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“Há mulheres que continuam a viver o amor e o sexo como no tempo de Salazar”

A escritora e jornalista Isabel Freire falou sobre o seu novo livro na Póvoa de Santa Iria

Muitas mulheres da época da liberdade vivem o amor e o sexo como no tempo de Salazar. Quem o diz é a autora do livro sobre a vida privada em pleno Estado Novo. A obra “Amor e Sexo no tempo de Salazar”, da autoria da escritora e jornalista Isabel Freire, foi apresentada no sábado à tarde na biblioteca da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira. O MIRANTE esteve à conversa com a escritora.

O seu livro intitula-se “Amor e sexo no tempo de Salazar”. Esse cinzentismo terá sido sentido por todas as mulheres? Mesmo as mulheres operárias na cintura industrial de Vila Franca de Xira, por exemplo, mais emancipadas?Fiquei espantada com o que concluíram dois historiadores que se debruçaram sobre os contextos de início do século no que se refere às questões da sexualidade. As mulheres que experienciaram vidas mais repressivas do ponto de vista dos afectos e da sexualidade eram mulheres da pequena e média burguesia. Tanto as mulheres operárias quanto as mulheres da alta burguesia e aristocracia tinham nos seus contextos sociais menor repressão. De alguma forma conseguiam ter mais independência…No caso das mulheres operárias temos alguma emancipação que é feita também pelo trabalho e eventualmente um peso menor da religião católica que era muito pesada no contexto da burguesia. A mocidade portuguesa feminina actua sobretudo nas escolas onde estão as meninas da pequena e média burguesia. Nesta sociedade emancipada em que lugar ficam os homens hoje em dia?A emancipação não está feita. Quando é que a emancipação será feita?Quando as mulheres conseguirem afastar do seu quotidiano uma série de questões que vêm lá de trás - que teoricamente estão ultrapassadas - mas na prática não estão. O país é muito diverso mas há muitas mulheres que continuam a estar inseridas num contexto de moralidade que outros tempos. Continuam a viver como muitas do tempo de Salazar?Desde logo as que vêm dos anos 50, que têm agora 70 e 80 anos e que fazem parte da nossa sociedade e portanto têm que ser contadas. Depois muitas das filhas destas mulheres não encontraram contexto de libertação nos meios onde viveram. Encontramos raparigas de 30 anos com uma vida que se afasta deste contexto mas temos mulheres de 30 anos que ainda se queixam de desigualdade na relação, na vida doméstica e no trabalho. Esse trabalho demora tempo a fazer na medida em que estamos a faze-lo há várias décadas. Também é preciso que haja mudança no sexo masculino. Há homens feministas no nosso país. Há outros, a comunidade gay, por exemplo, que desejam que este padrão de masculinidade que vem dos anos 50 desapareça de vez. Outros homens heterosexuais que também não se revêm neste padrão. As mulheres gostarão desses homens sem a exacerbada masculinidade, ligeiramente efeminados a partilhar as tarefas domésticas? Há quem ache que isso tira a masculinidade… Haverá sempre gostos para tudo e ainda bem. Uma mulher pode ter um marido que partilha as tarefas domésticas mas mesmo assim sensibilizar-se por um padrão de masculinidade diferente… Já foi acusada de estar muito direccionada para as questões do sexo e do feminismo?A imprensa fala de sexo todos os dias. A televisão fala de sexo todos os dias. O cinema fala de sexo todos os dias. Indirectamente. Eu tento falar de sexualidade de uma forma responsável e relevante. Talvez haja ainda um pouco de preconceito como se este fosse um assunto menor mas a verdade é que temos hoje teóricos da sociologia, sexologia e filósofos que colocam a sexualidade como um aspecto central na formação indentitária do indivíduo. Ainda que possa ser visto como um assunto menor a verdade é que do ponto de vista académico o tema já é reconhecidamente um assunto de alto interesse para compreender a noss contemporaneidade e a nossa forma de vida. O que mais falta fazer para a emancipação?O padrão da domescicidade feminina era tão forte que foi muito pouco abalado na evolução dos tempos. Acredito que algumas mulheres e homens já têm esta questão completamente resolvida. O padrão da maternidade feminina deve ser horroroso para os homens. Muitas vezes à partida a maternidade é da mãe. Para muitos homens que querem participar activamente na educação dos filhos para muitos isso também é um paradigma a destruir. Eles querem participar. Querem ser pais. Há desigualdades ainda no que diz respeito à organização familiar. A educação dos filhos e a divisão das tarefas domésticas são as questões centrais dessa desigualdade. Com isto a atenção dada aos filhos fica em causa. Isso parte do princípio de que a educação tem que ser dada pela mãe. A mulher trabalha as mesmas horas. A educação das crianças é fundamental nos tempos em que vivemos. Há cada vez menos tempo e isso é terrível. O stress, a falta de tempo, a correria louca, esta incerteza em que vivemos é péssima para a afectividade e sexualidade conjugal. O ócio, o tempo, são ingredientes fundamentais da sexualidade e do prazer. Nós às vezes chegamos a casa como trabalho aceso na cabeça e daqui a nada já estamos outra vez com a cabeça acesa no trabalho. É por isso que muitos casamentos não resultam?Entre muitos aspectos relevantes certamente esta questão – colocada em muitos estudos – de certeza que é relevante. E os excessos de liberdade? Onde é que fica aqui a “moralidade”?Acho que a gente não quer mais moralidade. A moralidade tem que ser construída no respeito pelo outro em primeiro lugar. Por isso é que se fala muito em relações consensuais e exercidas num contexto de liberdade? Acho que essa é que é a moralidade essencial. É perfeitamente imoral que alguém venha dizer que uma pessoa não se pode relacionar com outra pessoa de outro sexo porque essa pessoa acha que tem moral. O que é imoral?Acho que absolutamente imoral o abuso sexual. Acho imoral que não existam mais organismos atentos à questão do abuso. Aqui estamos a falar de uma relação desigual, não consentida, de uma violência. Temos assédio sexual intra e extra familiar que nunca chega a ser identificado. Crianças que crescem na agonia dessas vivências horrosas. Acho que é imoral que o Estado não se empenhe mais em prevenir esta problemática e em ajudar as pessoas que são vítimas a poder saneá-la. Há quatro ou cinco anos vi uma campanha em Berlim que dizia “Se você tem fantasiaas eróticas com crianças por favor ligue para esse número. Isto é prevenção. Pode ter uma fantasia com uma criança e nunca chegar à prática mas isso pode acontecer. O Estado estava a adiantar-se a isso e a pedir-lhes que ligassem. Se me pergunta se é imoral fazer swing ou ser poliamorosa respondo que imoral é impor ao outro uma lógica com a qual não a pessoa não concorda. Este é um espaço de construção individual e liberdade.Antes de ir fazer o aborto as mulheres iam à cabeleireiraNa investigação que fez o que mais a chocou?Muita coisa. Chocou-me imenso a questão do parto, por exemplo. O sexo estava muito associado à gravidez, à reprodução e também muitas vezes à morte. Havia muitas mulheres e crianças a morrer durante o parto tendo em conta as condições em que se faziam. O aborto era comum. O aborto era o método contraceptivo?O aborto era praticamente a forma de resolver o problema. Entrevistei uma senhora que me disse: “já nem me lembro quantos fiz”. A maior parte das pessoas ignoravam as possibilidades contraceptivas que existiam e que eram falíveis. O coito interrompido era a regra. Algumas tinham 10 filhos. Outras tinham 10 abortos, aquelas que tinham dinheiro para pagar à ‘fazedora de anjos’, à abortadeira. Uma médica disse-me que a Maternidade da Estefânia era o único hospital que abria as portas às mulheres que chegavam com complicações do aborto. Havia hospitais que as mandavam de volta. O aborto sim é que era tabu. Antes de ir fazer o aborto as mulheres iam primeiro à cabeleireira para não levantar desconfianças. Tinha saído de casa porquê? O controlo social era horrível e foi também uma coisa que me chocou. O cabeleireiro era razão para sair de casa e lá estar duas ou três horas. Hoje em dia existem outros meios e muitas mulheres continuam a fazer muitos abortos nos hospitais. Justifica-se? Por que é que tens gravidez na adolescência hoje em dia? Por que é que tens infecções pelo VIH tremendas em todas as faixas etárias e também na juventude? Alguma coisa não está a correr bem. Porquê penalizar só o aborto? Isto é sintoma de como a evolução e aparente liberdade está assente sobre uma coisa muito frágil. Tens muitos professores com competências para dar educação sexual nas escolas que estão à nora e sentem que não foram formados, têm dúvidas e gostavam de ser orientados. Já se começou a falar de educação sexual há 40 anos. A Suécia começou a fazê-lo nos anos 40. Estamos em 2011 mas os professores andam ainda a tentar perceber “como, o quê e onde” conscientes de que não foram formados para isso e que têm os seus próprios preconceitos. Há muito trabalho a fazer. Coscuvilhar como era a sexualidade no tempo dos pais“Amor e Sexo no Tempo de Salazar” é o título do livro de Isabel Freire que afasta a cortina alta, espessa e pesada que rodeou o amor e a sexualidade nos anos 50 e apresenta um livro original e surpreendente que desvenda e explora o mundo dos sentimentos no tempo de Salazar.Isabel Freire, 39 anos, alentejana, actualmente radicada em Lisboa, confessa que foi procurar como era vivida a sexualidade no tempo dos pais que têm hoje 70 anos. O sexo como tabu e a repressão a que eram sujeitas as mulheres são temas reflectidos no livro escrito com base em dezenas de entrevistas com a linguagem leve de quem domina a técnica jornalística. “É preciso não esquecer que o sexo com as meninas das nossas relações estava proibido. Não existia. Só que ao rapaz era exigida a aprendizagem das artes da sexualidade, antes de casar. Por isso, havia apenas duas soluções. Ou era encaminhado pelo pai ou outro educador (um tio, um irmão), para uma casa de meninas, onde se pagavam os serviços sexuais à prostitua, ou iniciava a sua vida sexual com alguém de classe inferior, a criada, que não tinha direito a dizer não”, que era um objecto que não sentia uma pessoa”, lê-se na obra.

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