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Fugia pela janela para poder ir aos treinos no União de Tomar

Fugia pela janela para poder ir aos treinos no União de Tomar

Jorge Vital jogou em 10 clubes entre eles o Sporting e é agora o treinador de guarda-redes do Braga

Ainda criança começou a defender pelas ruas da freguesia de São João Baptista em Tomar. Jogou em 10 clubes, entre eles o Sporting e acabou a carreira como guarda-redes no Esposende. Tinha 40 anos. Depois disso rumou a Braga para assumir o cargo de treinador de guarda-redes. Exceptuando Mourinho, Jorge Vital já trabalhou com os melhores treinadores nacionais e treinou Quim e Eduardo, actual titular da selecção nacional. Diz que Tomar continua igual como há 20 anos e reconhece ser muito difícil, a médio e longo prazo, haver uma equipa ribatejana na primeira divisão. Acrescenta ainda que há dirigentes desportivos locais completamente impreparados.

Defendeu as balizas de 10 clubes. Como foi esse percurso?Comecei no Santa Cita (Tomar). Entre os 15 e os 18 anos joguei no União de Tomar, onde fiz o primeiro ano como sénior. Depois estive no Rio Maior a ser treinado pelo professor Jesualdo Ferreira e pelo Carlos Canário. Mais tarde joguei dois anos no Lusitano de Évora, dois anos no Portimonense, cinco anos no Sporting, dois anos no Estrela da Amadora, um ano no Tirsense, cinco anos no Gil Vicente e quatro no Esposende, onde terminei a carreira como guarda-redes.Com 40 anos…É verdade. E no último ano as pessoas queriam que eu jogasse mais uma época. Só que entretanto apareceu o convite do Braga para integrar os quadros técnicos na área específica do treino de guarda-redes. Na altura era treinador o Fernando Castro Santos. Faz agora nove anos. Acabei a carreira como jogador e abracei logo a de treinador de guarda-redes. Era um objectivo seu seguir a carreira de treinador?Posso dizer que sou um felizardo. Se calhar não há muita gente que faz aquilo que gosta durante toda a vida. Eu fi-lo e continuo a fazê-lo. Fui feliz enquanto jogador e tive a felicidade de, no momento em que estou prestes a arrumar as botas, em que há aquela angústia de não saber o que o futuro nos reserva, ter logo esta oportunidade. Sabia que queria ficar ligado ao futebol e ser treinador. Mas acabar uma carreira e começar logo a treinar são coisas bem diferentes. Tive que me preparar. Que me agarrar aos livros para começar numa equipa da dimensão do Braga, que na ocasião tinha o Quim. Fiz a minha formação e tirei os cursos de treinador até ao último nível. Felizmente as coisas têm-me corrido bem até agora.De facto, já passaram vários treinadores pelo Braga, mas o Jorge Vital foi ficando. Como explica isso?Costumo dizer que só estamos nos clubes até quando os presidentes quiserem. São eles que mandam. Certo é que até agora tenho tido a confiança das equipas técnicas, a quem agradeço. E se vamos passando de uma equipa para a outra é porque as informações são boas e porque quem manda no clube confia no meu trabalho. Fico satisfeito por isso mas é também uma responsabilidade acrescida. Temos de continuar a crescer como profissionais e a acompanhar a permanente evolução do futebol.É um insatisfeito por natureza?Sou um insatisfeito porque adoro aquilo que faço. Porque sei que no dia seguinte posso ainda melhorar as minhas capacidades. E é isso que tento fazer e passar para os meus guarda-redes. Para que eles também sintam isso. Como estamos muito tempo com eles, certamente que iremos conseguir que eles tenham um pouco do nosso ADN. É importante passar-lhes esta mensagem e dar-lhes os exemplos de sucesso de profissionais que já passaram pela casa É possível as pessoas alcançarem os seus sonhos. Os sonhos não acabam quando nós acordamos. Gostava de dar o salto para um clube de outra dimensão? Tem esse sonho?Temos sempre que ter ambição. De querermos ser cada vez melhores. Em todos os cargos dos clubes e das empresas. Não sou obcecado por isso. Estou num clube espectacular, do qual gosto muito e onde me sinto bem a fazer o que faço. Agora, tenho ambição de também ir para melhor. De ser reconhecido, nesse aspecto.Sente que há essa falta de reconhecimento?Há pouco reconhecimento na função de treinador de guarda-redes. Porque há pouca gente com capacidade para entender o que é que é esse tipo de treino. Raramente se fala nele. Há a ideia de que o treino de guarda-redes é feito única e exclusivamente com chutos à baliza. É muito mais que isso. É aliciante. As pessoas valorizam muito pouco esse tipo de treino. Em relação a mim, também não me importo muito em ser reconhecido ou não. Quero é que os meus guarda-redes continuem a ser reconhecidos como têm sido. Esse é que é o meu reconhecimento. O melhor sinal. Quando eles atingem os objectivos desportivos, individuais e colectivos. Mas é claro que ninguém pode dizer que não gosta de ser reconhecido pelo seu trabalho.Exceptuando o Mourinho, já trabalhou com os melhores treinadores portugueses. É um caso raro…No Braga tive sempre a felicidade de trabalhar com grandes treinadores. Domingos, Jorge Jesus, Carvalhal, professor Manuel Machado ou o professor Jesualdo Ferreira. Estes foram os cinco primeiros classificados do último campeonato nacional. Depois o clube em si tem uma dimensão extraordinária. Com condições fabulosas e uma evolução que está à vista de todos nos últimos anos. Só é pena que em Portugal não se dê o devido valor a este clube que nos últimos seis, sete anos, tem feito um trabalho fantástico a todos os níveis. Em relação a mim e ao meu desempenho é o corolário de muitas horas de trabalho. É o ir para casa todos os dias de consciência tranquila, ciente de que o que estamos a fazer é o correcto. Qual foi o treinador que mais o marcou?Aquele que me iniciou no futebol. O senhor Morais. Foi o meu primeiro treinador na formação do União do Tomar. Que me ia buscar de manhã pela janela. O meu pai tinha morrido, a minha mãe e os meus tios não me deixavam jogar futebol e ele ia-me buscar. Eu tinha que sair pela janela. A minha irmã dava-me o saco e ele estava à minha espera no carro. Foi devido a esse senhor – que ainda é vivo – que tive a carreira que tive e sou agora treinador. E em relação aos restantes?Há dois que também me marcaram particularmente. Um porque já tinha sido meu treinador enquanto eu era jogador no Rio Maior. O professor Jesualdo Ferreira. Foi o homem que deu a grande viragem em termos de mentalidade dentro de campo. A partir daí o Braga começou a ter outra dimensão a nível desportivo. E claramente o Jorge Jesus. Com ele fizemos uma época fabulosa. São dois treinadores de topo. Mas todos os outros, de quem sou amigo, também foram importantes. O Jorge Costa tem um grande potencial para vir a ser um dos grandes treinadores. E vou terminar a falar no meu actual treinador, que é o melhor. Neste momento, na minha perspectiva, tem todas as condições para atingir o topo. Pela idade, capacidade e astúcia que tem. O trabalho está à vista. Há quatro, cinco treinadores portugueses de grande capacidade. O Domingos é um deles. É uma questão de tempo até dar o salto para um clube de outra dimensão.“Há dirigentes desportivos completamente impreparados”O União de Tomar passou por dificuldades financeiras e decidiu apostar na formação…É um bocadinho a imagem do futebol ribatejano. Sou do tempo em que havia clubes como o União de Santarém, Riachos, Amiense, União de Tomar e Tramagal, que tinham equipas fortes. Praticamente agora essas formações vivem à base da formação. Num ano uma ou outra equipa até tem seniores, porque aparece alguém que mete lá dinheiro. O próprio Torres Novas praticamente deixou de existir.A que se deve este insucesso do futebol ribatejano?No nosso futebol vive-se um bocadinho o profissionalismo encapotado. Consegue-se dizer que as pessoas são profissionais a ganhar 300 ou 400 euros. Depois fica-se a dever cinco meses. Mas continua-se a enganar os jovens. Isto tem a ver com questões de fundo de política de quem manda. Há uma cúpula de poder, que é a Federação. Enquanto que as coisas não forem mudadas e se permitir que haja clubes profissionais, com determinado tipo de orçamentos e que nem campo têm, vai continuar a haver jovens a viver o seu dia-a-dia, a terem um bom carro, mas quando chegam aos 30 anos não sabem fazer nada. Nessa altura terão de enveredar por outros caminhos. Quem não tem condições não pode ser profissional. Acha que os clubes não se souberam adaptar à realidade?O problema é que na realidade nem há regras. As pessoas entram nos clubes e podem fazer o que quiserem. De há quatro anos para cá tem havido uma tentativa da Liga de manter a mão ao nível das licenças das finanças. Mas os próprios clubes têm estratagemas. Há clubes que devem três, quatro meses mas os jogadores têm de se sujeitar para sustentar um sonho adiado. Não é por acaso que se vê dezenas de jovens portugueses a jogar no Chipre ou na Grécia, em clubes que nunca ouvimos falar, a ganhar 4 ou 5 mil euros. Cá não recebiam. E o papel dos dirigentes?Pegando no caso de Tomar. Há vários tipos de dirigentes; aqueles que gostam do desporto, de ajudar e que vão lá ao fim do dia; os que, por terem alguma capacidade financeira, conseguem conquistar visibilidade e chegar onde um cidadão normal não chega. O futebol permite isso; e depois há os restantes que andam lá todos os dias. Mudam as direcções, mas porque gostam muito do clube continuam lá e dão muito do seu trabalho. Agora são pessoas completamente impreparadas. Há dirigentes muito mal preparados para as funções. Sem capacidade desportiva de perceber o que é que é o desporto e a organização. É impressionante, pessoas com grande sucesso empresarial, vão para o futebol e têm uma gestão de ruína. Como é que uma pessoa que tem grandes empresas chega ao clube e não consegue manter o mesmo rigor e a mesma seriedade? O futebol não é números. É paixão. E as pessoas deixam-se ir. Como fizeram as coisas de uma forma irreal as coisas não correram como eles pensaram. Numa empresa há racionalidade. No futebol não há.Acha que a médio e longo prazo haverá uma equipa ribatejana na 1ª Liga?Muito difícil. A conjectura socioeconómica da própria região não ajuda a isso. A juventude está também um pouco divorciada. Basta ver as assistências do clube mais próximo da nossa região que é Leiria. No jogo do ano passado estavam 8 mil adeptos do Braga e 200 pessoas de Leiria. Mas há a salientar o bom trabalho que o Fátima tem desenvolvido de há cinco anos a esta parte. Não se ouve falar de problemas financeiros. Têm tido equipas humildes que praticam bom futebol. Há rigor. Só pagam aquilo que podem. Não entram em utopias. Se calhar há clubes que funcionaram ao contrário e essa foi a ruína. Mas se formos ver no resto do país é essa a realidade. Não só no Ribatejo.“Tomar está na mesma”Continua a visitar Tomar?Claro. É a minha terra. As minhas raízes estão lá. A minha mãe, irmã e família residem em Tomar, onde as minhas filhas também nasceram. Mantenho uma relação muito próxima apesar de não conseguir ir muitas vezes, por causa da minha profissão. A minha mulher e as minhas filhas vão com mais frequência. Mas sempre que vou a Tomar e estou mais que dois dias, sinto alguma nostalgia.Como assim?Saí de Tomar dos 18 para os 19 anos e os amigos da terra são aqueles com quem andei no liceu. Quando olho para as pessoas da minha idade, que já não vejo há muitos anos – não é chamar-lhes velhas, porque estão como nós estamos – fico com um sentimento de nostalgia. E não gosto de me sentir assim. Nostálgico. Se calhar até podia ir mais a Tomar e não vou por causa disso. Como olha para a cidade?Está na mesma. Tomar cresceu um pouquinho a nível de prédios. Mas se nos limitarmos à zona onde vivi e cresci – à zona do mouchão, da baixa e do parque – a única coisa que está diferente é o estádio que deitaram abaixo, puseram relva sintética e acabaram com as bancadas. Tomar parou um pouquinho no tempo. Se calhar por questões socioeconómicas, por causa de grandes problemas que existem na região. Quando saí de Tomar havia grandes empresas na indústria de papel e da madeira. A fábrica de papel do Prado, Mendes Godinho e da matrena. Tudo isso praticamente deixou de existir. O emprego passou para outros sectores. Mas a cidade em si está muito parecida. Fora do centro alargou, é um facto. Construíram uma ponte nova do lado do mercado. Mas é daquelas cidades que chegámos e mantém as mesmas características. Olhamos para ela agora como há 20 anos e as mesmas coisas estão lá.Mas isso é positivo ou negativo?A esse nível é positivo. Sou um pouco tradicionalista. Gosto das coisas pequenas. Como estão. Ao nível da tradição, não perdeu identidade. Depois, com os institutos politécnicos, começou a vir muita gente nova estudar para Tomar. Alguns acabaram por ficar, casaram e tiveram filhos. Isso também começou a dar uma outra identidade à cidade. Mas ao nível físico as coisas são muito iguais.Um homem do desportoJorge Vital nasceu há 49 anos na freguesia de São João Baptista, Tomar. Da infância recorda os tempos em que chegava a casa ao fim do dia todo sujo, depois de ter estado a jogar à bola pelas ruas da terra. Diz com um sorriso que é um pouco o homem dos sete desportos. Na escola jogou badminton, ténis de mesa e tiro com arco. Do futebol de rua passou para o Grupo Desportivo da Matrena, em Santa Cita. Tinha 13 anos. Na altura jogava futebol e hóquei em patins no Sporting de Tomar. No ano seguinte entra para as camadas jovens do União de Tomar, conciliando as duas modalidades. No futebol era guarda-redes. No hóquei jogava a médio avançado. Após a morte do pai, vítima de doença, viu-se obrigado a ir trabalhar para ajudar a mãe e a irmã mais nova. Sentindo que era impossível conciliar estudos à noite, jogos e trabalho, decide abandonar os livros. “A única coisa que tenho é o nono ano. Hoje reconheço que foi um erro. Tenho pena pois gostava de ter tirado o 12º ano. Possivelmente ainda vou voltar a estudar ao abrigo das Novas Oportunidades”, revela Jorge Vital.Aos 17 anos já era profissional de futebol. No momento de escolher entre a paixão pelo hóquei e o amor pelo futebol, os escudos pesaram e fizeram toda a diferença. O treinador de guarda-redes assume que a opção foi claramente financeira mas garante que até tinha muito jeito para jogar hóquei em patins. Era júnior e já jogava nos seniores do Sporting de Tomar, na altura em que o clube tinha grandes equipas.Deixou Tomar na passagem dos 18 para os 19 anos à procura de concretizar o sonho de ser guarda-redes. Consegui-o realizar. Passou por clubes do Norte ao Sul do país. Aos 40 anos pendurou as chuteiras de jogador para abraçar a carreira de treinador de guarda-redes. Já trabalhou com os melhores treinadores nacionais. Mas mantém um discurso humilde, realista mas igualmente sonhador. Jorge Vital é casado e pai de duas filhas. Diz-se um homem realizado e feliz. Reside em Esposende há 16 anos e sente-se bem a trabalhar na cidade dos arcebispos.
Fugia pela janela para poder ir aos treinos no União de Tomar

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