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“Tribunal da Relação não se justifica em Santarém”

Bastonário da Ordem dos Advogados diz que faz mais falta um Tribunal de Família e Menores na região

O bastonário da Ordem dos Advogados critica a intenção do Governo em criar um Tribunal da Relação em Santarém, censura os privilégios dos magistrados e diz que o segredo de justiça é uma farsa. Marinho e Pinto esteve em Santarém para apresentar o seu livro “Um Combate Desigual” e falar de justiça a convite de O MIRANTE. Antes da palestra realizada na tarde de dia 16 de Setembro na Casa do Brasil, respondeu a algumas questões colocadas pelo nosso jornal.

O primeiro-ministro anunciou em Abril passado a criação em Santarém de três novos tribunais – um da Relação e dois especiais. É uma boa medida?Depende de que tribunais se trata. Penso que o Tribunal da Relação não se justifica em Santarém. Lamento vir aqui dizê-lo. Acho que Santarém não tem um volume de recursos que justifique a existência de um Tribunal da Relação. Porque se for criado o Tribunal da Relação de Faro, como está previsto, ficariam três tribunais da Relação numa área geográfica onde agora existe apenas um, o de Évora, e que a nível nacional é o que tem menos volume de processos. Acho que Santarém deve beneficiar de outras coisas de que realmente necessite e não destas medidas avulsas que muitas vezes podem até lançar suspeitas sobre a verdadeira motivação do que está por trás dessas medidas. Era necessário sim que os tribunais em Santarém funcionassem melhor, tivessem mais magistrados, mais funcionários, melhores instalações. Não só em Santarém mas em todo o país. Em contraponto, o distrito de Santarém não tem qualquer Tribunal de Família e Menores. Aí poderia ter, justifica-se. Devia ter um Tribunal de Família e Menores, por exemplo. Agora um Tribunal da Relação não se justifica. Isto deve ser manigâncias de algum membro do Governo ou de alguma pessoa com outros fins que não verdadeiramente fins de boa administração da justiça. O actual secretário de Estado da Justiça, o advogado João Correia, vive em Santarém. O senhor não morre de amores por ele porquê?Ele retribui-me. Aliás, penso que ele é que não morre de amores por mim, porque eu nunca lhe fiz nenhum mal. Ele simplesmente ficou em último lugar numa eleição em que se anunciou que ia ser bastonário da Ordem dos Advogados. E a partir daí deixou de morrer de amores, ou melhor, começou quase a morrer de desamores por mim. E eu retribuo-lhe. Mas isto são questões que têm a ver mais com o funcionamento da Ordem do que com outras coisas quaisquer.E o que pensa do seu desempenho enquanto governante?Ainda é cedo para avaliar. Se ele fizer um bom trabalho, elogio. Mas para já acho que tem estado a fazer um mau trabalho. Tem estado a nomear comissões para fazer reformas legislativas onde não inclui representantes da Ordem dos Advogados. Isso é mau. Porque quem está no Governo deve ter uma postura de Estado e não uma postura de retaliação e de discriminação de uma instituição como a Ordem dos Advogados. Ele prefere nomear os amigos dele, os fiéis dentro da Ordem, prefere nomear pessoas do seu escritório do que nomear pessoas de uma instituição como é a Ordem dos Advogados. Mas espero que seja só neste aspecto e que noutras medidas ele possa ter um comportamento positivo, correcto e adequado àquilo que se espera de um governante em Portugal.Foi jornalista antes de ser advogado. Pelo que se lê do seu livro, parece não ter em grande conta o jornalismo que se faz actualmente?O jornalismo na área da justiça, infelizmente, é muito mau. Por várias razões. Porque os jornalistas, primeiro, não se assumem como testemunhas da realidade, que deveriam ser, mas assumem-se como juízes. Os jornalistas fazem julgamentos. E isso não é próprio de um jornalista, que deve relatar os factos com isenção e com objectividade e não julgar. Deve apresentar uma informação objectiva, imparcial e isenta, de maneira a que os destinatários da informação possam formular a sua opinião a partir de factos. Não devem é impingir a sua própria opinião nos factos que relatam. Isso é um defeito.E há mais?Por outro lado, os jornalistas infelizmente não têm uma preparação técnico-jurídica necessária para fazer um noticiário correcto, objectivo, rigoroso sobre os problemas da justiça. Ninguém pode fazer notícias sobre um julgamento se não souber as mínimas regras do processo penal. Tal como não se pode fazer um bom relato de um jogo de futebol se não se conhecerem as regras do jogo. Infelizmente, aqui em Portugal os jornalistas que são mandados para fazer a cobertura dos acontecimentos na área da justiça são jornalistas mais indiferenciados, que menos conhecimentos técnicos têm. Isso traduz-se numa informação mutilada, imperfeita, tendenciosa e muitas vezes manipulada pelos vários interesses que se conflituam no interior da justiça.No caso de situações que envolvem a comunicação social há cada vez mais tendência a meterem processos no juízo cível e não no criminal, ao contrário de antigamente. Concorda com essa tendência? Isso pode dar azo a ser diminuído o direito de expressão?Se as pessoas acham que é pela via das acções cíveis que realizam o seu direito ofendido, depende delas e eu não me intrometo. Agora, há muitos processos-crime que são instaurados sem fundamento justamente para ameaçar pôr em causa a liberdade de expressão. Por outro lado, a liberdade de expressão, sobretudo na sua dimensão de liberdade de imprensa, deve ser protegida em primeiro lugar pelos próprios jornalistas. Infelizmente não temos em Portugal um órgão de jornalistas vocacionado para a defesa dos valores da informação e, sobretudo, da liberdade de imprensa e da independência dos jornalistas.Há um sindicato…Há, mas o problema está aí. A liberdade de informação não é um direito laboral dos jornalistas, é uma garantia da sociedade democrática. E portanto só pode ser bem defendida por um órgão com poderes públicos que possa inclusive sancionar os jornalistas que não cumprem.Há esses órgãos com poderes públicos, como a Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC)?Mas são órgãos onde os jornalistas estão em minoria. E isso é perigoso porque são órgãos administrativos nomeados pelo poder político.“O segredo de justiça é uma farsa”A partir do momento em que são divulgados elementos de um processo na comunicação social deve cair o segredo de justiça, para que todos os jornalistas tenham acesso aos elementos?Um segredo só é segredo quando não é conhecido dos outros. Quando se torna público deixa de ser segredo. Infelizmente, em Portugal os segredos têm algumas características, pelo menos na área da justiça, que lhes permite continuar a ser segredo depois de toda a gente saber o que se passa. O segredo de justiça em Portugal é, infelizmente, uma farsa. E é altura de acabar ou com o segredo de justiça ou com a farsa. Porque assim não pode continuar. Isto é uma palhaçada que tem custos gravíssimos para a credibilidade da justiça, para a credibilidade de quem trabalha na justiça e sobretudo para os valores da democracia e do Estado de Direito. Ou se respeita o segredo de justiça ou não se respeita. E como é que isso se consegue?Quem deve respeitar o segredo de justiça são as pessoas que têm o dever funcional de o fazer, os funcionários e os magistrados e aqueles que tomam contacto com o processo. Não é o jornalista. Quem viola o segredo de justiça é quem dá informações ao jornalista. Não podem vir com essa hipocrisia de querer punir o mensageiro porque alguém lhe deu essa informação. Punam quem lhe deu a informação. Arranjem pessoas que cumpram os seus deveres funcionais e protejam o processo. O jornalista só viola o segredo de justiça quando jornais tablóides como o Sol, por exemplo, permitem que os seus jornalistas se constituam assistentes e vão ao processo para tirar informação para publicar. O jornalista só deve publicar a informação que obtenha como jornalista. Não que obtenha como parte de um processo.Há uma justiça para ricos e uma justiça para pobres?Claro que há. Vá às prisões e veja quem está preso. São pessoas que muitas vezes não tiveram uma boa defesa, não tiveram capacidade para ter um bom advogado. Há de facto uma justiça para ricos e uma justiça para pobres. Isso é também uma das deficiências do nosso Estado de direito e da nossa democracia. A justiça deve ser para todos. Quando se apresenta a imagem da justiça com uma venda nos olhos é para ela não distinguir a condição social daqueles a quem se destina. As leis devem ser iguais para todos, mas em Portugal há alguns que são mais iguais do que outros.O que diz do facto de se marcarem vários julgamentos para a mesma hora quando se sabe que não se vão realizar nem metade, obrigando as testemunhas a irem várias vezes perder horas para o tribunal?Isso é a expressão mais visível da falta de respeito de alguns magistrados pelas pessoas que têm de ir a tribunal. É só isso, falta de respeito. Tudo nos tribunais portugueses está organizado em benefício das comodidades e dos privilégios de quem trabalha nos tribunais. É altura de pôr cobro a esta situação. São milhares ou milhões de horas de trabalho que se perdem por ano nos tribunais portugueses inutilmente, muitas vezes por mera comodidade dos magistrados e dos funcionários.Os advogados são muitas vezes acusados de entravar o andamento da justiça. Os advogados representam partes do processo. Representam pessoas que vão a tribunal prestar contas à justiça ou pedir justiça. Naturalmente que o processo tem uma postura conflitual. Há uma parte que quer que o processo ande devagar e outra que quer que ande depressa. O que digo sobre isso é que cabe ao juiz conduzir o processo de maneira a que não haja acelerações bruscas nem haja atrasos injustificados. E deve punir-se aqueles que abusam dos direitos e não tentar eliminar-se direitos.Acha que algumas situações que passaram para os centros arbitrais ou de mediação privados devem passar de novo para os tribunais, sabendo que a justiça é lenta?A justiça tem uma dimensão de soberania que não pode ser afastada por conveniências conjunturais ou por culturas que possam predominar numa determinada época. A justiça é uma das dimensões fundamentais da soberania do Estado e do próprio Estado. A justiça durante séculos foi administrada soberanamente nos tribunais. É aí que tem de ser administrada. As partes, quando a natureza do litígio o permitir, podem voluntariamente ir para outras instâncias ou para meios alternativos. Não podem é ser obrigadas a ir para instâncias não soberanas de administração da justiça. O momento em que o Estado chama a si o monopólio da administração da justiça marca a passagem da barbárie para a civilização. Se o Estado abdica de administrar a justiça as pessoas vão fazer justiça pelas próprias mãos. Isso já está a acontecer em Portugal em muitos domínios.Quais?Já contabilizei mais de uma dezena de pessoas presas por cobrarem dívidas, por fazerem justiça pelas próprias mãos. Porque os tribunais estão a recusar cobrar as dívidas. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça anda a proclamar que os processos de cobrança de dívidas são lixo processual. Quer tirá-los dos tribunais por comodidade dos magistrados. Formem-se mais magistrados, abram-se mais tribunais, mas não obriguem as pessoas a ir para instâncias não soberanas para administrar a justiça. Hoje é mais fácil contratar seguranças para obrigar um devedor a pagar a dívida do que levá-lo a tribunal. Os credores são humilhados nos tribunais, gastam fortunas e muitas vezes não conseguem resolver o seu problema.Sente-se como uma espécie de provedor de Justiça?Não. Já há um provedor de Justiça que eu respeito muito. O bastonário deve ser um provedor da cidadania. Devemos discutir os grandes temas da sociedade, do Estado português, sem complexos, sem abusos da liberdade de expressão, no respeito por todos. E o que pretendo é que a sociedade portuguesa discuta as grandes questões sem constrangimentos, sem medo de discutir e de se exprimir livremente.

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