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“Quem me fez político foi o Salazar”

“Quem me fez político foi o Salazar”

José Manuel Braz, residente em Aveiras de Baixo, foi vereador da CDU no pós-25 de Abril

Aos 12 anos tinha lugar cativo no Quartel do Carmo, em Lisboa, para ver a banda da GNR. Aos 73 continua apaixonado pela música e pelo associativismo. Vive em Aveiras de Baixo, no concelho de Azambuja, onde ajudou a impulsionar a cultura e desporto no pós-25 de Abril. Integrou o primeiro executivo da câmara local depois da revolução e é uma voz desassombrada a falar do concelho. Ficou marcado pelos tempos da ditadura e garante que foi Salazar quem o fez político.

Nasceu em Lisboa, mas passou a infância em Aveiras de Baixo, no concelho de Azambuja.Costumo dizer que nasci por acidente em Lisboa, na enfermaria do Hospital de São José. A minha infância foi passada em Aveiras de Baixo e em Valada do Ribatejo [Cartaxo]. Depois fui estudar para a Escola Comercial Veiga Beirão, em Lisboa. Mais tarde voltei e empreguei-me no Grémio da Lavoura, em Azambuja, onde encontrei um punhado de amigos muito importante na minha vida. Tive a sorte de encontrar a Palmira Garanhel, o José Pinto, o António Morais, o mestre Virgílio Venceslau e o José Calmado Pereira. Senti a necessidade imperiosa de os imitar a fazer alguma coisa pela sociedade e daí que me tenha dedicado muito à cultura, às colectividades, ao desporto. No desporto, dado o meu problema físico, não me deixaram jogar futebol oficialmente. Optei por me ligar à parte directiva. Que idade tinha quando sofreu o acidente?Nove anos. Fiquei sem o braço numa serra de descasque de arroz em Aveiras de Baixo. Eu era muito curioso. Fui o culpado. Os meus pais estavam em Valada quando tive o acidente. Já andava na escola e tive que passar a escrever com a mão esquerda. Foi uma transformação radical ter que aprender de novo. De resto fiz a minha vida normal. Fui sempre muito teimoso. Não deixei de jogar ao peão. Não deixei de acender fósforos só com uma mão, o que não é fácil. Mais tarde conduzi e fiz milhares de quilómetros pelo país fora. Depois constitui família, casei e tive quatro filhos.Como foi a sua estada em Lisboa?Fui para casa de uma madrinha que me deu guarida. Foi lá que encontrei um padre desportista. Também me liguei à música. Todos os sábados havia concerto da GNR, no Quartel do Carmo, e eu assistia. Arranjei uma panóplia de amigos. Entre eles o maestro Silva Dionísio. Ele achava-me piada porque eu era muito miúdo e gostava de ver a banda. Comecei a entender a música como um veículo de preparação cognitiva. E comecei a estudar sobre música. Interessei-me pelo canto através do meu professor Dias Pombo que fazia um programa na Emissora Nacional, na Rua do Quelhas. Ia lá meter o nariz e assistia a todos os ensaios. Era longe. Tinha que fazer muitas caminhadas o que me dava uma preparação física muito boa. Da Graça para o Carmo do Carmo para a Estrela. Sempre a pé. Não havia dinheiro. A vida era diferente.Aproximou-se muito cedo do associativismo.Fui colaborador do Inatel, mas sem vencimento. Nessa altura já eu tinha dado mostras de grande interesse pela cultura. A minha recusa prendia-se com o ordenado que não compensava a despesa que teria para a educação dos meus quatro filhos. Trabalhei por conta própria na área comercial de acessórios eléctricos de automóvel e acabei por fazer o que gostava: Algarve e Alentejo. Fazia duas coisas que tinham proveitos especiais. Ganhava a minha vida e à noite passava o meu tempo nas colectividades, nas bandas, nos ranchos, no canto alentejano. Em qualquer colectividade que me pudesse dar prazer. É muito aborrecido estarmos longe da família. Ficava em Vendas Novas, em Évora, em Vila Real de Santo António e em Portimão. Porque defende tanto a participação nas colectividades?É muito importante estar numa colectividade. Seja como executante ou como director. Os jovens deviam ir o mais cedo possível para uma colectividade. Mais tarde terão o reconhecimento e o aproveitamento desse tempo. Normalmente aprendem-se bons costumes nas colectividades. Como a disciplina de que precisamos para a nossa vida pessoal e profissional. Hoje o que sinto, com grande desgosto, é o abandono completo das colectividades. A colectividade é o segundo Governo. Há o Governo que nos governa e as câmaras e depois as colectividades que governam as pessoas. Porque é que as coisas mudaram tanto?Tem a ver com a indisciplina que nós todos adquirimos. O mundo está soberbo. As pessoas querem impor-se. A competitividade é uma coisa tremenda. Sem respeito pelo próximo. O que pode ser feito para chamar as pessoas às colectividades?Os pais têm que ter uma intervenção maior na educação dos filhos e não podem limitar-se a depositá-los na escola. Também é responsabilidade dos pais fazer as crianças aproximarem-se das colectividades. Tem que investir-se nesta área. Acho muito bem que se ponha a Internet a funcionar - o avanço é preciso - mas também temos que ter recuos. E o senhor que é um apaixonado pelo associativismo como é que se interessou pela política?Porque nasci em 1937. Quem me fez político foi o Salazar. Foi um mau homem que defendeu uma estrutura com a qual ele próprio não beneficiou. Nunca viveu descansado. Esteve sempre em conflito com a sua própria pessoa. Não quer dizer que não tivesse alguns rasgos que pudessem ser saudáveis. Falei muitas vezes com o Álvaro Cunhal e com a Margarida Tengarrinha. Essas pessoas diziam à gente para não sermos mentirosos. Sentiu na pele as dificuldades da época. Uma vez fui levado à esquadra. Tinha uns 15 anos. Estava a terminar a escola. Fui pedir emprego ao então Governador Civil de Lisboa. Não tinha um braço, mas queria trabalhar. Eu classificava-me como uma pessoa normal. Ele disse-me: ‘vou arranjar-lhe uma linha de crédito para vender cautelas’. Rangi os dentes e dei um murro na secretária que era de vidro e começou a rachar. Fui logo agarrado pelos colarinhos e apontado pela PIDE. Mas depois do 25 de Abril também fui dentro. Tive aqui um chaimite para me levar para Santarém. Como tive que ir defender uma coisa em Tribunal sai cedo para Alcobaça. Estava avisado e eles não podiam prender antes do nascer do sol. Depois fui-me entregar à GNR de Aveiras de Cima. Fui acusado de ter armas. Eu que nunca tive um canivete. Ainda estive cinco dias preso.Um apaixonado pelo associativismo Tem 73 anos registados no calendário convencional, mas as experiências do associativismo levam-no a dizer que já leva 200 anos de vida. José Manuel Braz, residente em Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja, é um apaixonado pelas colectividades desde os 12 anos. Em Lisboa, quando estudava na Escola Comercial Veigão Beirão, ganhou o hábito de assistir aos concertos de sábado da banda da GNR, no Quartel do Carmo. A paixão pela cultura não arrefeceu aquando do regresso ao concelho de Azambuja. É modesto e amável e recebe calorosamente quem chega a sua casa, em Aveiras de Baixo, onde uma nespereira oferece sombra num final de tarde de sábado. A esposa, Maria Manuela Braz, oferece bolo de iogurte e licor de amoras. José Manuel Braz senta-se num cadeirão de verga e visualiza, uma vez mais, o DVD com o concerto dos alunos do concelho de Azambuja que em 1991 foram ao Parlamento Europeu ajudar a conquistar apoios para a criação de um pólo do conservatório em Azambuja. A indiferença que o projecto mereceu por parte da câmara ainda hoje lhe causa mágoa. Salazar fê-lo querer ser político. Integrou o primeiro executivo da Câmara Municipal de Azambuja, de maioria socialista, como vereador da CDU. Cumpriu dois mandatos como vereador da cultura na câmara quando a CDU foi poder. Chegou a ser vice-presidente. A cultura toca-o no seu íntimo e é por isso que se comove quando fala da falta de apoio ao castro de Vila Nova de São Pedro.Trabalhou no Grémio da Lavoura, em Azambuja, numa casa de electricidade em Lisboa e seguiu a sua vida por conta própria na área comercial de acessórios eléctricos de automóvel. Foi colaborador do Inatel e ainda conserva o cartão de animador do Movimento Voluntário Desportivo de Lisboa. No concelho de Azambuja deixou a sua marca na área cultural. Em Fevereiro foi homenageado pelo Grupo Desportivo de Azambuja, a que se ligou desde cedo, com o prémio “Excelência”. Foi membro fundador e dirigente da Casa do Povo de Aveiras de Baixo, Cerci Flor da Vida e da Associação dos 10 quilómetros de Tagarro, Alcoentre. Passou pela direcção do Centro Cultural Azambujense, Rancho Folclórico de Azambuja e do ADR O Paraíso. Foi um dos impulsionadores do desporto e cultura no concelho de Azambuja no pós-25 de Abril. “Voltaria a fazer tudo outra vez”, confessa durante a entrevista. Não é homem de ir à igreja todos os domingos, mas assegura que tem boa relação com os sacerdotes. “A religião para mim não é visível. Acredito nos homens. Eles é que fazem e desfazem”.Integrou o primeiro executivo de maioria socialista da Câmara de Azambuja como vereador da CDU no pós-25 de Abril. Sente-se um privilegiado por ter vivido esses tempos como autarca?Não me considero um privilegiado. Quem aproveitou foi o concelho. Só havia duas freguesias com esgotos e água: Azambuja e Vila Nova da Rainha. Nós olhámos para as freguesias todas. Pedimos um empréstimo. Infelizmente o PS votou contra. Íamos ficando sem possibilidades de poder fazer esta obra que foi tão importante para o concelho. A maioria era relativa e o eleito do PSD acabou por desempatar apoiando a nossa medida.Depois a CDU ficou no poder. E o senhor foi vice-presidente. Porque é que o saneamento básico e respectivo tratamento de esgotos, que ainda não está a 100 por cento, não ficou concluído?Não conseguimos o empréstimo para completar a obra. Para fazer os ramais concentrámos os trabalhadores. Em Alcoentre, por exemplo, deslocámos os cantoneiros de Boiças, Tagarro, Quebradas e Espinheira para fazer as limpezas dos terrenos. Na altura os recursos eram mais limitados. Não havia máquinas. Não havia dinheiro. Como autarca houve alguma situação que o tenha chocado mais?A recusa do apoio ao castro de Vila Nova de São Pedro. [silêncio] Dá-me vontade de chorar… [emociona-se]. Cheguei a ouvir dizer: “isto quer é uma buldózer”. Chocou-me a insensibilidade. Os meus netos faziam levantamentos de alguns problemas na escola e depois entregavam-me os papéis. O problema dos maus cheiros da fábrica de transformação de aves, na Nacional 3, antes de Azambuja, arrasta-se há anos… Tenho receio em que não haja interesse em resolver a situação. E como vê a freguesia onde vive: Aveiras de Baixo?Aqui na freguesia já perdemos muitas oportunidades. Uma produtora quis montar aqui perto as suas instalações e a cadeia esteve para vir para aqui, mas toda a gente teve medo. Temos 200 pessoas na freguesia. Cem têm mais de 70 anos. São menos de 60 as pessoas novas. A escola tem oito alunos e nasceu apenas uma menina em 2010. É uma vergonha.Preocupa-o essa situação?Muito. Não é por minha causa. Estou a prazo. Tenho 200 anos vividos com o que passei pelas colectividades. Preocupa-me que a 50 quilómetros de Lisboa não haja investimento nem ideias. As casas estão a cair. A terra está envelhecida. Não temos com quem conversar. Tenho aqui um monte de jornais que é a minha companhia. Organizou-se uma cooperativa que poderia ter ajudado a fixar pessoas na freguesia, mas não avançou.No seu tempo as colectividades eram mais apoiadas?Existia um secretariado de cultura, desporto e tempos livres. No meu tempo dizia-se: ‘só falta criar o jogo do berlinde’. Quem mais fazia mais recebia. Mas hoje, mais do que nunca, temos que saber o que nos pertence e não gastar mais do que isso. E o pior não é isto. Estamos numa quinta. Não há um papel para admitir uma pessoa que esteja em branco. Levam logo directrizes de quem vão contratar. Não pode ser. O país e concelho não podem ter só os amigos empregados. Está a falar do concelho de Azambuja?Sim. Aqui não se admite ninguém que não seja um primo, um enteado, um familiar, um homem com um cartão igual. Falo da câmara e das juntas.No seu tempo também era assim?Não. Tenho uma revolta contra mim. O homem até era da CDU… Vivia nas Quebradas. Vendia pão em Lisboa e concorreu para um lugar de motorista. No dia em que o íamos analisar chegou à rua do gado, que era uma subida íngreme, deixou morrer o carro e meteu a mudança com a viatura já parada. Eu disse: ‘lamento imenso ter vindo porque não me acho com capacidade para fazer análises destas. Não tenho nada que ver com engenharia de condução, mas a minha opinião é de que fez uma asneira’. Eu não podia ter analisado um profissional de condução quando eu era um amador! Fiquei mal com a minha consciência.E ele chegou a ser contratado?Não senhora.
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