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“Se não vem o 25 de Abril tinha-me esquecido de viver”

“Se não vem o 25 de Abril tinha-me esquecido de viver”

Manuel Pato, um dos construtores que mais casas ergueu no Cartaxo

Manuel Pato tem 86 anos e é um dos construtores que mais casas ergueu no Cartaxo. Fez o exame da quarta classe com distinção, mas as dificuldades de uma família com nove filhos empurraram-no cedo para o trabalho. Aos 11 anos já era servente. Nunca mais parou. De tal forma que até se esqueceu de viver. Construiu igrejas, prédios e moradias. Recordações de dias de trabalho na obra e de noites em claro a passar projectos a papel vegetal. Ana Santiago

Mora no Cartaxo há muitos anos, mas foi em Pernes que nasceu. Sou de uma família que criou nove filhos. Pessoas muito modestas. Aos dez anos fiz exame da quarta classe e fui aprovado com distinção. Assim que acabei a instrução primária fui trabalhar. Um dia ia a passar numa carroça e diz um homem que era pedreiro para o meu pai: “Oh Zé, manda pr’a cá o teu Manel, homem!”. Serventia. Comecei a trabalhar aos 11 anos. Só conheci um patrão. Nunca mais parei. Aos treze anos ganhava apenas menos um escudo que os homens. Foi uma infância de trabalho.A minha mãe cozia pão em casa duas vezes por semana. Aos oito anos, quando já fazia alguma coisa lá em casa, cheguei a chamá-la às duas horas da manhã para fazer o pão para o meu pai levar para o trabalho. Também cheguei a chamar o meu pai para irmos cavar. Isto de Verão. Quase não tínhamos tempo de estar na cama. Aos 16 anos decidiu então ir para Lisboa.Tinha lá um tio. Era empregado do Porto de Lisboa. Desafiou-me a ir. Foi em 1939. Havia uma crise muito grande. Foi depois da Guerra Civil de Espanha. Foi um caso sério para arranjar trabalho… O meu tio era solteiro. Vivia num sótão. Era lá que dormíamos, na rua do Machadinho, na Madragoa. Ao domingo não se trabalhava. Ia com ele à Praça da Ribeira Nova comprar o almoço. Para perder menos tempo e dar uma volta ao domingo comprávamos bifes de cavalo. Nunca mais me esqueço disto. Fazíamos aquilo num instante. E o que queria fazer em Lisboa?Esse meu tio tinha uma boa ideia. Ver se me arranjava em Lisboa lugar para ajudante de hotel para depois embarcar nesses barcos grandes onde se ganhava muito dinheiro como cozinheiro. Embora não me agradasse muito a parte da culinária… Eu ia todos os dias de manhã a uma casa no Rossio saber se tinham alguma coisa. O porteiro estava encarregado de me arranjar uma vaga quando houvesse. Lá estava eu todos os dias às 10h00. Era a hora a que ele me podia atender. Nas horas vagas estava na taberna. Vendia uns copos de vinho e uns quilos de carvão. Nunca estive parado.Acabou por não se tornar cozinheiro.Um dia disse ao meu tio que não gostava dessa ideia de serviço de cozinheiro. Expliquei-lhe que não queria contrariá-lo, mas ao fim de um mês e picos ainda não tinha trabalho. Disse-lhe que já estava habituado ao serviço de taberna e carvoaria e que não me importava de ir para carvoeiro. “Vais agora para carvoeiro…”, respondeu-me. Disse-lhe mais meia dúzia de vezes até que ele acedeu. Fui para casa de um galego. Com uma condição, impôs o meu tio, de que saísse às 19h00 porque ia ser matriculado na Escola Fonseca Benevides, para tirar o curso industrial. Assim foi. Estive lá dois anos. No terceiro já tinha que escolher a especialidade a seguir. Matriculei-me na Machado Castro para tirar o curso de mestre-de-obras. Tirei lá o terceiro, quarto e quinto ano. Tanto que trabalhei. De dia e de noite. Tanto que andei a pé.Trabalhou e estudou?Tinha que trabalhar de noite e de dia. Fazia um jantar um pouco mais avantajado para no outro dia levar para o almoço. Tinha um fogareiro a petróleo. Era assim que fazia as minhas refeições. Nessa altura já não estava com o meu tio. Quando saí da casa da Rua do Machadinho arranjei um quarto. Andei a trabalhar no Alto de São João. Quando tinha aulas às 19h00 ia a pé do Alto de São João para Campo de Ourique, onde era a Machado Castro. Chegava a ter aulas até às 23h00.E teve pena de não seguir os estudos?Quando acabei o curso já andava a trabalhar numa obra de um colega que se formou aos 43 anos. Decidi matricular-me para tirar o curso de engenheiro, mas disseram-me que só funcionava de dia. E eu de dia tinha que trabalhar para viver. Tive que desistir. Continuei a trabalhar nas obras. Às tantas oferecem-me uma percentagem de lucro. Fiz uma obra nos caminhos-de-ferro e outra no Rossio com uma percentagem de dez por cento.E o trabalho era muito exigente fisicamente.Tinha muita agilidade a trabalhar. Aos 20 anos já tomava conta de 22 carpinteiros numa obra. Fiz essa obra em 15 dias. E o homem tinha um contrato para fazer aquilo em 30 dias. No fim não deu o dinheiro que se pensou. Chateei-me. Saí. Comecei a trabalhar por minha conta e já andava a fazer umas obras de um senhor que negociava muitos prédios antigos. A maior parte não tinha casa de banho. Ele remodelava-os e aumentava as rendas. Esse senhor ganhou muito dinheiro assim. Arranjou-me trabalho. Lá aprendi um pouco aquela agilidade. Fiz uma obra de remodelação de um segundo andar sem casas de banho. A pia de despejo era no vão de escada. Nunca tive muita sorte a ganhar dinheiro, mas dava para viver. Eu fazia um esforço tremendo. Nem sabia o que era viver.E como veio parar ao Cartaxo?Em 1960. Antes ainda fui convidado para fazer um hospital em Albergaria-a-Velha. Depois é que comecei a agir nesta zona. Casei, já com o curso feito, mas economicamente sem nada. O meu sogro tinha feito uma casa que tinha dado de empreitada a um homem e viemos para cá. Quando fui para Albergaria-a-Velha cheguei a partir de lá de comboio às duas da manhã e chegava ao Setil às cinco da manhã. E cheguei a vir do Setil a pé para o Cartaxo. Tinha casado há pouco tempo. Foi quando começou a trabalhar de noite e de dia.Quando vim para o Cartaxo a câmara não tinha técnico nenhum. Inscrevi-me como número um. Eu é que fazia os projectos de todas as obras. Noites perdidas. A cozinha desta casa chegou a ser o quarto onde fazia desenhos. Na altura eles exigiam o desenho a papel vegetal. Fazia o esboço, mas quando era preciso passá-lo a limpo passava a noite a trabalhar. Caso contrário o papel vegetal ficava engelhado e já não servia. Tantas noites que eu perdi. Tantas. Quem me fazia companhia era um passarinho que andava ali à solta. Um pintassilgo…O menino trabalhador estudanteSabe de cor as ruas de Lisboa. Relembra os nomes dos homens com quem se cruzou na taberna, na carvoaria e da casa onde ia procurar emprego como cozinheiro todos os dias, às dez da manhã em ponto. Lisboa dos tempos de um menino nascido em Pernes (Santarém), que rumou à capital com o tio, funcionário do Porto de Lisboa, com a esperança de encontrar um futuro melhor. Tirou o curso de mestre-de-obras a trabalhar. Falhou o de engenharia que só funcionava de dia. De dia precisava de trabalhar para sobreviver. Morou no nº 144 da Avenida D. Carlos até casar. A esposa era do Cadaval. Conheceu-a na terra onde o tio tinha uma farmácia.Nasceu a 29 de Agosto de 1923, em Pernes. Completou a quarta classe e na escola era o aluno escolhido para olhar pelos outros e perguntar a tabuada aos colegas de carteira. É uma irmã que vive actualmente no casal de Pernes, onde os pais criaram os nove filhos. A mãe era viúva quando casou com o pai. Já tinha um filho. É o mais velho do segundo casamento. Chegou ao Cartaxo em 1960. Passou pela organização da festa do campino e ajudou a angariar dinheiro para a Santa Casa da Misericórdia e jardim-de-infância. No dia em que amputaram a perna à esposa afastou-se.Foi vereador do PSD na Câmara Municipal do Cartaxo quando o executivo decidiu comprar a Quinta das Pratas. A filha Luísa seguiu-lhe mais tarde os passos na política e ocupou idêntico cargo na autarquia. Manuel Pato deixou a construção há cerca de um ano. Tem entre 20 a 25 inquilinos. É proprietário, mas porque trabalhou toda a vida “de noite e de dia”.Como patrão orgulha-se de nunca ter tido um empregado que lhe pedisse aumento de ordenado. “Eu é que fazia o ordenado que eles mereciam. Tive sempre consideração por eles. Nunca quis ser mais do que eles”.Tem dois filhos, netos e uma lucidez invejável. Gosta de ver televisão, mas já não consegue ler jornais como antigamente. A visão está reduzida a menos de metade. Além disso só ouve de um ouvido. Um problema no joelho impede-o de movimentar-se.O 25 de Abril abriu-lhe os olhos. Foi pela primeira vez ao estrangeiro. Um ano antes da destruição das Torres Gémeas, nos Estados Unidos, Manuel Pato tinha estado lá de visita. Empreiteiro, construtor, fiscal e dono de obraComo é que olha para a evolução do Cartaxo em termos de construção?Acho que deram facilidades a mais em termos de crédito e o resultado está a ver-se agora. Por vezes as pessoas exageram. Mesmo em termos de construção?Exactamente. Repare que não há prédio no Cartaxo que se faça com dinheiro próprio. É tudo com dinheiros que vão buscar ao banco. Têm que pagar juros. A construção civil é muito bonita, mas é preciso saber. Numa obra, se há uma coisa que não se faz hoje leva o dobro do tempo amanhã. E isto é o suficiente para prejudicar a evolução e o lucro que uma obra pode ter. Eu fui sempre trabalhando. Sem dinheiro, mas felizmente nunca precisei dos bancos. Os donos das obras é que confiavam em mim e eu confiava neles. Era sempre chapa ganha chapa gasta.É uma área que está muito mal vista. Há aquela ideia de que os construtores só querem ganhar dinheiro.Pois há! Vê obras com 20 anos que estão praticamente para deitar abaixo. Eu tenho-as aí com 40 anos e ainda estão impecáveis. Há construção a mais na cidade?Presentemente, dá-me impressão disso. E talvez não haja mais porque as pessoas foram pedir dinheiro ao banco e agora têm que pagar os juros que são caros. E não têm quem lhes compre as casas nem têm quem as arrende.Antigamente arrendavam-se mais casas. Hoje em dia toda a gente quer comprar. O arrendamento pode ser a solução para prédios sem compradores?Eu tenho à volta de 20 ou 25 inquilinos e acho que pode não ser solução porque há inquilinos que não saem de lá. Algumas rendas actuais nem dão para a despesa. Como olha para algumas obras mais modernas, como o Centro Cultural do Cartaxo?Tudo tem o seu sítio e o seu local. Há determinada arquitectura que não se adapta. Dá-me impressão de que está um pouco deslocado. O Cartaxo nunca teve pessoas em condições para administrar isto. Fui vereador da câmara durante uns cinco anos. Depois zanguei-me. O senhor, que foi vereador, como é que acha que se devem conciliar os interesses das câmaras com os interesses dos construtores civis?É um bocado complicado. Não há ninguém que não tenha o seu compadrio, interesses nisto ou naquilo e o seu amigo. Dá-me impressão de que isto é comum.Disse que trabalhou tanto que até se esqueceu de viver. O mundo actual vai nesse sentido? Defende que as pessoas trabalhem a esse ritmo?A pessoa deve ser honesta e trabalhar sem estar dependente dos outros. As pessoas devem levar a sua vida sem prejudicar ninguém. Antigamente não havia subsídio de desemprego. Se verificarmos, há muita gente que tem saúde para trabalhar, mas não faz nada. Não faz por dar algum rendimento à sociedade. O senhor é um dos construtores com mais obra erguida no Cartaxo.Até ao 25 de Abril não havia quem tivesse tantos prédios como eu. Cons-truí mais de 100. Fora as vivendas. Considerava-me empreiteiro, construtor, fiscal da obra e dono da obra. Se você não percebesse nada de obras, eu tinha o dever de fazer aquilo como se fosse para mim. Hoje isso acontece?Talvez não tanto. Hoje a coisa está mais metida para o capitalismo.O ‘obreiro’ da Igreja de Aveiras de CimaUma torre com 27 metros de altura. Abóbadas ovais. Arco com 12 metros de vão, 11 metros de pé direito e sete ou oito trabalhadores. “Hoje faz-se betão armado. Naquele tempo os doze metros de vão eram feitos em tijolo. Tive que fazer aquilo tudo cá em baixo. Tanto que sofri nesse tempo. Sem ter possibilidade de ter material”, recorda Manuel Pato, o construtor civil do Cartaxo que foi responsável por erguer a Igreja de Aveiras de Cima.Foi tudo feito à mão. Sem máquinas. “Uma luta tremenda”. Os tempos não estavam para aventuras. Há ferramentas que podemos evitar, explica Manuel Pato que só teve betoneira quando fez as padarias em Azambuja. “A massa, por exemplo, tinha que ser feita à pazada aproveitando a mão-de-obra”.Construiu a Igreja de Aveiras de Cima depois de vir da obra de Albergaria-a-Velha.Já tinha feito vivendas particulares na zona. Conhecia dois elementos da comissão. Aceitou o ordenado e a percentagem. “Tanta vez que fui a pé do Cartaxo a Aveiras de Cima”. Ganhava 150 escudos por semana. “Uma vez cai uma pedra lá de cima que me ia arrumando”, recorda.A igreja levou ano e meio a ser cons-truída. As fundações, com cinco metros de fundo, foram feitas à mão. No local tinha existido um cemitério. Vinho misturado com água e carvão mal pesadoPouco depois de chegar a Lisboa, aos 16 anos, foi trabalhar durante um ano para a taberna e carvoeira de um galego com quem aprendeu os segredos do comércio “desonesto”, diz a brincar. “O comércio honesto toda a gente conhece. É comprar X por Y”.“Cheguei a ir à Rua Augusta levar carvão no saco. O saco de carvão era pesado com uma pedra com um quilo lá dentro que voltava à loja. Um quilo de carvão custava cinco ou seis tostões. Era o hábito da casa”, diz à distância de muitos anos com alguma graça.A mesma teoria se aplicava ao vinho. Um senhor que trabalhava na Carris ia sempre buscar um garrafão de cinco litros. “Julgava ele que era para não ser enganado. A gente tinha sempre uma garrafa de vinho preta debaixo do balcão. Em cada cinco litros de vinho era meio litro de água”. O que também não era muito, conclui.
“Se não vem o 25 de Abril tinha-me esquecido de viver”

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