A menina que apanhou fruta para ajudar a pagar os estudos tornou-se bailarina
Rita Omar cresceu no Cartaxo e hoje integra uma das mais conceituadas companhias de dança
Rita Omar chegou aos 18 meses de vida a Vale da Pinta, no Cartaxo, directamente de Moçambique. Na viagem de avião foi acompanhada por uma hospedeira de bordo. A mãe biológica ficou em África. A menina foi acolhida no seio da família “branca” do pai. Apanhou fruta e trabalhou nas cantinas da Opel para ajudar a pagar os estudos. Tornou-se bailarina - contra todas as vontades – e integra hoje uma das mais conceituadas companhias de dança portuguesas. Tem 25 anos, sangue negro “com orgulho”, olhos brilhantes e uma vontade inabalável de correr mundo.
Quem disse que uma bailarina deve ter os cabelos perfeitamente alinhados na rede? E por que não pode ter uma careta na fotografia que ilustra o perfil no facebook? Rita Omar está longe de ser o estereótipo de uma bailarina clássica. A menina irreverente, que desde cedo perseguiu um sonho, está na linha da dança contemporânea. Desde a ponta dos seus cabelos carapinha, indomáveis, até aos pés que sempre se sentiram desconfortáveis sobre as clássicas pontas. Nasceu em Moçambique - onde o pai, carpinteiro de profissão, trabalhou durante uma temporada - mas foi no concelho do Cartaxo que cresceu. Chegou aos 18 meses à aldeia de Vale da Pinta por insistência do progenitor. Foi criada com a família branca do pai e apesar de ter nascido fora do casamento acabou por ser recebida com carinho. Na viagem de avião, sem nenhum elemento da família, foi acompanhada por uma hospedeira de bordo. A mãe biológica ficou em África. Rita Omar perdeu-lhe o rasto, mas diz que não sente saudades de uma realidade que não conhece. Hoje tem 25 anos, a pele morena, os gestos suaves de bailarina que usa durante a conversa de café e um olhar ambicioso de quem quer adiar projectos de família e pretende correr mundo. Depois da morte do pai a madrasta, costureira, bem como a irmã e o irmão, foram viver para o Cartaxo. A menina, muitos anos mais nova que os irmãos, acabou por ser criada quase como filha única. Mas foi em Vale da Pinta que morou até aos quatro anos. Dançava a lambada nos arraiais da festa anual da freguesia. Rita Omar não se recorda, mas a irmã mais velha garante-lhe que sim. O sonho de ser bailarina chegou em pleno aos 15 anos. Rita Omar perseguiu-o com todas as suas forças. Contra todas as opiniões. As de quem achava que dança não se estudava. Tão pouco servia para ganhar dinheiro. A sua relação com o próprio corpo, com o qual trabalha seis horas por dia - sempre foi intensa. Praticou basquetebol, ginástica, karaté e natação. Para ajudar a pagar os estudos, as aulas e as roupas de ballet na Sociedade Filarmónica Cartaxense, onde se iniciou com a professora Lydie Carnier, trabalhava no Verão. A vindima e a apanha de peras, em pomares de Vale da Pinta, tornaram-se actividades regulares das férias grandes a partir dos 16 anos.Antes de rumar a Lisboa, para integrar a Escola Superior de Dança do Instituto Superior Politécnico de Lisboa, trabalhou nas cantinas da extinta Opel de Azambuja por intermédio de uma empresa subcontratada. Lavava panelas industriais, arrumava garfos, facas e colheres em saquetas individuais que esperavam os operários da fábrica na hora das refeições. Um trabalho duro tornou-se numa experiência rica. Como todos aqueles que lhe têm surgido na caminhada. “Gosto das coisas que dão luta”, confessa. Até já fez telemarketing para uma empresa de telecomunicações. Para estudar conseguiu uma bolsa e dedicou-se de corpo e alma ao curso. “Não saía de uma aula sem ter as ideias arrumadas sobre o que ali se tinha passado. Quando não percebia ficava lá mais um pouco com os professores”, explica. A menina irreverente, que decidiu ser bailarina, deixou cedo a família para ir viver com o namorado que foi um dos seus grandes apoios.Cinema já faz parte do currículoO cinema já integra o currículo daquela que é bailarina numa das companhias de dança mais prestigiadas de Portugal. É uma das negras que faz abanar um leque no filme “Fados” de Carlos Saura. Chamaram-na do corredor da escola para a audição. Estava na altura a frequentar o programa Erasmus na Bélgica, mas a produção pagou as viagens até Madrid onde decorreram as gravações. Desde o início do ano que os seus dias são passados nas imediações do Teatro Viriato, em Viseu, onde reside a companhia de dança de Paulo Ribeiro que Rita Omar integra. O apartamento fica ali perto. E Rita, habituada à correria de Lisboa, confessa-se um pouco cansada com o marasmo da cidade beirã. “Paisagens - onde o negro é cor” é a peça que a companhia está a preparar. Vai ser apresentada primeiro em Viseu. Depois no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, seguindo em digressão. Rita Omar vai encarnar a magia do carnaval de Torres Vedras. Mas a sua ambição será capaz de a levar um dia destes até Israel. É lá que está sediada a companhia que Rita Omar acompanha de perto com admiração. O seu limite é o mundo, mas para crescer como bailarina Rita Omar ainda quer continuar a aprender. Aprender sempre, com humildade, todos os dias.Quando os sapatos altos substituem o fato de treinoNão come carne, mas em contrapartida abusa da fruta, dos legumes e da água. O peixe também entra nas ementas da bailarina Rita Omar que nunca toma refeições antes de uma subida ao palco. Às vezes precisa de tomar vitaminas. O desgaste físico leva-a a consumir doces e salgados, mas as calorias são consumidas na intensidade do trabalho físico diário. Quando não está a trabalhar deixa de lado o fato de treino e procura uns saltos altos para uma saída com os amigos ou um jantar com o namorado, gerente bancário. Maquilha-se antes de subir ao palco. Aplica uma base e um lápis para “abrir o olhar”. Precisa de tempo para se preparar antes de cada espectáculo e de se sentir ligeiramente nervosa - sinal de que está concentrada no trabalho que vai realizar. Declara-se vaidosa o quanto baste, mas também humilde, qualidade que considera essencial para quem quer singrar no mundo da dança. Mais do que um qualquer programa de televisão que apareça a oferecer a fama efémera em bandeja. “Todas as pessoas que trabalham mais tarde ou mais cedo são recompensadas”, garante quem fez desta frase o lema de vida.
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