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O pai da aguardente Rainha dos Joanicas

O pai da aguardente Rainha dos Joanicas

Luís Ramos foi considerado um dos melhores narizes nacionais

Já foi considerado um dos melhores narizes nacionais. Luís Ramos, 82 anos, é o pai da aguardente Rainha dos Joanicas. Os vinhos da marca - que acompanha há mais de meio século - têm a sua caligrafia no rótulo, mas a influência de Luís Ramos chega também ao interior das garrafas. Ana Santiago

É tarde de quarta-feira na taberna típica da Quinta das Pratas, no Cartaxo. Frente a uma garrafa de vinho Joanicas, Luís Ramos recorda a história de uma marca que acompanha há mais de meio século e que se confunde com a sua própria história. Havia um tempo em que toda a taberna do Cartaxo tinha vinho Joanicas. “Se soubesse que havia um bom vinho tinto ou branco só não o comprava se não pudesse”, explica o viticultor e armazenista Luís Ramos, 82 anos, que já foi considerado um dos melhores narizes nacionais. Os produtores de vinho, como os de Casal de Além, no vizinho concelho de Azambuja, tinham orgulho em vender ao Joanicas. “Ficavam com a certeza de que o vinho deles era bom”, explica. É senhor de uma casa de vinhos afamados e premiados, mas fala com especial orgulho da aguardente Rainha do Joanicas, que apadrinhou. Tudo começou com uma visita à feira de Bordéus (França) e provas de conhaques. A Junta Nacional do Vinho tinha a envelhecer várias aguardentes espalhadas nos diversos armazéns do país em cascos de carvalho. “Ouvia dizer isso. Fui à Junta perguntar se tinham dessas aguardentes para vender”. Visitou Santarém, Almeirim, Mealhada, Anadia, mas a aguardente que mais lhe agradou foi a do Bombarral. Foi aí que comprou dez caixas de um depósito de 100 mil litros que estava a mais de meio. “Quis registar a marca Rainha dos Joanicas porque entendia que era das Joanicas a melhor. Não porque fosse a rainha das aguardentes”, explica. A junta recusou o pedido. Depois de uma exposição ao presidente daquele organismo seguiu-se uma carta ao ministro da agricultura. “Medi um advogado contra a junta. Um grande risco meu porque era a própria junta que fiscalizava os armazenistas sobre qualidades de vinhos. Ganhámos a questão”, diz Luís Ramos que tinha conhecimento de que havia várias marcas com nomes pomposos, como visconde de Santar. “Tem sido uma luta toda a vida”, resume. Acabou por comprar quase toda a aguardente. Ainda hoje existem milhares de litros na adega. Vendeu-se muito em tempos, mas a certa altura o imposto aumentou e o preço da aguardente também subiu. “Esta aguardente, segundo me constou, era a aguardente que os funcionários da junta tinham direito a receber pelo Natal e pela Páscoa. Cinco litros cada um”, conta Luís Ramos que para ir buscar a aguardente mandou arranjar depósitos vidrados. Afinal tratava-se de um produto genuinamente português. A qualidade e preços dos vinhos da África do Sul, Austrália e América preocupam-no. “Provei uma vez um Cabernet Sauvignon do Chile de muita categoria e barato. Não vejo a possibilidade do vinho ir para a frente. É uma preocupação muito grande”. À mesa, como convidado das conversas da taberna, evento organizado pela Câmara Municipal do Cartaxo, Luís Ramos abre uma garrafa de vinho branco (14 graus), junta água gaseificada e saboreia moderadamente. Oferece azeitonas, que cortou em casa, para acompanhar o queijo e pão oferecidos pelo museu. A palavra Joanicas está escrita no rótulo com a caligrafia de Luís Ramos, mas a sua influência também se sente dentro da garrafa. Era Luís Ramos quem dava o último toque nos vinhos Joanicas. Espécie de enólogo. “Não tirei curso nenhum. Provava o vinho. Muitas vezes não estava bebível, mas tinha umas características que eu idealizava. Com o andar dos tempos e com o calor o vinho tornava-se espectacular”, explica Luís Ramos que garante que na maior parte das vezes não se enganava. “Aquilo batia certo. Às vezes com vinho de outro produtor, mais água, mais cor”. Em tempos diziam-lhe: ‘não somos obrigados a gostar daquilo que tu gostas’. Luís Ramos engolia. Mas depois provava que era mesmo como pensava. Uma infância de trabalho e um “yo-yo” Luís Ramos começou ainda menino a trabalhar no campo. Tirava as ervas das favas. “Uma vez ganhei um ‘yo-yo’. Foi a minha mãe que mo comprou. Custou dez tostões”. Era para a vinha do pai que ia trabalhar nas férias do Natal. A podar. “Era menos a jorna de um homem”, justifica. Chegou a cavar uma vinha inteira com o pai em dois dias e meio. Aprendeu todos os serviços da agricultura que ainda hoje pratica. Nas horas vagas ocupa-se do casal onde tem abóboras, nabos e alfaces a nascer. “Gosto de ter todas essas coisas semeadas por mim”.O menino foi depois estudar para o Colégio Marcelino Mesquita, no Cartaxo. Como não era o melhor aluno não teve direito a estudar de graça. Recorda como se fosse hoje o dia em que a mãe negociou o futuro do filho. “Tinha andado a apanhar azeitona e tinha um furúnculo no braço. Gostava de ir para o colégio, mas não havia possibilidades financeiras”, lembra com a voz embargada. Ficou decidido que a família só pagaria as mensalidades quando recebesse o dinheiro da venda do vinho. “Por vezes o Dr. Pires abria as portas das aulas e dizia: ‘os meninos fazem favor de dizerem aos vossos pais, aqueles que ainda não pagaram as mensalidades, que preciso de pagar aos senhores professores. Às vezes estava encolhido porque ainda não tinha pago. Mas outras vezes até já pagava adiantado. Uma vez o professor disse: ‘olhem, o pai deste menino já pagou o ano todo’. Fiquei todo inchado”.No primeiro ano pagou 100 escudos. A cada ano que passava a mensalidade aumentava vinte escudos, muito dinheiro à época. O pai ganhava por dia 30 escudos a ceifar. “Era um bom gadanheiro e tinha um grande ordenado. Os outros ganhavam dez”. Quando terminou o liceu foi trabalhar numa empresa de destilação de aguardentes, passou pelo Grémio da Lavoura e, por intermédio do tio, ainda se ocupou de funções de despachante. “Na altura do fim da guerra aviões militares americanos, que transportavam as tropas da América e que vinham de França, passavam pelo aeroporto. Durante muito tempo era acartar tropas, tropas, tropas”. Regressou mais tarde ao grémio. Trabalhava na dactilografia e correspondência. Depois da tropa concorreu à câmara municipal de onde saiu com licença ilimitada para a sociedade Joanicas, sociedade criada depois da morte do sogro, António Mendes que mais tarde averbou no bilhete de identidade o nome “Joanicas”. Luís Ramos ainda tem o estatuto de sócio-gerente com um quarto do capital da empresa, mas já não está no activo. Beber vinho por um canudoNo tempo em que o vinho do Cartaxo se vendia em Alfama e Poço do Bispo a viagem das cartolas com o líquido precioso até à grande urbe era uma verdadeira aventura. Para enfrentar a viagem havia necessidade de pregar umas chapas sobre os batoques para as cartolas não saltarem. Mas o peso alivia-se ligeiramente até à chegada à capital. “Se queriam beber uma pinguinha arranjavam um canudo de cana. Tiravam a rolha e chupavam nas cartolas pelo canudo de cana”. As gargalhadas soltam-se ao ouvir a história. “A primeira vez que vi isso fiquei admirado. Aprendi muitas coisas nesse tempo. E ainda continuo a aprender”, remata.
O pai da aguardente Rainha dos Joanicas

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