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Um homem dos sete ofícios obcecado pela escrita

Um homem dos sete ofícios obcecado pela escrita

Lima Rodrigues conta episódios de uma vida preenchida onde os livros são figura central

António de Lima Rodrigues editou muitos milhares de livros. Escreveu centenas de contos policiais, porque para ele a escrita é uma obsessão, uma febre. Conviveu com figuras como Natália Correia e David Mourão-Ferreira. Hoje vive na casa herdada do pai, em Santarém, na companhia da sua cadela, de livros e de muitas, muitas memórias.

Lima Rodrigues é um conhecido escritor de contos policiais e não só, livreiro e dono de uma editora e galeria de arte na zona de Lisboa onde conviveu com nomes grandes das nossas letras, como Natália Correia, Ary dos Santos e David Mourão-Ferreira. Durante quase 30 anos foi também o Ernestino, guarda-redes de hóquei em patins, tendo jogado na primeira divisão pela Física de Torres Vedras. Foi contabilista, empresário de restauração e no sector da pecuária, coleccionador e negociante de antiguidades, crítico literário, dono de um jornal.António Ernestino de Lima Rodrigues, 77 anos a completar em 19 de Abril próximo, tem muitas histórias para contar. Umas publicáveis, outras que prefere deixar ficar entre ele e o jornalista. Conta-as para que possamos entender o seu percurso de vida, uma existência cheia com muitos cenários e acção diversificada. Como escritor de contos policiais, teve o apogeu nos anos 60 e 70 mas continua a escrever para publicar. A escrita curta, objectiva, sincopada conferia-lhe um estilo muito próprio, diz. Quem conversar com ele não o adivinha. Gosta de contar histórias e de meter mais histórias no meio da cada uma. Detalhes que podem fazer a diferença mas que também podem fazer perder o fio à meada.É no café que habitualmente frequenta, no Alto do Bexiga, periferia de Santarém, que a conversa se inicia. À nossa espera, sentado junto a uma mesa de madeira com um café à frente, está um homem de porte altivo, olhos claros, farta cabeleira grisalha puxada a pente para trás, barba branca de profeta, um fio com um Cristo crucificado ao peito. É cristão, mas não é presença habitual em igrejas. Vai quando acha que tem de ir. Como às missas que mandou rezar pelas almas dos seus entes mais próximos, mulher, pais, irmão e a filha única que perdeu no ano passado. As lágrimas surgem quando os recorda. Todos partiram. Ele ficou.Lima Rodrigues, nome de guerra do escritor e editor, vive hoje com a sua cadela pastor alemã – “ela é que me atura!” - na casa térrea que herdou do pai, no Jardim de Cima, arredores de Santarém. Rodeado por milhares de livros e artefactos diversos, onde se destacam imagens religiosas e muitas fotografias da filha amada. A Santa Casa da Misericórdia presta-lhe serviço de apoio domiciliário. Não esconde que passa por dificuldades financeiras. A reforma de cerca de 390 euros não dá para grandes floreados. O subsídio por “mérito cultural” a que se candidatou ao Ministério da Cultura, já lá vão seis anos, continua sem chegar. “Era o suficiente para viver mais desafogadamente”, diz.O contabilista escritorNasceu em Torres Vedras e conheceu Santarém pela primeira vez aos seis anos, quando o pai, homem ligado à hotelaria e restauração, veio trabalhar como empregado para o emblemático Café Central. Recorda-se desses dois anos em que estudou na escola primária do Pereiro, antes de rumar para Sobral de Monte Agraço, onde o progenitor foi fundar o café e restaurante Central tinha ele 8 anos. Ele e o irmão, fardados a rigor, ajudavam a servir às mesas para divertimento dos clientes. Ainda hoje se recorda disso com revolta. Achava que o pai fazia deles “palhaços”. E nunca se cansou de lhe o dizer ao longo da vida.Entretanto o pai regressa a Torres Vedras, onde António faz o liceu e aprende a lidar com números, balanços e balancetes. Aos 20 anos a família desagua novamente em Santarém, onde o pai inicia segunda comissão no Café Central. Lima Rodrigues vai trabalhar como empregado de escritório na Sociedade de Combustíveis de Santarém, distribuidora dos produtos da Sacor e da Gazcidla no distrito.A escrita já lhe estava no sangue há muito. Concorreu a vários concursos nacionais de contos policiais promovidos pelo carismático Artur Varatojo, também ele escritor, que tinha programas ligados ao conto policial na rádio e na televisão. Em 1961, 1962 e 1963 foi sempre premiado. Deu nas vistas e o “inspector” Varatojo, como também era conhecido, convidou-o para colaborador, em meados dos anos 60. Já era na altura chefe da contabilidade na empresa onde trabalhava em Santarém. Vai trabalhar como técnico de contas para a Movierecord portuguesa em Lisboa, concessionária da publicidade na RTP e onde Varatojo era quadro superior. Começa assim a sua fase na capital, onde fundou a editora e galeria Panorama, em Alfragide (Amadora). “Como escrevia sabia que havia muitos autores que tinham dificuldades em publicar”, justifica. Mensalmente saíam exemplares de várias séries, do policial ao western, passando pelo romance e poesia.O 25 de Abril transtornou-lhe a actividade literáriaVende a editora, livraria e galeria Panorama a um afilhado de casamento no princípio da década de 70 e cria a Tertúlia do Livro, uma editora que vendia livros por assinatura e que tinha base no Vimeiro, onde passou a residir. Nessa época dirigia também o Jornal do Oeste, sucessor do Riomaiorense, com sede em Rio Maior, que foi desactivado em 1975. O título ainda está registado em seu nome.A descolonização acabou por ditar o fim da Tertúlia do Livro, porque a maior parte dos seus quase três mil assinantes habitavam nas ex-colónias portuguesas - “e quando vieram em debandada acabou-se”. Com o 25 de Abril desapareceram também alguns dos jornais e revistas onde publicava contos, como O Século, o Diário Popular, as Selecções Femininas, o Clube das Donas de Casa e a Modas e Bordados. E lá se foi mais uma fonte de rendimentos.Antes e depois disso teve muitas outras actividades. “Sempre fui uma pessoa dada aos negócios”. Foi dono de um restaurante em Elvas, ainda nos tempos da ditadura de Franco em Espanha, onde vendia livros proibidos no país vizinho. Teve duas explorações pecuárias em Santarém. “Fiz tanta coisa. Ou fui obrigado a fazer…”, sintetiza.O convívio com Natália Correia e Bernardo SantarenoA partir da segunda metade da década de 60, Lima Rodrigues conviveu com nomes prestigiados das letras nacionais como Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Dórdio Guimarães, Ary dos Santos, Bernardo Santareno, João Rui de Sousa. O bar que tinha na sua galeria e livraria – “foi a primeira do país a ter bar”, sublinha mais do que uma vez – era ponto de encontro para tertúlias. Frequentou também a casa e o bar de Natália Correia, em Lisboa. Mas garante que não levou uma vida propriamente boémia. Lembra-se de andar com alguns desses intelectuais a colar cartazes pela calada da noite, numas eleições de que já não se lembra, mas que foram ainda no tempo da ditadura. “Depois do 25 de Abril já não tinha graça nenhuma”, ironiza.Falavam de política, “mas falar de política é uma coisa e ser político é outra”, diz. “Nós no grupo podíamos trocar ideias sobre política mas interessava-nos mais a parte cultural, como mostrar originais uns aos outros. Era mais a parte do convívio cultural propriamente dito do que estar a perder tempo a discutir política”. Nunca foi militante de qualquer partido e a política não o seduz. “Fiz sempre um manguito quando me convidavam para integrar este ou aquele partido. Quis sempre poder falar à vontade”. Mas continua um cidadão atento. Quando vendeu a editora esse convívio perdeu-se. Foi instalar-se na Maceira, perto das termas do Vimeiro, para pôr a Tertúlia do Livro a funcionar com a mulher. “Quando se cortam ligações de amizade pessoal ficam sempre saudades, períodos até de alguma nostalgia ou melancolia”, reconhece. A grande maioria já não faz parte do mundo dos vivos. “Não era capaz de viver sem escrever e sem ler”Escritor deu 40 mil livros à Junta de Freguesia da Póvoa de Santarém Lima Rodrigues deu há uns anos parte do seu espólio, entre o qual diverso mobiliário e cerca de 40 mil livros, à Junta de Freguesia da Póvoa de Santarém. Um acervo que tinha na sua casa de Sobral de Monte Agraço, que entretanto deixou. “Só quero que estimem os meus livros”, diz. O acervo literário foi devidamente acondicionado e ordenado por uma técnica da Câmara de Santarém e encontra-se disponível para ser utilizado na biblioteca existente nas instalações da junta ou para ser requisitado, garante o presidente da junta de freguesia, António João Henriques, quando questionado sobre o assunto por O MIRANTE. Em casa, Lima Rodrigues ainda estima ter mais seis ou sete mil livros, de várias temáticas mas com o género policial em maioria. Há livros por todo o lado, em estantes, cómodas, em cima de cadeiras, nos dois quartos, na sala. Espólio que foi sendo acumulado como editor, mas também comprado em alfarrabistas e oferecido pelas editoras enquanto crítico literário.E porquê a doação à Junta da Póvoa de Santarém? Lima Rodrigues diz que foi por influência de dois amigos oriundos dessa pequena localidade que deram a sugestão quando se viu confrontado com a necessidade de dar destino a esse espólio, já que na sua casa de Santarém era impossível guardá-lo. Escrevia às escondidas na casa de banhoLima Rodrigues começou a escrever contos aos 10 anos e viu a sua primeira história publicada aos 12 anos, num jornal de Torres Vedras, a sua terra natal. A necessidade de passar para o papel as tramas que o cérebro congeminava sempre foi compulsiva. Chegou a fechar-se na casa de banho, nos tempos de estudante e já como empregado, para escrever na hora. “No liceu às vezes dava por mim a escrever histórias. Era uma coisa que me obcecava. É um género de febre que a gente sente e que não se consegue aguentar”, conta.Domingos Cabral, um amigo de Santarém que tinha uma secção policial num jornal local, lê alguns dos seus contos e incita-o a publicar. Começou aí uma colaboração regular com vários jornais e revistas de expansão nacional, desde o famoso diário O Século à publicação feminina Modas e Bordados. “O meu estilo é muito sincopado. Tenho contos com seis linhas, mas está lá tudo”. Diz que sempre teve tendência para “condensar”.“Não era capaz de viver sem escrever e sem ler”, afirma. Ainda hoje usa a escrita como escape. Por vezes está no café e recorre a um guardanapo para expressar as ideias. Em casa usa a velha máquina de escrever que é uma espécie de extensão do seu cérebro a que as mãos dão vida. Houve alturas em que escreveu de enfiada durante 14 ou 15 horas. “Era até acabar” a história.Diz que é na realidade quotidiana que sempre se inspirou para urdir as suas tramas. “Já o Conan Doyle, criador do Sherlock Holmes, dizia que a realidade supera muitas vezes a ficção”, afirma.“Sou cruzado de oestino e de ribatejano”Lima Rodrigues regressou a Santarém há cerca de 10 anos para tomar conta do pai, entretanto falecido. “Quando o meu pai faleceu uma das heranças com que fiquei foi os amigos dele”, diz referindo-se a pessoas com quem ainda hoje convive. Apesar de ser natural de Torres Vedras considera também Santarém como a sua cidade, onde iniciou a sua vida profissional e onde praticou hóquei em patins e futebol pelos Empregados do Comércio, também conhecidos por “Caixeiros”.“Continuo a gostar muito de Santarém, do ambiente da cidade. Sou oestino mas quando me perguntam de onde sou digo que sou cruzado de oestino e de ribatejano”. E, como bom ribatejano, é apreciador da festa brava, concordando que os preços baratos ajudam a levar mais gente às praças de toiros, como acontece em Santarém. Mas nem a política levada a cabo por Moita Flores na promoção da festa brava o leva a ter grande admiração pelo trabalho do presidente da Câmara de Santarém em termos culturais. “Acha que houve alguma transformação cultural a não ser os petiscos, o comer e o beber. É só o que vejo. É só disso. Estas festas dizem o quê? Só têm a finalidade de acabar a comer e a beber. Não há sumo, só há vinho tinto”, considera.Falsificou a assinatura do pai para poder jogar hóqueiErnestino, nome por que era conhecido no mundo desportivo, estreou-se como jogador de hóquei em patins no escalão senior aos 17 anos com a camisola do Sporting de Torres. Para isso teve de falsificar a assinatura do pai, imprescindível para que tivesse autorização do ministro da tutela, já que era menor. “O meu pai não queria que eu praticasse desporto”, diz em jeito de justificação.Emociona-se a falar dos seus tempos iniciais no hóquei em patins, na Física de Torres Vedras, onde aprendeu a patinar e onde organizaram os primeiros campeonatos infantis. Acabou a carreira no Belenenses, aos 40 anos. Do hóquei ficaram algumas mossas, como dois dentes partidos e uma marca no nariz causadas por boladas.Na sua juventude foi um desportista todo-o-terreno. Corria, saltava à vara e em altura e praticava lançamentos de dardo, peso e disco. Treinava de madrugada em Torres Vedras. Também jogou futebol no Torreense e mais tarde nos Empregados do Comércio em Santarém. Aí era avançado-centro e destacava-se pela velocidade. “Era doido por desporto”, assume.
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