. Editaram uma música muito conhecida que se chamava: “Bomba nuclear não. Obrigado”. (sorrisos).Como foi a passagem pelo grupo de teatro?Foi nos Esteiros que dei os primeiros passos no teatro. Era ainda uma adolescente. Na altura do Mário Rui (encenador). Gostei imenso da experiência. Tenho uma memória muito agradável dessa altura. Mais tarde comecei a estudar em Vila Franca de Xira, onde conhecia pessoas que também faziam teatro. Tínhamos quase todos a mesma idade. Chegámos a apresentar uma peça num festival de teatro amador, que recebeu um louvor. Chamava-se “A Janela”. Um texto escrito por mim e sem direcção de actores. Foi no campo que imaginou muitos dos seus papéis?A minha família reunia-se aos fins-de-semana e fazia um grande almoço. Juntávamo-nos no campo, na casa do meu tio José Alves em Vila Franca, ou então de outro tio meu do Carregado, que tinha muitas vinhas. Os meus primos eram quase todos rapazes e como não brincava ao mesmo que eles, ia passear sozinha. Os filmes que eu fiz, as coisas que imaginei e as personagens que criei, era sempre uma aventura. Deitava-me no chão entre as vinhas e ficava a olhar para o céu. Lembro-me da sensação de estar tudo certo. De fazer parte da natureza. Um momento de perfeita harmonia. Sente a falta do campo?Nunca vivi na cidade. Não consigo viver na cidade. Depois de sair de Alhandra procurei sempre espaços fora dos centros para viver. Se calhar à procura desse momento. O meu marido também gosta de viver assim. Somos felizes a viver isolados no campo. Há uma liberdade maior. Os miúdos podem fazer barulho à vontade e não precisamos de nos preocupar com o vizinho. Vivi durante alguns períodos na cidade. Mas não me consigo adaptar. Não sou feliz ali. Gosto de ir a Lisboa, mas não de viver lá.Nunca equacionou o regresso a Alhandra ou Vila Franca de Xira?Não, porque aquela zona está um pouco alterada. Já não é o que era. Não conheço muito bem a vida de Alhandra nem como estão as pessoas. Mas a sensação que tenho de Vila Franca de Xira é que está a perder vida e característica. Antigamente parecia Sevilha à noite. Era muito bonito e agradável. As pessoas vinham todas para a rua. Andavam, conversavam, estavam à porta dos cafés. Hoje em dia, até porque conheço pessoas que continuam a viver em Vila Franca, acho que a cidade está a perder essa identidade. Mas isso está a acontecer em todo o lado.As pessoas estão cada vez mais distantes umas das outras?Acho que sim. E há sobretudo uma grande desconfiança. As pessoas desconfiam mais umas das outras. Nessa altura também havia desconfiança porque faz parte do ser humano. Mas as pessoas gostavam sinceramente umas das outras. Lembro-me que em Vila Franca de Xira havia as figuras típicas à porta do café que toda a gente adorava e gostava de brincar. O simples andar na rua era uma coisa muito simpática e agradável. Como olha para a cidade agora?Sinto que está diferente. Deve ter evoluído bem a muitos níveis. Mas custa-me, por exemplo, ver o que aconteceu na rua principal (Rua Alves Redol) que tinha alguma graça. Perdeu-se a traça original com todas aquelas construções modernistas que lá fizeram. É preciso ter cuidado com isso. Não estragarem mais porque a terra é bonita e deve-se manter a identidade dos sítios, assim como as boas tradições.Tem saudades dessas tradições?Muitas saudades. Das esperas de toiros, das corridas e do Colete Encarnado. Da vida e dos cafés que Vila Franca de Xira tinha. Íamos almoçar ao “Sevilha” e lembro-me do “Regional”, do “Tareco”, do “Maioral” ou do café “Colmeia”.“Espero que em Vila Francae Alhandra se façam projectos culturais”Como olha para a cultura em Alhandra e Vila Franca de Xira?Sou franca. Estou um pouco afastada da realidade cultural de Alhandra e Vila Franca de Xira. Mas lembro-me que havia gente empenhada em fazer coisas. Juntávamo-nos todos nos cafés para conversar, discutir e criar projectos. Isso havia todos os dias. Era muito bom e contribuía para o conhecimento.Conhece a actual presidente da câmara? Que opinião tem?Sim. Penso que estive duas vezes com ela. Está a tentar defender-se e a defender muitas coisas. Mas acredito também que haja muitas outras que não estão sequer ao alcance da boa vontade que ela tenha para as poder resolver. Por muito que queira o novelo está de tal forma enrolado que não deve haver volta a dar. Como assim?Nunca consigo perceber se gosto ou não dos políticos. Muito sinceramente ouve-se e fala-se tanto que começamos a ter algumas dúvidas sobre a forma como as coisas são geridas. E isso é que é triste. O processo que envolve as câmaras e os negócios das autarquias é tão complexo e difícil. Mas esse também não é o meu departamento.João de Carvalho tem pulso para criar um projecto cultural para Vila Franca?Sou amiga do João e desejo-lhe as maiores felicidades. É inegável que é um homem da cultura e do teatro. Agora como é que vai ser, vamos ver (sorrisos). Espero que ele tenha mesmo força. Porque apresentou o projecto da companhia de teatro em Ponte de Sor e não no concelho?A ideia era desenvolver um projecto que estivesse realmente afastado dos grandes centros. Num local onde não houvesse nada a acontecer dentro da área para poder oferecer algo de novo à população. Depois, que tivesse estruturas que nos permitissem trabalhar com qualidade e capacidade para poder receber uma companhia de teatro. Também era importante ter um local onde as pessoas pudessem ficar. A câmara cedeu-nos as residências. Tudo isso permitiu o projecto. O presidente Taveira Pinto é um homem com uma visão cultural interessante. Aqui há uma grande dinâmica a nível cultural e desportivo. Acha que as pessoas dos meios rurais são mais dedicadas do que as da cidade?Não. Em Lisboa também há vontade e as pessoas organizam-se e fazem projectos, felizmente. É assim por todo o lado. Espero que em Vila Franca de Xira e em Alhandra se continue a fazer. Então o que tem Ponte de Sor que as áreas metropolitanas não têm?Fundamentalmente é preciso haver vontade política. Este presidente é um homem que não põe de parte a cultura das pessoas. Está interessado. Depois, e como a zona é muito bonita, pensamos em procurar residência aqui perto. Encontrámos uma casa linda na Ribeira das Vinhas e apaixonámo-nos de tal maneira que nos fez trocar a nossa casa perto de Torres Vedras. A nossa vontade de vir para aqui também pesou.Considera que as autarquias são decisivas na criação de projectos culturais?Evidentemente. A existência do “Teatro da Terra” só foi viável com o apoio económico da câmara. Tivemos um primeiro espectáculo – “A Casa de Bernarda Alba” – que já foi visto por 4 mil pessoas. Só em duas semanas estiveram na plateia cerca de dois mil espectadores. A Custódia Galego foi nomeada para melhor actriz pela Sociedade Portuguesa de Autores pelo papel que interpretou neste espectáculo. Tudo feito aqui.Nunca colocou a hipótese de vir a trabalhar em Vila Franca de Xira? É uma coisa que penso. É uma hipótese. Quem sabe daqui a uns anos. Agora estamos aqui a tentar levar este projecto por diante. Estou muito empenhada e contente pela forma como fomos recebidos por todos. É uma terra viva, as pessoas têm aderido e ajudam sem ninguém pedir nada. É um projecto que ainda não tem um ano mas que tem sido um verdadeiro sucesso com a plateia quase sempre cheia.Uma ribatejana sem medo que se emociona com facilidadeNasceu em Lisboa a 30 de Dezembro de 1963. Tinha apenas três meses quando os seus pais se mudaram para uma casa situada na estrada de A-dos-Loucos, freguesia de São João dos Montes. Aí ficou até aos 22 anos, tendo vivido a infância e a adolescência entre Alhandra e Vila Franca de Xira. Hoje, com 46 anos, Maria João Luís é uma das actrizes mais conceituadas e respeitadas do meio teatral e televisivo português.Nunca perdeu o contacto com a terra onde cresceu. Sempre que pode, assim como a sua mãe, visita Alhandra, onde mora a sua madrinha e os primos. Na estrada de Subserra vive uma das suas melhores amigas que ficou do tempo das brincadeiras de criança. Guarda a memória de algumas pessoas de “grande sensibilidade e inteligência” que muito lhe ensinaram.Fez o percurso escolar entre Alhandra e Vila Franca de Xira e começou na arte de representar no Grupo de Teatro Amadores Esteiros da Sociedade Euterpe Alhandrense. Quando largou amarras rumou até à capital e ingressou na Escola António Arroio a fim de fazer o curso de artes decorativas. A partir daí nunca mais parou. Passou pelos melhores teatros nacionais e participou em algumas das mais importantes peças levadas à cena. Em 2006 recebeu o prémio da Associação de Críticos de Teatro pelo desempenho notável em Stabat Mater, com encenação de Jorge Silva Melo.Na televisão fez parte de várias telenovelas e séries de ficção nacional. No cinema participou em diversos filmes e telefilmes. Em 2003 foi galardoada com o prémio de melhor actriz no Festival de curtas-metragens de Badajoz, pela sua representação no filme Crónica Feminina de Gonçalo Luz. Recorda que há cerca de dez anos foi homenageada pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, tendo recebido na ocasião das mãos da presidente, uma placa alusiva ao momento.Maria João Luís diz que fica contente quando recebe prémios mas garante que não é por eles que sobe ao palco. Auto-crítica, diz que tem a noção de quando uma representação corre bem ou mal. Assume que se emociona com facilidade e que “chora horrores”, cada vez com mais facilidade. Diz ser uma mulher sem medo mas admite que continua a sentir o nervoso miudinho sempre que pisa um palco. A actriz tem três filhos e há cerca de um ano, em conjunto com o seu marido, Pedro Domingos (técnico de luz) assumiu o projecto “Teatro da Terra” que ambos implantaram em Ponte de Sor distrito de Portalegre. Uma companhia de teatro que tem sido um verdadeiro sucesso. Em Junho próximo Maria João Luís participa em mais uma novela. “Um país sem cultura é um país miserável”Concorda com a ideia de que a cultura continua a ser o parente pobre?Basta ver as últimas eleições. Exceptuando talvez o Bloco de Esquerda, durante a campanha eleitoral, nenhum partido ou político falou em cultura. Isto é sintomático e não é inocente. Eles sabem do que falam. Aquilo é feito com cuidado e rigor. Se não abordaram a questão da cultura é porque esta não dá votos. Vivemos num país onde se eles falam de cultura perdem votos. Como é que isto se explica?! Tirando uma minoria, é um país praticamente sem cultura. Mas é o Portugal que temos. Infelizmente isto é uma caça aos votos.Os políticos não dão importância à cultura porque o povo português em si não é muito dedicado à cultura?Nem mais. Mas para se dar cultura a um povo é preciso investir. Pois só assim é que ele começa a querer cultura e a perceber que a cultura é uma coisa vital. Como comer. Um país sem cultura é um país miserável. Sem identidade. Não tem nada. O que poderia ser feito para alterar o estado das coisas?Tem de haver pessoas com coragem para dizer: ‘não senhor; isto tem de começar por algum lado’. Temos de investir na cultura para que isto possa mudar e possamos ter um país com pessoas abertas à cultura. Há que fazer rapidamente alguma coisa pela cultura deste país. Só para se ter uma ideia, penso que para a zona toda do Alto Alentejo, o montante do ministério da cultura para apoiar cinco estruturas, por um ano, é de 80 mil euros. Mas andamos a brincar?!Acha que algum dia essa mentalidade vai mudar?Pode mudar, desde que queiram. Mas nos tempos mais próximos acredito que não se avizinham nada favoráveis.
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