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Quando havia festa todos os homens iam ao barbeiro para cortar o cabelo e serem escanhoados

Quando havia festa todos os homens iam ao barbeiro para cortar o cabelo e serem escanhoados

João Lino vê passar os toiros à porta mas só vai à festa para cantar no rancho folclórico

É o último dos antigos barbeiros da Chamusca. Trabalha há 48 anos e não pára apesar de reformado. Noutros tempos era um bom imitador de Salazar.

Na Chamusca, quando havia festa, os barbeiros não tinham mãos a medir. “Toda a gente queria estar bem apresentada. Os homens iam todos cortar o cabelo e fazer a barba. Agora é tudo mais informal”, conta o barbeiro João Lino enquanto ensaboa cuidadosamente o rosto de um cliente. São 11 da manhã de uma quinta-feira, estamos a 15 dias do feriado da Ascensão. A velha cadeira da barbearia está reclinada. Há mais dois clientes à espera. João Lino já não usa o assentador de cabedal para afiar a navalha com que os vai escanhoando. A sida acabou com aquela operação. A navalha moderna tem uma ranhura onde encaixam lâminas descartáveis. Faz-se uma barba e deitam-se as lâminas fora. “Isto assim é muito melhor. Antigamente quando a navalha estava romba era um problema. O cliente até vinha atrás dela”.Estamos na última das barbearias tradicionais da Chamusca. João Lino começou lá como aprendiz do senhor Cegonho e após uma curta passagem por outro barbeiro, Artur Nogueira, regressou ao primeiro posto como patrão de si mesmo. “Foi na altura de eu ir à inspecção. Tinha 19 anos. Como não tinha peso não passei na inspecção. O meu pai comprou-me a barbearia porque o senhor Cegonho foi para França. Já aqui estou há 48 anos”. Vai a uma gaveta e mostra o equipamento antigo. Uma máquina pente zero manual, uma navalha com cabo de madrepérola, um assentador…A barbearia fica a algumas dezenas de metros da praça de toiros. Tem porta aberta para o troço da Estrada Nacional 118 que, dentro da vila ganha o nome de Rua Direita de S. Pedro. O barbeiro não se lembra de alguma vez ter cortado o cabelo a algum toureiro ilustre. “A Chamusca é terra de forcados. Aos forcados sim, corto cabelos e faço barbas. Mas nada de penteados especiais”. O ambiente taurino está presente na decoração. Para além do inevitável calendário com uma fotografia de uma raparigaça com generosas mamas ao léu, há quadros com pinturas de cenas de touradas. Noutros tempos o dia de maior trabalho era o sábado. “Fazia-se a barba à semana. Uma vez por semana ao sábado. O trabalhador do campo despegava mas só recebia lá para as dez ou onze horas da noite. Primeiro os patrões jantavam e só depois iam pagar aos desgraçados que tinham andado toda a semana a trabalhar. Eles recebiam, iam para a taberna comer uma bucha e beber um copo e só depois é que vinham para o sacana do barbeiro que tinha que aguentar aqui até de madrugada”, conta João Lino. “Naquele tempo a barba era 15 tostões. Barba e cabelo eram 3 escudos e cinquenta centavos. Agora a barba são 2 euros, cabelo 5 e barba e cabelo 7 euros”. Numa das paredes está um anúncio de uma funerária. “Morreu o dr. Fiado”. É uma brincadeira. O barbeiro esclarece. “É mentira. Não morreu. Ainda há quem fique a dever”. Numa gaiola um casal de canários. Um aviso a anunciar que dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador, não há cortes de cabelo nem de barbas para ninguém. “Noutros dias tudo bem. No 1º de Maio não. Por vezes venho aqui aos domingos se alguém me telefona. E às vezes os que me telefonam são os que têm mais tempo livre durante a semana”, diz a sorrir. O espelho é omnipresente. A decoração remete para as antigas barbearias. Lugares de convívio de homens. Ali mulher não entra. Nunca entrou. Mesmo a esposa do barbeiro que passa à porta duas vezes enquanto decorre a conversa, fica do lado de fora. É o marido que sai para falar com ela. Noutros tempos havia revistas pornográficas, a telefonia a válvulas meio roufenha, calendários com raparigas nuas em poses provocantes e o jornal A Bola. Aconteceram algumas modificações mas a filosofia mantém-se. João Lino lembra-se que tem no canto das revistas e jornais a edição da Playboy com nus da assistente do programa “Preço Certo” e arranja-se logo uma brincadeira. Fazem-se comparações jocosas entre a depilação da zona púbica da checa Lenka da Silva e a pele bem barbeada do cliente que está na cadeira. Terá sido o barbeiro da Chamusca a rapar a Lenkazinha? Soltam-se risos. O senhor que está na cadeira diz que a modelo fotografada já não é nova. Ele tem 82 anos. A assistente do apresentador Fernando Mendes, 35. “Mas vocês faziam um bom casal!”, diz alguém. O senhor que estava a ler A Bola sai. Foi à barbearia como quem vai à biblioteca. O cabelo já o tinha cortado no dia anterior. O único toque dissonante é dado pela televisão que está a um canto com o som muito alto. Os clientes estão de costas para ela mas podem espreitá-la através do espelho.João Lino começou a guardar gado mal saiu da escola. Deveria ter uns treze anos. Quando lhe perguntamos a idade não diz que tem 69. Com um sorriso, evita o número que se presta a dupla interpretação com conotação sexual. “Tenho 68 A”. Além de barbeiro é vocalista no Rancho Folclórico. “Sempre gostei de cantar. Já em miúdo ía com um amigo meu ali para o outeiro do cabeço cantar em cima das oliveiras. Canções do Fernando Farinha, do António Calvário. Era o que ouvíamos no aparelho”. Anos mais tarde continuava a cantar mas também fazia imitações. “Quando estava na paródia com a malta imitava o Salazar. E pelo meio até metia as falas dos locutores. ‘Acrescentou o senhor Presidente do Conselho”, recita numa voz radiofónica. Sobre a Ascensão diz que só lá vai para a actuação do rancho. Na Quinta-feira da Ascensão assiste, a partir de casa, à entrada de toiros. “Daqui vê-se melhor porque eles já vêm cansados e passam mais devagar”.
Quando havia festa todos os homens iam ao barbeiro para cortar o cabelo e serem escanhoados

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