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Armando Mineiro tem 90 anos e é um exemplo de dedicação ao associativismo

Armando Mineiro tem 90 anos e é um exemplo de dedicação ao associativismo

Nasceu nos arredores de Santarém, acabou os estudos em Lisboa, mas foi em Alverca que Armando Mineiro granjeou a admiração de quem com ele teve o prazer de privar. Aos 90 anos mantém um discurso eloquente, frontal e bem-humorado. Trabalhou 44 anos nas OGMA e dedicou mais de três décadas ao associativismo. Passou pelo executivo da junta mas não gostou da experiência. Garante que na política não há liberdade total. Identifica-se com os ideais da CDU mas não se considera comunista. Conta ainda como conquistou a mulher da sua vida a quem de declarou com uma carta de amor.

Jorge Afonso da SilvaComo foi a sua passagem pela Escola Profissional D. Maria Pia em Lisboa?Entrei na escola aos 13 anos e saí aos 18. Conclui o curso industrial. Naquela altura quem acabasse com 17 valores podia concorrer ao Instituto Industrial. Se quisesse continuar até podia chegar a engenheiro do Instituto Superior Técnico. Tudo pago pela escola. Foi isso que tentei, mas não me valeu de nada. Quando cheguei ao segundo ano apercebi-me de que a escola tinha um orçamento limitado e precisava de cortar. Cheguei a fazer um exame de matemática em meia hora. Podia ter 20 valores a matemática mas tive 15. A Português a mesma coisa. A partir desse ano, como vi que não me iam dar notas para entrar na universidade, comecei a desanimar e a ter 13, 14 valores.Sente que esse simples facto mudou a sua vida?Sinto que podia ter tido um futuro diferente. Mas tive que me preparar para este que também foi bom. Só que a vida na escola também não era fácil. Havia aqueles “gajos” mais velhos que acertavam o passo aos mais novos. Andei um ano e tal a levar pancada de um desses. Todos os dias que passava por mim – ele devia ter uns 17 anos – dava-me um soco, um pontapé ou uma estalada e ria-se para os outros. Um dia disse para mim mesmo que aquilo tinha de acabar. Então preparei-me. Apliquei-me na ginástica. Comecei a fazer os exercícios de um livro americano para homens musculados. Entretanto fui de férias para a Portela das Padeiras e ajudei um tio meu – que tinha uma horta e um tanque, mas não tinha bomba – a tirar a água ao balde. Com tudo isto fiquei com uma forma invulgar. Quando regressei à escola sentia-me forte. O “gajo” vem dar-me novamente um estalo mas desta vez viro-me a ele. Aquilo é que foi pancada. Só os empregados é que nos pararam. A partir daí nunca mais o vi.Era normal haver pancadaria?Havia a mania de bater. Lembro-me que um dia um calmeirão, dos mais fortes, estava aos pontapés no chão a um miúdo de 13 anos. Como já ninguém se metia comigo sentia-me fortalecido. Estava tão danado que cheguei ao pé dele e dei-lhe um soco no peito. Bateu na trave da baliza e caiu de morto. Vieram os amigos dele e tive de me desviar. Sete eram muitos. O que é certo é que ninguém me disse nada e a partir daí passei a ser o ídolo dos miúdos. Principalmente dos mais novos que passaram a brincar ao pé de mim. Aquilo tornou-se quase um mito. Até me deram a alcunha de marreta (sorrisos). Logo a mim que não me metia com ninguém. Mas o facto é que nos anos seguintes nunca mais vi pancadaria. Aquele hábito de bater acabou-se. Na altura éramos cerca de 600 rapazes.Depois de terminar o curso ingressa nas OGMA em Alverca.Acabei o curso com 17 anos. Como não arranjei logo trabalho fiquei mais um ano na escola sem fazer nada. Ia ajudando naquilo que era preciso. Em Abril de 1938, já depois de fazer 18 anos, as pessoas das OGMA foram à escola recrutar oito alunos. Nesse ano fui trabalhar como ajudante de soldador. Como tinha o curso fui fazendo outras coisas. Estive na sala de desenho, no armazém e noutras áreas da empresa. Andava de um lado para o outro. Estava na secção dos motores quando o director virou-se para mim e disse: Armando, já deste a volta, agora ficas aqui. Fiquei nos motores como ajudante de terceira. Tinha quase 20 anos. Ganhava 12 escudos por dia. Era muito pouco. Mas foi um momento muito importante e decisivo para o meu futuro na empresa.Como assim?Aos poucos e poucos fui aprendendo e fazendo cada vez mais. Estávamos na segunda guerra mundial e na parte final de 1943 os aliados já dominavam a situação. Os Ingleses começaram a trazer os aviões para serem reparados aqui. E isto deu um pulo. Houve a necessidade de se fazer uma grande oficina de motores. Fui transferido para esse novo local e deixei de ser ajudante para passar a trabalhar sozinho, com mais responsabilidades. O chefe gostou do meu desempenho e começou a dar-me os trabalhos mais difíceis. Depois vieram uns motores novos e fiquei responsável pela sua montagem. Mais tarde, a TAP, como não tinha oficinas, trazia os seus aviões para as OGMA. Fui o escolhido e era eu que praticamente reparava todos os motores da TAP. Considera-se um autodidacta?Fui aprendendo sozinho. Os operários antigos que estavam naqueles aviões estagnaram, e eu subi. Mais tarde criou-se uma oficina mais ampla e especializada, que englobava todos os sistemas de combustível, hidráulicos e pneumáticos. E o director disse-me que eu ia chefiar essa secção. Posso dizer que atingi uma categoria razoável. Esteve nas OGMA durante 44 anos.Cheguei a operário especializado, passei a mestre e depois a técnico que é o chefe. Fiz esta evolução. Mas tive sempre um princípio. Sempre trate aquelas pessoas mais velhas, que eram operários quando eu era ajudante, por senhores e eles sempre me a mim trataram por tu. Apesar de ter chegado onde cheguei e de ser hierarquicamente superior. Sempre tive respeito por serem mais velhos. Com o passar dos anos fui chamado para ir diversas vezes a África ver bases, aviões e modificações. Estagiei na Alemanha em várias ocasiões. Quando havia alguma dificuldade dentro da minha área era eu o escolhido para dar opinião. E na despedida do general ele reconheceu publicamente o meu valor.De que forma?No dia em que o general foi embora organizou-se uma festa de despedida. Ele discursou e no final disse: ‘não posso deixar de me referir a uma pessoa que muito admiro e considero’. Depois começou a definir o carácter dessa pessoa: ‘é simples, honrado, sério, íntegro e inteligente, com conhecimentos técnicos e profissionais muito acima da média’. Eu estava a ouvir e a pensar: ‘quem será esta fera’? (sorrisos). Ele acabou de falar e disse: ‘essa pessoa é o técnico Mineiro’. Palavra de honra que fiquei admirado e até emocionado. Não sabia a quem é que ele se estava a referir no início. Sermos pessoas íntegras é o mais importante. Branco é branco. Preto é preto. Não vale a pena andarmos com aqueles joguinhos de cinturas. Tive sempre duas âncoras em toda a minha vida. O trabalho e a família. A família é a base. E sem trabalho não havia possibilidade de dar seja o que for à família. Esse foi um lema que passei para à minha filha e netos. Trabalhar para as associações em troca de umas sandesFalar de Armando dos Santos Mineiro é falar do associativismo no seu mais puro sentido. Dar sem receber nada em troca. Trabalhar por amor à camisola. Sentir uma íntima ligação ao projecto e à associação. Dedicação aliada à seriedade e rigor, como o próprio diz, sentado num banco da Casa de São Pedro (instituição de apoio à terceira idade sediada em Alverca) numa tarde solarenga. “A única coisa que ganhei em mais de 30 anos ligado ao associativismo foram umas sandes”. Apesar dos 90 anos, o olhar astuto e o discurso eloquente chamam a atenção e cativam os sentidos. O apurado sentido de humor faz o resto. Armando Mineiro nasceu a 2 de Fevereiro de 1920 na Portela das Padeiras, arredores de Santarém. Os documentos dizem que é de Santarém mas ele faz questão de frisar que se sente natural da pequena localidade. Com apenas 13 anos, por questões familiares, foi para Lisboa e ingressou na Escola Profissional D. Maria Pia. Já com o curso industrial, aos 18 anos começou a sua aventura de 44 anos nas OGMA em Alverca. Aí distinguiu-se pela simplicidade, profissionalismo e vontade de aprender. Pelo meio declarou-se a Rosina Alves Mineiro, hoje com 89 anos, com quem teve uma filha. Têm um neto e uma neta. Partilha os dias com o seu amor de sempre na Casa de São Pedro. No entanto, diz com um sorriso, que se no Inverno estiver muito frio prefere ficar na casa que o acolheu ao longo de mais de seis décadas, situada no Bairro das OGMA. Apesar da sua intensa vida profissional, em 1953 decidiu fazer-se sócio do Futebol Clube de Alverca e de praticamente todas as colectividades da terra. Estava dado o primeiro passo para mais de três décadas de dedicação ao associativismo. No Alverca começou como tesoureiro e acabou como presidente. Recorda um episódio em que foi a Lisboa falar com o treinador do Benfica, Otto Glória, para este ceder jogadores para o Alverca. Recentemente, alguns jogadores dessa época fizeram-lhe uma surpresa. Visitaram-no para abraçá-lo e recordarem velhos tempos. Em 1963 assumiu a presidência da Sociedade Filarmónica de Recreio Alverquense (SFRA), tendo um papel determinante na sobrevivência da colectividade. Em 1973 foi escolhido para presidente da Misericórdia de Alverca e em 1977 foi contactado pela Segurança Social para a instalação de um centro de dia. Uma obra de 1200 contos que muito o orgulha. Armando Mineiro reformou-se em 1982. Na ocasião era presidente do Alverca, da Misericórdia e da SFRA. Quase trinta anos depois, garante continuar a pagar as quotas, de três em três meses, a todas as associações da terra, das quais é sócio. “É a última prova de amizade que lhes posso dar”, refere em tom emocionado. A passagem pela política não lhe deixou saudades. Armando Mineiro recebeu há semanas o galardão de mérito desportivo de Alverca durante a cerimónia do 20º aniversário de elevação a cidade.“Pedi namoro à minha mulher por carta”Como é que conheceu a sua esposa que tem hoje 89 anos?O meu pai trazia os melões em fragatas para um cais perto de Alfama. Quando fiz 16 anos convidou-me a ir passar lá o fim-de-semana e foi aí que a conheci. Fiquei logo a gostar dela. Mas como ainda era novo e não tinha emprego só aos 18 anos é que a pedi em namoro. A família dela não gostou. A minha sogra muito menos. Na ocasião, estava sozinho, ganhava pouco nas OGMA e não tinha condições de vida. Como se costuma dizer não era um bom partido. Como é que a pediu em namoro?Como ela tinha muitos pretendentes e podia recusar-me decidi escrever-lhe uma carta. Já tinha dito que não a muitos e por isso tive de me precaver (sorrisos). Além disso ela conhecia-me mas não me conhecia assim tão bem. Ainda por cima a mãe disse-lhe: ‘não acredites nisso filha, isso foi copiado’. Naquela época era assim que funcionava. Mas não copiei nada…Lembra-se do que escreveu na carta?Já não me recordo. Mas sei que foi uma coisa gira…Entregou-lhe a carta em mão?Não. Entreguei-a a uma pessoa amiga e ela é que lha deu. Mas a minha mulher esteve dois meses para me responder. Nunca me respondeu. Só no dia em que saí da escola Maria Pia é que a encontrei por coincidência em Alfama e ela disse: ‘aceito’. Foi a 21 de Agosto de 1938. Lembro-me que nessa altura vestia um fato, camisa e sapatos novos que me deram na escola por me vir embora de vez. Como é que namoravam à distância? O senhor em Alverca e ela em Lisboa?Durante os sete anos de namoro, até nos casarmos, praticamente só aos domingos é que estávamos juntos. Pelo meio ainda fiz a inspecção em 1940 e em 1941 fui para a tropa. E como não havia dinheiro para mais tínhamos de nos sujeitar…Esteve na tropa quanto tempo?Ano e meio. Eu tinha o curso industrial, mas como estávamos em guerra e tinha medo que me enviassem para África quando fui à inspecção não declarei os estudos que tinha. Já nessa altura mandavam os milicianos para a Guiné, Cabo-Verde ou Açores. Eles eram os primeiros a ir. Só que na altura pensei: se for para lá como miliciano então é que nunca mais namoro. (sorrisos). Fiquei como soldado…E foi colocado onde?A 21 de Fevereiro de 1941 houve um grande ciclone em Lisboa que se prolongou até ao Entroncamento. Morreu muita gente, inclusive de Alfama. Nessa altura não havia pontes. Todo o transporte que se fazia no Rio Tejo era através de fragatas. Muitos barcos e fragateiros foram apanhados e afundaram. Foi uma grande tragédia. Como o quartel para onde eu ia ficou arrasado fui parar à Covilhã. Depois da instrução de três meses, como trabalhava na aviação, vim para a OTA. Aí foi outra tragédia…Então?Eu queria namorar. Mas não tinha dinheiro. E o pior é que nesse tempo não havia transportes. Só comboio até Vila Franca de Xira. Todos os sábados ia a pé desde a OTA até Vila Franca de Xira e às segundas-feiras de manhã fazia o percurso inverso. São mais de 20 quilómetros que tinha de fazer a pé. Tudo por amor. E casamo-nos quando eu tinha 25 anos e ela 24. Hoje tenho 90 e ela 89 e posso dizer que fomos e somos muito felizes.“Na política não há liberdade total”Esteve também ligado à política.Como estava ligado a todas as colectividades e já era uma pessoa muito conhecida no meio, em 1976 – naquele período de propaganda – fui solicitado pela APU (CDU) para colaborar com o partido. Recordo-me que fui eu que presidi ao encerramento da campanha que decorreu à meia-noite, na rua dos bombeiros. E há um momento engraçado que ainda hoje relembro com satisfação. Na altura estava a discursar o candidato à câmara de Vila Franca de Xira. Só que o homem falava muito baixinho. Então virei-me para ele e disse-lhe: ‘ó homem grite, grite…Você tem de gritar porque senão ninguém o ouve’. E ele lá começou a gritar bem alto (gargalhada). Ficou com boas recordações desse tempo?Estive quatro anos como vogal do executivo da junta de freguesia de Alverca do Ribatejo, mas simplesmente não gostei da experiência e desliguei completamente.Porquê?Estava habituado a uma liberdade diferente. A não me sentir preso. O trabalho é digno e de respeito mas na política não há liberdade total. Quer se queira quer não estamos sempre sujeitos à norma do partido. Vê-se nas assembleias como é que funcionam os votos. Muitos são obrigados a votar contra as suas convicções em prol do partido. Caso não o façam sofrem as consequências. E isso não tinha muito a ver com a minha maneira de ser. Na política e nos partidos há muitos jogos de interesses. E são estas pequenas coisas - com as quais não estava habituado a lidar nos 30 anos em que estive ligado ao movimento associativo - com que não me identifico. Mas identifica-se com os ideais da CDU?Sempre me identifiquei e partilho dos mesmos ideiais. Isso é claro e assumo-o sem dúvida nenhuma. Agora, não sou comunista. Nunca fui militante, nunca tive cartão e nunca fui um activista. Mas ainda hoje continuo a votar na CDU, embora haja coisas com que não concorde. Mas isso é como em tudo na vida.
Armando Mineiro tem 90 anos e é um exemplo de dedicação ao associativismo

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