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Um açoriano no Ribatejo

Mário Portugal Leça Faria dedicou a sua vida ao saber

Nasceu em Ginetes, em São Miguel, nos Açores, num dos poucos pontos sem vista para o mar, mas está radicado em Benavente. A curiosidade fez-lhe desde cedo aguçar o engenho. Mário Portugal Leça Faria acompanhou o avô, médico na ilha, nas aventuras de auscultar doentes, jogar croquet e fazer fotografia. E de menino se fez apaixonado pelo conhecimento. Do Arsenal do Alfeite passou para a Raret de Salvaterra de Magos, mas foram várias as áreas do saber a que se dedicou. Ao radioamadorismo reservou um lugar especial. E usou as ondas de rádio para retirar a dor. As 400 páginas do livro “Engenhocando, uma vida, uma obra”, compilação de textos publicados no blog, são poucas para contar histórias de uma vida rica aos 82 anos. Ana Santiago

Vive em Benavente há muitos anos, mas é natural dos Açores.A minha mãe já nasceu em São Miguel [Açores], mas a minha avó é madeirense. Pertencia a uma família conceituada na altura em que a música juntava as pessoas. O meu avô foi exercer medicina para São Miguel. A minha avó tocava maravilhosamente. A minha mãe levou também uma juventude muito musical. Tinha muita alma para tocar. Aos 20 anos, um continental, que acabou por ficar a ser meu pai, embeiçou-se por ela. Era o sócio gerente da empresa nacional de máquinas e tinha ido a São Miguel em trabalho. O dono da fábrica propôs-lhe que fosse ao fim-de-semana conhecer uma das pessoas mais interessantes que havia em São Miguel: o meu avô. O meu pai foi recebido como um príncipe. Primeiro era um bem falante continental. Não que fosse um homem muito bonito. Mas para o açoriano de gema o sotaque continental é deslumbrante. Ficamos obcecados. Como era a sua terra?A terra onde nasci chama-se Ginetes. É das poucas terras em São Miguel que não tem o mar à vista. É um vale, depois tem uma montanha e só depois se encontra o mar. Para o ver tínhamos que andar três quilómetros até um sítio alto de onde se vê o Oceano Atlântico. Era tudo muito bonito. Aquela calmaria. Não havia automóveis. O primeiro carro que apareceu era o do meu avô que foi comprado pelo meu pai. Depois de ter visto as estradas que lá havia decidiu-se por um determinado tipo de carro. Barato, mas robusto para aguentar aqueles maus-tratos. É o único de cinco filhos nascido na ilha.Nasci em casa do meu avô por acaso. A minha mãe já tinha dois filhos no continente. O meu pai teve que ir aos Açores por causa das máquinas. E nasci na terra onde a minha mãe nasceu. Ele foi embora, mas a minha mãe não porque estava a tratar de mim. O meu pai acabou por voltar mais tarde. E nasceram mais duas irmãs. Mas continuou a viver com os avós.O meu avô tinha uma simpatia grande por mim. Parece que só tinha paciência para os meus disparates. Um terço do sótão era uma oficina de entretenimentos do meu avô com todas as ferramentas. Era nesse sótão que se carregavam os cartuchos para ele caçar. E onde se fazia fotografia. Era um gabinete pequenino onde estava tudo bem vedado à luz. O desejo que eu tinha de saber o que lá estava a fazer às escuras! Um dia viu-me ali por perto e deixou-me ir com ele. Devia ter os meus cinco ou seis anos. O que é certo é que aquilo me encantou. Mesmo nos bicos dos pés conseguia espreitar e ver aquela magia e o aparecimento das imagens dentro do banho. Fui sempre muito curioso. Frequentou a escola nos Açores.Quem me ensinou a ler e a escrever foi um professor que foi aos Açores de férias. Muito gordinho. Como eu era muito vivo e desavergonhado achava graça a espetar-lhe um dedo na barriga. Acabei por aprender a ler rapidamente, mas foi todo um trabalho à custa de puxões de orelhas. Ainda hoje penso que foi um disparate porque quando fui para a escola não ouvia o professor. Quanto a mim o aluno não deve mudar de professor. Há o som que o professor emana de si que o aluno agarra e que o ajuda a compreender melhor.Qual era a relação com o seu pai?Conheci-o com sete ou oito anos. A minha mãe deixou-me entregue à minha avó. Ela é que lá voltava de vez em quando. Eles já tinham muito para se orientar no continente. Por outro lado compreenderam que era o querubim nas mãos dos velhinhos. Depois o meu pai adoeceu. Foi numa altura muito má. Não havia cura para a tuberculose. O meu avô convidou o meu pai a ir para lá para estar ao pé da minha mãe e poder ser tratado. Foi aí que o conheci. Quando tinha 11 anos ele morreu.Como foi conhecê-lo aos oito anos?Foi uma situação muito aflitiva. Por um lado foi encantador saber quem era o meu pai. Por outro lado já estava muito apertado pelo meu avô e pela minha avó para ter muito cuidado por causa do contágio. Obrigaram-me a ter que fugir do meu pai. Só que o meu pai veio engraçar comigo também. E era eu que ia sempre que ele precisava de ajuda. Havia má informação sobre a forma como era feito o contágio e o meu pai não tinha cuidado. Cada vez que ia ajudá-lo mexia nas ferramentas dele e ele tossia para cima de mim. Vivíamos apavorados. Nunca lhe deu um abraço?Nunca lhe pude sequer dar um beijo nem um abraço. Mas há uma história da época da escola primária com graça. A 1 de Dezembro as escolas tinham que apresentar algumas histórias. Fiquei com umas estrofes sobre Portugal. Lá consegui empinar aquilo. O meu pai veio a saber e quis ouvir-me. Pediu-me para recitar. “Portugal, minha pátria estremecida, abre o teu coração”. Mandou-me logo parar. «Tu estás a descrever uma odisseia de Portugal». Sabia lá o que era odisseia. «Isto é uma coisa que tem que ser contada com grandiosidade». Repeti até ele ficar satisfeito, o que não era nada fácil. Primeiro porque falava açoriano e tinha a voz de uma criança. Repeti aquilo cinquenta vezes. Até que chegou o 1º de Dezembro. O meu pai, que não era pessoa disso, foi assistir. Entrei em cena como o meu pai me tinha ensinado. Dei um sainete tão grande que tive que repetir. A casa quase que vinha abaixo com palmas.O seu avô foi muito importante na sua vida.Foi o mais importante possível. Acompanhava-o em muitas viagens médicas.Nada que se parecesse com o meu pai, mas também por causa daquela impossibilidade porque senão gostaria imenso do meu pai. Quando se preparava para regressar ao continente, aos 16 anos, o seu avô morreu. Relata essa viagem em crónica.Aproveitei para descrever o encanto da viagem de barco e o que anda à volta dela e a surpresa que foi com a tempestade o navio chegar todo torto. O meu avô morreu e eu já não pude assistir ao enterro dele. Tinha estado a ler-lhe os títulos do jornal na véspera. A certa altura ele diz assim: «amanhã já não tens avô». Na realidade no dia seguinte ele tinha morrido. Quando a minha avó me chamou - eu tinha que apanhar a camioneta que ia passar muito cedo – contou-me logo que o avô tinha morrido. Quando saí estava deitado, com a mão em cima do rosto a sorrir. Ainda o beijei. A minha avó aguentou firmemente. Era uma pessoa muito especial. Tive que vir para a cidade para embarcar e a única coisa que trouxe foi a viola. Mas não podia tocar nem a queria ouvir tocar porque tinha deixado o meu avó morto.Entrevista completa em www.omirante.ptO neto de um médico que usou as ondas curtas da rádio para tirar a dorUma das suas crónicas chama-se um açoriano abandonado em Lisboa. Foi assim que sentiu a sua chegada ao continente?Não sei porquê mas nessa época não encontrei apoio em lado nenhum. Daí o abandono de que falo. A minha mãe não me podia prestar atenção. As minhas irmãs foram metidas num colégio de freiras. O meu irmão tinha as suas coisas e eu ficava abandonado. Hoje ouvimos falar em associações de açorianos que se ajudam, mas nessa época não se falava nisso. Por outro lado eu era um açoriano. Puro. Cem por cento. Com aquele “u das uvas”. E isso dava azo a que o continental me gozasse. Sentiu isso?Senti isso, mas arranjei maneira de me defender. Quando arranjei o emprego no Arsenal do Alfeite fui para a administração. Quando eu abria a boca toda a malta se metia comigo. «Eh, tu és mesmo açoriano!» Eu reparei que cá havia quem não falasse português. Cometiam erros e eu comecei a agarrá-los. Cá em Portugal há pessoas que dizem «eles hádem» ou o «há-des» em vez de «hás-de». E começo a arranjar várias dessas para me defender. Eles começaram a perceber que vinha de lá uma bordoada daquelas que lhes doía. De maneira que o meu pão-nosso de cada dia era arranjar as defesas e mostrar que o sotaque era diferente, mas falava português. Uma das suas paixões foi o radioamadorismo e as ondas curtas até serviram para aliviar a dor.É uma coisa muito curiosa. Não fazia ideia de que as ondas curtas fossem tão eficientes. Aquilo é uma energia que não se vê, não se apalpa, não cheira. Pode lá estar com grande intensidade e a gente não dá por ela. Entretanto arranjei uma obra sobre as ondas curtas na medicina e aprendi que no sítio onde se aplicam as ondas curtas os glóbulos brancos que estão na corrente sanguínea são chamados e são os próprios glóbulos brancos que nós temos que atacam o que lá estiver mal em grande quantidade. E depois voltam outra vez a entrar na circulação. Isso vem numa história que contei. Em 15 minutos uma senhora ficou sem dores.Sendo isso tão eficiente por que é que a medicina não o usa mais?Porque não entende como é que aquilo funciona. Aquilo é electrónica e os médicos não tiram o curso de electrónica. Por consequência não se vê, não cheira, não é química. No entanto tenho um tratado sobre a aplicação das ondas curtas na medicina de 1950. A primeira vez que apliquei isso foi no caso da velhinha. Era cá muito conhecida, a Rosa Agrieira. Ela estava com um inchaço no meio das costas que não a deixava descansar. O médico receitava-lhe analgésicos que lhe davam cabo do estômago. Quando cá veio tinha aquilo que parecia metade de um melão debaixo da pele. E o pior é que tinha o coração muito bom e os pulmões, ia viver uma data de anos a sofrer. Decidi fazer o emissor que gere estas frequências e experimentei. Ao fim de 15 minutos resultou. Pôs o lenço na cabeça e foi-se embora. No dia seguinte o volume tinha desaparecido.É a influência do calor?É quase como se estivéssemos com febre. Esse aparelho irradia aquelas ondas invisíveis em profundidade. Um saco de água quente, por exemplo, não pode estar muito quente porque queima a pele e não vai fundo. A radiofrequência vai actuar na zona do problema. Vi numa revista o emissor. Muito mais tarde, estava eu aqui a brincar, a fazer umas coisas para uma antena, pousei o equipamento numa perna e quando estava à procura do sítio de ajuste percebi que a perna estava a aquecer. Estava com uma potência minúscula (15 watts). Nessa altura estava com um torcicolo. Decidi experimentar em mim mesmo. Para meu espanto tinham desaparecido as dores. Foi a primeira vez que esta placa funcionou. Era uma coisa que podia funcionar através dos emissores de amadores. Fiz a mesma experiência com a minha mulher e resultou.Ganhou este interesse por influência do seu avô médico?É provável que esta minha atracção pelas coisas médicas já venha desde infância. Exactamente por ver que o meu avô também tinha sucesso o que lhe dava uma grande alegria, mas ele ficava muito triste quando não conseguia acertar. Não tinha controle sob certas coisas: cancros e loucuras. Logo nessa altura eu vi que tinha uma apetência pelas coisas da medicina porque tive que actuar a pedido do meu avó. E não me repugnava nada. A família é que fugia toda e deixava o meu avô à espera de alguém que pudesse ajudar. Lá ia eu.Em que situações?Situações graves. Algumas gravíssimas. O caso por exemplo, de uma criança com tétano com dores na nuca e nas costas. Para se saber se era tétano era preciso fazer um teste na espinha e para isso a pessoa tinha que estar vergada com a cabeça metida nas pernas para o médico espetar a agulha. Era uma criança um pouco mais velha que eu e estava num sofrimento enorme. A família não era capaz de ajudar. Lá vou eu. Infelizmente era mesmo tétano e a criança morreu daí a poucos dias. Falhou uma carreira na medicina?A medicina é um curso muito lindo, por isso me apaixona tanto, mas exige uma memória que eu não tenho. Isso sabia eu desde a escola primária. Fixar foi sempre uma carga de trabalhos. Se tem boa memória faz-se um bom médico. Um médico não se fia na primeira impressão. Por isso é que antigamente se falava no olhar do médico que olhava um tipo de alto a baixo e fazia-lhe a fotografia. Perdeu-se essa noção de olho clínico. Hoje em dia mandam fazer exames. E têm tanta gente para verificar que não têm tempo para dedicar-se aos doentes. A máquina fotográfica construída com uma lata de azeite no CaramuloAos 17 anos, quando foi acometido de tuberculose, Mário Portugal rumou a um sanatório no Caramulo para tentar a recuperação. Foi lá que se aproximou da fotografia aproveitando os ensinamentos do seu avô. Construiu a primeira máquina fotográfica com uma lata de azeite. Era rectangular. No fundo, no buraco, aplicou uma lente pequena que o tio lhe tinha dado. Do outro lado tinha um bloco de madeira que entrava e saía com vidro para focar a imagem. No álbum de capa de alumínio, manufacturado por Mário Portugal, colocou as fotos em tamanho reduzido que tirava aos residentes do Caramulo. “Nunca tive habilidade para fazer negócio e por consequência nunca pagaram um tostão. Mas ficava todo contente só deles receberem as fotografias. Fazia uma para mim e outra para eles”. Pequenas, muito pequenas, para poupar no material.Mário Portugal interrompeu o repouso nas varandas na cama de ferro e decidiu que precisava de apanhar ar puro. Tinha três meses de vida. Sem saber do diagnóstico iniciou uma cura pela montanha e fintou a morte.Eterno engenhocasAbre a porta do prédio antigo, onde vive há 30 anos, no centro da vila de Benavente, e sorri para quem chega. É uma figura alta, espírito lúcido e perspicaz num corpo franzino de 82 anos. No blog que alimenta compara-se a um galo “meio depenado, mas altivamente de pé”. Mário Portugal Leça Faria usa um aparelho auditivo que o próprio produziu. Os convencionais não o convenceram. No seu espaço de trabalho saltam à vista os aparelhos de rádio, mas também o computador porque a Internet ocupa-o também agora. Há caixas com transístores, resistências, bobinas. Um cadeirão tem um despertador instalado criado por Mário Portugal a partir de um relógio de cozinha para assegurar que lá não passa sentado mais do que o estipulado. À amiga Ana Ramon ofereceu um robot feito de latas para espantar os corvos das plantações de milho. É o eterno engenhocas. Não tivesse um blog inspirado nisso mesmo: http://engenhocando2.blogspot.com/. São os textos que escreveu ao longo dos últimos anos que foram agora compilados no livro lançado no dia da homenagem prestada pelos radioamadores a nível nacional, no dia 6 de Junho, em Benavente. Ondas de tristeza, ondas de alegria, ondas da rádio que tanto amou. Os aparelhos têm lugar cativo no espaço de trabalho que Mário Portugal conserva no local central do apartamento onde vive. A desorganização é apenas aparente. Mesmo à distância de 65 anos encontra o álbum de fotografias que tirou na altura da recuperação da tuberculose no caramulo.Conduziu conversas via rádio aproveitando o radioamadorismo, paixão que tem desde 1958 (CT1DT), para aumentar o conhecimento e poder partilhá-lo. A vida profissional foi passada na Raret de Salvaterra de Magos. Radicou-se em Benavente e foi lá que conheceu Alice, mãe dos seus três filhos, que desapareceu em 1991. O avô, médico que acompanhava durante as consultas que fazia nos Açores, onde nasceu, transmitiu-lhe a paixão pela fotografia, medicina e outras ciências e artes. Desde cedo o menino ficou ávido de conhecimento. A meio da tarde interrompe a conversa para um lanche. Papas de pão com café com leite. É um ritual de muitos anos à hora certa. Desde que a esposa faleceu Mário Portugal tem uma senhora que lhe garante a limpeza da casa e lhe prepara a comida da semana. Depressa chegam as 19h30. É hora de jantar. Há quase um alarme que soa. O relógio biológico não é invenção sua, mas os amigos não se espantariam se assim fosse.

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