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O senhor Armando do Café da Praça que fez e refez a vida sem nunca se lamentar

O senhor Armando do Café da Praça que fez e refez a vida sem nunca se lamentar

“As pessoas olhavam-nos de lado mas cedo descobriram que éramos pessoas de bem”

Esteve oito meses num campo de refugiados com a mulher e seis filhos menores e quando chegou a Portugal, fugido da guerra, meterem-no num autocarro e mandaram-no para a Chamusca, uma terra que nem o condutor sabia onde ficava. Ainda hoje guarda o dinheiro que trouxe consigo de Angola onde nasceu e viveu até aos 46 anos. Dinheiro criado pelo Estado Português mas que o Estado português nunca reconheceu para cambiar.

Armando Dias tinha 46 anos quando aterrou em Lisboa com a mulher e seis filhos menores. Era meia-noite e a família, proveniente de Angola, não teve oportunidade de ver nada da capital do Império que se desmembrava. “Deram-nos umas mantas e umas camisolas, permitiram que trocássemos angolares (moeda de Angola) por escudos mas apenas até 5 mil escudos (25 euros) e meteram-nos num autocarro com outras pessoas. O destino era a Chamusca. Nem o condutor sabia onde ficava aquela terra”. Estávamos em 1975. A descolonização não acabara com a guerra. Dera início a outras guerras. A família Dias vinha fugida. Angolanos que nunca tinham saído de Angola deixavam tudo o que tinham. A 11 de Novembro de 1975, três partidos declararam unilateralmente a independência do país, em três cidades diferentes. “Antes de conseguirmos vir para Portugal estivemos oito meses num campo de refugiados junto à fronteira com a África do Sul. Fomos para lá porque nos queriam matar. Já tinham morto um sobrinho meu. Felizmente os sul-africanos trataram de nós. Deram-nos de comer. Tínhamos assistência médica. Só não nos deixavam passar a fronteira”. No Café da Praça o ruído feito pelos poucos clientes entra pelo microfone do gravador e torna inaudíveis algumas palavras. Colheres fazem tilintar chávenas, homens discutem futebol, mulheres falam de tudo e de nada. O moinho de café pára no exacto momento em que Armando Dias, 81 anos de idade, conta que ainda tem em casa todo o dinheiro inútil que nunca lhe foi permitido cambiar. Portugal criara moeda própria para as colónias mas não reconhecia as notas que fazia circular por lá. “São mais de duzentos contos. Na altura tinha chegado e sobrado para eu refazer a vida aqui”. Não há revolta, nem desalento na voz. Um homem que é homem cerra os dentes às dificuldades e em vez de se lamuriar, trabalha para voltar à tona, sem nunca perder a dignidade e o orgulho próprio. É no Café da Praça do senhor Armando, agora comandado pelo filho Abel, que se inicia o dia de quem madruga na Chamusca. É no Café da Praça que acaba o dia dos noctívagos da festa da semana da Ascensão. Cinco e meia da manhã. Há mil e um ditados populares que exaltam o trabalho e quem trabalha. “Quando chegámos à Chamusca o motorista ainda andou uma data de tempo à procura da pensão para onde o IARN (Instituto de Apoio aos Retornados’’) nos tinha mandado. Estivemos 18 meses nessa pensão. Eu ia fazendo uns biscates para sobreviver. Depois fomos para o bairro das casas fabricadas. Eu meti-me a criar porcos mas tive azar porque apanharam uma doença e o veterinário teve que os mandar abater. Depois, pedi um empréstimo e comprei umas vacas. Aluguei um espaço e comecei a vender leite. Depois comecei também a vender bolos, até chegar a este café”. O jovem rebelde que foi à procura da sua própria vida aos 19 anosArmando Dias é filho de pai português e mãe angolana. Nasceu em Mariano Machado, próximo de Nova Lisboa, que agora se chama Huambo. “O meu pai era de Sátão, distrito de Viseu. Chamava-se Abel Dias. Fez parte do serviço militar em Angola e depois de desmobilizado voltou para lá. Para o Huambo. A minha mãe chamava-se Emília. Era mulata. Sou filho de pai branco e de mãe mulata. Eles não viveram muito tempo juntos. Naquela altura era assim. O meu pai era carpinteiro mas também montou uma cerâmica onde fabricávamos tijolos. Aos 19 anos fugi de casa e fui trabalhar para o Alto Cuíto, para o comércio. Ao fim de algum tempo montei o meu próprio negócio. Perdi-o por falta de experiência e voltei a trabalhar por conta de um patrão. Em Angola não faltava trabalho para quem queria trabalhar. Depois voltei a ter o meu negócio”. Quando me vim embora estávamos no Bailundo, Teixeira de Sousa. Tem o cabelo branco bem penteado para trás. Um sorriso franco. Veste uma camisa aos quadrados onde predomina o castanho. No bolso da camisa trás a carteira. Usa óculos. A meio da conversa chega a esposa, Maria José. “Não tenho razões de queixa das pessoas da Chamusca. Quando chegámos havia quem estranhasse a nossa presença e nos olhasse de lado mas a pouco e pouco foram-se habituando. Nunca criámos problemas. As pessoas perceberam que éramos pessoas de bem. Que não éramos bichos que tinham vindo da selva. Apesar de sermos de cor nunca sentimos qualquer tipo de racismo. Curiosamente isso só acontece agora, de vez em quando, com um dos meus netos. Ele às vezes anda triste. Diz que há outros miúdos que lhe chamam preto. Eu animo-o. Digo-lhe que vai passar”. O filho que está a tomar conta do café chama-se Abel, como o avô português de Sátão, já falecido, que nunca regressou a Portugal. Armando Dias fecha a conversa a falar do seu verdadeiro património. A minha mais nova é enfermeira. Chama-se Emília, como a minha mãe. Quando chegou a Portugal tinha 3 anos. O Hélio é polícia. Está em Lisboa. O António trabalha no ciclo preparatório. O Nelson vende queijos. Guarda para o fim a referência a Armando, o electricista. “Está há 15 anos em Angola. Trabalha em Luanda”. Ironias do destino. Angola exportou um Armando Dias para Portugal há 35 anos. Agora Portugal devolveu um Armando Dias a Angola. São as voltas que o mundo dá.
O senhor Armando do Café da Praça que fez e refez a vida sem nunca se lamentar

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