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Adriana, a enfermeira do povo que conduzia o mini encarnado

Adriana, a enfermeira do povo que conduzia o mini encarnado

Vila Franca de Xira teve durante mais de três décadas uma profissional de saúde dedicada

A menina dos Açores tornou-se enfermeira no Centro de Saúde de Vila Franca de Xira, antiga Caixa de Previdência. Adriana Martins, a quem a comunidade chamou a “enfermeira do povo”, foi uma profissional dedicada durante mais de três décadas. Está aposentada, mas será enfermeira até morrer.

Quando os dois filhos de Adriana Martins integraram o infantário do Centro de Bem-Estar Infantil, em Vila Franca de Xira, o mini encarnado da “enfermeira do povo” – como ainda é carinhosamente tratada na comunidade - tornou-se uma espécie de veículo de emergência não oficial.“Quando um menino batia com a cabeça ou ficava com febre ligavam era para mim. Eu pisgava-me do serviço e levava os miúdos para o hospital. Os meninos que lá estavam e que não eram meus filhos passaram a ser um bocadinho meus filhos também”, conta a enfermeira.Adriana Martins nasceu na cidade da Horta, ilha do Faial, nos Açores, mas chegou à cidade ribeirinha aos 24 anos para o primeiro casamento (ver caixa). Foi trabalhar no centro de saúde, então “Caixa de Previdência”. Decidiu tornar-se enfermeira depois da morte do irmão mais novo, que partiu aos quatro anos com problemas renais e a quem prometeu estudar para aprender o dom da cura. Tinha então 12 anos. Foi levá-lo ao paquete Funchal de onde o menino seguiria, na companhia da mãe, para o Hospital D. Estefânia, em Lisboa. E nunca mais esqueceu a forma como Paulo se agarrou ao pescoço. Deixou o navio soltar amarras e teve que regressar a terra na lancha dos pilotos. “Se existem marcos na nossa vida esse foi um deles. Senti o sofrimento”.Quando a jovem tinha 18 anos a família mudou-se para São Miguel. O pai foi ocupar o cargo de director da Emissora Nacional. A mãe era administrativa na secretaria da Telefónica, em Ponta Delgada. Chegar a Vila Franca de Xira foi um choque para a menina açoriana habituada às vistas largas da ilha. “Quando passei a ponte de Vila Franca de Xira olhei para aquilo que me parecia um buraco e desejei regressar”, confessa à distância de algumas décadas. O que era estranho depressa se entranhou e Adriana tornou-se numa das enfermeiras mais respeitadas. Recusou ser chamada a toques de campainha, como era hábito e passou a exigir ser tratada pelo nome. A segunda pequena revolução foi quando, contrariando as ordens dos médicos, começou a chamar os utentes à sala recusando a ideia de tê-los em fila no corredor. “As pessoas não eram tratadas como pessoas. Eram um amontoado. Talvez por isso me tenham começado a chamar enfermeira do povo. O 25 de Abril tinha-se dado por ali. Acharam que eu era MRPP”, recorda.De vez em quando há quem reconheça a enfermeira na rua. E recorde o jeito de levantar o dedo para impor a ordem. Chamava a atenção às utentes que chegavam de camioneta e reclamavam o atendimento rápido com a mesma naturalidade com que voltava atrás, em plena hora do almoço, para dar uma injecção. “Às vezes dizem-me: «você era a enfermeira mais refilona, mas era com quem nos entendíamos»”.As “pseudo senhoras e senhores” que para quem o povo era ralé também se cruzaram com enfermeira. “Já sabiam que a porta da rua era a serventia da casa”, recorda. Iniciou uma consulta da diabetes com uma das médicas da unidade e chegou a fazer tratamentos à porta do centro de saúde ao homem que percorre as ruas de Vila Franca de Xira de cadeira de rodas. Nunca recusou um prato de sopa, mas revolta-se quando vê na fila dos serviços da Segurança Social pessoas com um maço de tabaco no bolso. Em Vila Franca de Xira conheceu gente pobre muito rica. “Andei na estrada a fazer domicílios e no bairro da pedra furada, numa casa de uma divisão, com uma janela sem vidros, encontrei uma velhinha que tinha uma cama, uma cadeirinha e os lençóis mais alvos que alguma vez vi”. Formou-se na Escola de Enfermagem de Ponta Delgada e trabalhou durante quatro anos na Clínica do Bom Jesus. Foi lá que conheceu a mãe de um bebé que não sobreviveu. Depois de ganhar coragem para pedir roupa lavada ainda saiu a tempo para segurar a cabeça do bebé e colocar-lhe a mão sobre o peito ao derradeiro suspiro. Cumpriu 37 anos como profissional - está reformada há três anos e meio - mas garante que continuará a ser enfermeira até morrer. “Nunca deixei que ninguém morresse sozinho. Dava-lhes a mão com muita força. Se ajudava não sei, mas no dia em que morrer se alguém me der a mão com força se calhar vou um pouco mais confortável”. Casamento em calças de ganga e uma cerveja no café da esquinaUm salto ao Registo civil de calças de ganga, uma sessão de três fotografias e, para terminar, uma cerveja no café da esquina. Foi assim o dia 20 de Setembro para a enfermeira Adriana, agora Martins de apelido, e para o recém-marido, Jorge, supervisor na Refer. Ela usou sandálias. Ele os sapatos que engraxou de véspera. O casamento, informal, serviu para passar para o papel uma relação que já acontecia há ano e meio. Vivem num apartamento neutro, sem nada que os ligue ao passado. O ambiente de felicidade pressente-se com a mesma intensidade com que passam os comboios na ferrovia, ali mesmo ao lado, em pleno coração de Vila Franca de Xira. Adriana conheceu Jorge no estabelecimento onde ia almoçar, perto da sua antiga casa. “Ele ia almoçar com o avô, o senhor Artur. Enquanto o neto não chegava lá ia a enfermeira Adriana arranjar-lhe o prato porque o senhor tinha artroses nas mãos”.Tem dois filhos e três netos. Está reformada. É católica. Foi durante muitos anos praticante, mas prefere praticar o bem no dia a dia. Faz ginástica esticada no chão de casa. Não tem empregada de limpeza. Cozinha se for preciso, mas prefere não ficar de plantão à caserna. A morte assusta-a. Como a noite. É para evitar os tons sombrios que escolhe para os quadros que pinta as cores fortes de azuis e vermelhos. A fazer lembrar a água e o fogo. Uma segunda casa nos bombeirosHá cerca de oito anos Adriana Martins viveu uma situação traumática ao assistir à morte súbita do primeiro marido à porta de casa. “Morreu-me nos braços. Pedi ajuda, mas a linha de emergência desvalorizou a situação. Passei muito mal. Andei a bater com a cabeça pelas paredes e pedi ajuda. Não dormia nem de noite nem de dia. É difícil aceitar que podia ter feito alguma coisa, mas não o fiz por falta de meios”, analisa.A morte do pai dos seus dois filhos, com quem esteve casada 29 anos, custou-lhe uma depressão que ajudou a curar com a ajuda dos soldados da paz. Actualmente está na reserva da corporação de Vila Franca de Xira, mas chegou a ser adjunta de comando.“Um dia fomos chamados para a estrada do camarão. O carro estava no campo. Atrás estava um jovem que não se sabia como tinhas as pernas. Tive que trazer a mãe, em choque, para o hospital e fui trabalhando a parte psicológica”, diz a enfermeira que reconhece que a técnica para lidar com situações limite não se aprende na escola. “Isto nasce connosco. Temos é que aprender a ajeitar o ramalhete. Umas vezes temos que dar um abanão. Em outros casos é preciso dizer tudo com calma”.
Adriana, a enfermeira do povo que conduzia o mini encarnado

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