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“Não é com espírito de vingança que se promove o desenvolvimento humano”

“Não é com espírito de vingança que se promove o desenvolvimento humano”

João Serrano não se arrepende de ter aceitado o convite do PS para integrar lista de Rosa do Céu mas se fosse hoje recusava

Foi presidente da Assembleia de Freguesia de Alpiarça, em 1976, nas primeiras eleições democráticas realizadas em Portugal, eleito pelo PCP, tendo ficado até 1980. Em 2001 aceita o convite para integrar as listas do PS, lideradas por Joaquim Rosa do Céu. Não foi eleito mas chegou a chefe de gabinete do presidente da câmara. João Serrano, 59 anos, aceitou o convite porque confiou nas pessoas mas se fosse hoje recusava. Não se arrepende do que fez na vida e considera que as pessoas têm que passar pelas experiências para perceberem que tomaram a decisão errada. Licenciado em Economia, é o presidente da Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça e o principal impulsionador do projecto de candidatura avieira a património nacional.

O facto de a sua filha ser a actual presidente da Junta de Freguesia de Alpiarça é o concretizar de aspirações que tinha para si ou nunca quis um cargo político?Não concorro para cargos políticos. Tive essa possibilidade várias vezes mas não foi algo que ambicionasse. No entanto, entendo que quem exerce um cargo político tem uma enorme responsabilidade que é cumprir o que promete às pessoas durante a campanha eleitoral. Essa dimensão ética é fundamental. Se eu tiver compromissos na minha vida pessoal ou profissional que me possam vir a inibir de exercer um cargo político, porque não tenho hipóteses de cumprir com aquilo que prometi, é preferível nem sequer me candidatar.Foi chefe de gabinete de Joaquim Rosa do Céu no seu segundo mandato na Câmara de Alpiarça. Considera que as promessas feitas nessa altura foram cumpridas?Acredito sempre que as pessoas dão o seu melhor e que existem várias circunstâncias que podem inibir as pessoas de cumprir ou não cumprir. Foi o primeiro presidente da Assembleia de Freguesia de Alpiarça eleito democraticamente. Deve ter sido um desafio.Uma assembleia de freguesia era algo que nunca tinha existido no nosso país. Tínhamos um programa, prometemos aos eleitores que íamos trabalhar para cumprir com o programa, e cumprimos. Foi possível fazer muita coisa com poucos meios. Reuníamos mensalmente quando o regimento dizia para reunirmos de três em três meses. E reuníamos sem receber nada em troca.E concorda que os eleitos das assembleias municipais e de freguesia recebam actualmente senhas de presença pelo cargo?Faz-me muita confusão como é que alguém recebe verbas por estar nas assembleias. Uma pessoa quando se compromete com as populações, pelo menos a estes níveis, não pode pensar em receber dinheiro. Este é um tipo de trabalho que deve ser exercido por altruísmo político e isso é algo que deve começar a ser discutido pelos eleitores e eleitos.Há gente hoje que vai para esses cargos pelas senhas de presença?Não estou a dizer isso. Um cargo político desta natureza que envolve uma proximidade tão intensa com as populações não pode ser remunerado a este nível porque, aí sim, pode criar-se o hábito de aparecerem às reuniões só porque se tem uma senha de presença. Viver em democracia é também atingir um nível de proximidade com as pessoas, onde as senhas de presença são dispensáveis porque estamos a representar os eleitores. É um espírito de missão.Foi presidente da assembleia de freguesia num período. As relações políticas eram piores do que as dos últimos anos em Alpiarça, com ataques duros entre PS e PCP?Não. Passei por esse período inicial e foram cometidos erros. Eu próprio reconheço que cometi erros mas nada que se pareça com o que se passa ainda hoje em Alpiarça. Para quem suporta décadas de ditadura e repressão é muito difícil apagar essas marcas. Havia companheiros e camaradas de luta que não tinham partido mas que também passaram mal. Essas pessoas eram olhadas com desconfiança porque, em determinada altura, manifestavam a sua opinião que não estavam de acordo.Estas guerras políticas que assistimos nos últimos tempos em Alpiarça fazem sentido nos tempos que correm?Isso não faz sentido nenhum em qualquer tempo.Como é que muda do PCP para o PS?Acreditei na palavra. Confiei nas pessoas.Se fosse hoje ainda acreditava?Com a experiência que tenho, se fosse hoje não aceitaria.Arrependeu-se de ter aceitado o convite para integrar as listas do PS?Não. É preciso viver a experiência para perceber que se está errado. Por que é que hoje não aceitaria?As relações entre partidos neste momento continuam muito crispadas. Entre pessoas também, embora continue a considerar que exercendo cargos de natureza cívica, sem querer, estamos a aproximar-nos das pessoas, mesmo que sejam pessoas que durante muitos anos se afastaram de nós por variadas razões. A confiança cria-se através de muito trabalho, mas principalmente através de planos que depois, aos poucos, vão sendo cumpridos.A CDU reconquistou a Câmara de Alpiarça nas últimas eleições. Que ideia tem do novo executivo municipal?Os presidentes da câmara, assembleia municipal e junta de freguesia são pessoas que gostam de dialogar e que estão disponíveis para encontrar soluções no seio da própria comunidade. Esta é a condição mais importante para que um político possa acreditar que vale a pena exercer o cargo e que está em condições de prometer e cumprir. O actual presidente da câmara, para além de saber dialogar, é também genuíno e é também por causa disso que as pessoas vão acreditar que daqui a algum tempo será possível fazer coisas interessantes em Alpiarça. Desde que se tenha as pessoas a acreditar nos projectos é possível fazer muita coisa com pouco dinheiro.Alpiarça precisa mesmo de um plano de saneamento financeiro?Sim. Qualquer instituição pública ou privada que tenha dificuldades financeiras sérias, que tenha dificuldade em honrar os seus compromissos de curto prazo, por exemplo com fornecedores, deve pensar em negociar com instituições bancárias e com o Estado a reconversão dessas dívidas de curto prazo em dívidas de médio e longo prazo. Um saneamento financeiro é um plano que permite reequilibrar as contas de uma autarquia a partir de uma negociação da dívida para que ela possa ser amortizada num médio e longo prazo para que os planos possam ser concretizados. Caso contrário existe permanentemente o sufoco dos credores a bater-nos à porta e não é possível trabalhar nessas condições.“A melhor maneira de liquidar uma pessoa é enlamear o seu nome”Já ultrapassou a situação em que foi envolvido relacionada com o acesso a sites pornográficos através dos computadores da câmara?Essa é uma questão que me há-de acompanhar no meu íntimo porque são coisas que não se esquecem. A melhor maneira de liquidar uma pessoa moralmente e de aniquilar o seu ânimo é enlamear e desgastar o nome. Situações dessas nunca são esquecidas. Só tenho que deixar de falar sobre o assunto e continuar a trabalhar. Não falei sobre o assunto e respondi com actos, porque é isso que se deve fazer.Acha que foi uma estratégia delineada para criar confusão?É possível. Criei um pequeno dossiê com todas as provas e incidências, porque eu próprio me vi obrigado a construir uma memória. Escrevi para mim e essa memória está comigo. Hoje percebo que ainda vivia no passado. Entrei na câmara no mandato do PS como se ainda estivesse em 1976. Acreditava que ainda era tudo muito bonito.Pelo menos acreditava que não era assim tão feio.Que aprendizagem retirou desta experiência?A conclusão a que chego é que para situações destas o que está resolvido, resolvido está. O tempo encarregou-se de resolver tudo. As pessoas hão-de perceber que não é com conflitualidade, não é com este espírito que foi sendo criado, de vingança a todo o custo, que conseguem promover o desenvolvimento humano. Pelo contrário.Chegou a acreditar que aqueles episódios realmente aconteceram?Tenho provas dos factos que me afastam de todo o processo. Não fui educado para conceber situações como aquela mas é preciso passar por aquelas situações para colocar os pés na terra e perceber que o homem hoje também é isto. O melhor antídoto para combater o egoísmo e este “vale tudo”, é continuar a trabalhar. Não é com este tipo de atitudes que conseguimos resolver problemas em comunidade e estas só agudizam divergências e enfraquecem a comunidade.Região não tem sabido aproveitar património deixado pela cultura da borda d’águaÉ presidente da Associação Independente para o Desenvolvimento Integrado de Alpiarça (AIDIA) e uma voz activa na vida associativa do concelho. O que é que o motiva no movimento associativo?As associações são espaços onde as pessoas se encontram para promoverem o desenvolvimento humano. São sítios onde se pratica a democracia e onde as pessoas são capazes de sacrificar até a sua vida pessoal para concretizar projectos que beneficiam a comunidade. Gosto de me envolver no movimento associativo e de sentir que estou a contribuir para o desenvolvimento do concelho em várias áreas.Teve outras experiências no movimento associativo?Em 1972 criámos um grupo de teatro em Alpiarça que durou dez anos. Já me disseram que terá sido um dos maiores do país. Chegámos a ter mais de 40 pessoas a trabalhar no grupo, de todas as idades e de várias classes sociais. Foi a partir do grupo de teatro que conseguimos aproximar as duas colectividades mais representativas do concelho, os Águias e a sociedade filarmónica.O que fazia no grupo de teatro?Fazia de tudo um pouco, era o homem dos sete ofícios. Também representei teatro infantil mas habitualmente era o ponto. Quando algum actor faltava tinha que encarnar essa personagem. Como sabia todas as falas calhava-me a mim. Uma vez tive que fazer de urso porque o colega não pôde estar presente.Disse recentemente que o projecto de candidatura da cultura avieira a património nacional corre o risco de não sair do papel. Porquê?É uma situação muito delicada porque neste momento estamos numa encruzilhada. Temos a possibilidade de fazer as instituições envolvidas funcionarem e apoiarem este projecto. Se as instituições não cooperarem com o Instituto Politécnico de Santarém é possível que o projecto morra na praia.O que é que está a travar o avanço do projecto?Quando apresentei esta preocupação ainda não tínhamos feito reuniões com as instituições envolvidas. Se não for possível apoiarem as autarquias para investirem na reabilitação de todas as aldeias avieiras e na concretização de projectos âncora como é, por exemplo, a sinalização marítima do rio Tejo entre Vila Franca de Xira e Valada (Cartaxo) que possibilita o tráfego fluvial em segurança, o projecto não avança.Acredita que mesmo com a crise política e financeira do país o projecto avance?Se tudo correr bem, este ano já se começa a fazer obras para iniciar o projecto. É nestes momentos que se deve promover o investimento e que se devem apoiar as instituições e os empreendedores que mostram vontade e perseverança para acreditar e continuar com os seus projectos. É na adversidade que os projectos devem ser apoiados.Este projecto é a ‘menina dos seus olhos’?Não. É um projecto que, conjugado com outros projectos em que estou envolvido, pode transformar-se na menina dos meus olhos. A menina dos meus olhos é um conjunto de pequenos projectos que juntam à sua volta pessoas e instituições que cooperem, que trabalhem com altruísmo para se fazer perceber e provar que mesmo com fracos meios financeiros conseguimos fazer muito. A região tem sabido aproveitar o património que lhe foi deixado pelos avieiros?Não. Aquilo que nos últimos 30 anos tem acontecido é o desvio das pessoas para as novas casas tipo condomínio e para os centros comerciais porque isso é que corresponde ao novo modelo de desenvolvimento que foi criado. O resto não tem tido interesse, quando deve ser exactamente ao contrário. Deve-se valorizar e trabalhar muito para recuperar tudo o que é nosso. É a memória do passado.O homem que sonhava mudar o mundoJoão Serrano nasceu a 23 de Janeiro de 1952 em Alpiarça. Tem duas filhas, uma com 31 anos e outra com quatro anos, e dois netos com cinco e um ano. Considera que ser pai numa idade mais madura lhe permite ter mais tempo para acompanhar a filha mais nova o que, confessa, não conseguiu fazer com a filha mais velha. “Fui um pai ausente com a Joana porque queria endireitar o mundo e esqueci-me que o mundo começava em casa”, afirma.A filha mais velha, Joana Serrano, é a actual presidente da Junta de Freguesia de Alpiarça, eleita em 2009 pela CDU. João Serrano afirma que não dá conselhos à filha sobre política confessando-se orgulhoso do percurso de vida da primogénita. Licenciado em Economia, tem um mestrado em Gestão e está a fazer um doutoramento em Ciências da Educação. “Procuro saltar de universidade em universidade para ir recolhendo ensinamentos teóricos que depois me ajudam a perceber como é que devo agir na prática”, explica. Publicou seis livros e já está a preparar outros. Falam todos sobre desenvolvimento humano.Quando andava no ensino superior, em 1972, os protestos estudantis contra o regime político da altura atingiam o auge e João Serrano, com a vontade de ‘mudar o mundo’, conta que chegou a assistir ao assassinato de um colega no anfi-teatro da universidade. Ele próprio também foi agredido pela polícia política do regime e teve que levar 18 pontos na cara. “Não morri por acaso. São marcas que ficam para toda a vida”, realça.Foi presidente da Assembleia de Freguesia de Alpiarça nas primeiras eleições livres em Portugal, em 1976, eleito pelo PCP. Actualmente dedica-se a vários projectos sendo o mais conhecido o projecto de candidatura da cultura avieira a património nacional. Anda de um lado para o outro em reuniões para dar vida ao projecto que “emperra”, como muitas outras coisas no nosso país, na burocracia. O economista garante que, neste momento, não tem tempo para si e que a saúde está a ressentir-se disso. Mas quem corre por gosto não cansa e João Serrano corre, definitivamente, por gosto e não é capaz de estar parado.
“Não é com espírito de vingança que se promove o desenvolvimento humano”

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