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“Não se mostram os avós doentes aos netinhos para não traumatizar os meninos”

“Não se mostram os avós doentes aos netinhos para não traumatizar os meninos”

Adelaide Alves Dias é uma médica que “relata” casos humanos em forma de contos para lutar contra a desumanização

Esta não é uma entrevista com a coordenadora do Centro de Saúde do Entroncamento. É uma entrevista com Maria Adelaide Lopes Alves Dias, cidadã livre que se preocupa com os outros e se interroga sobre o que a rodeia. Uma conversa com alguém que não tem papas na língua e que usa a arma da ironia para desarmar alguns azedumes em que tropeça no dia a dia.

Alguma vez sentiu a sua actividade profissional limitada por superstições ou crenças religiosas dos doentes?Há muitos anos tive que tratar de uma criança que poderia vir a necessitar de uma transfusão de sangue mas os pais tinham assinado um documento a dizer que não permitiriam essa situação. Procurei ajuda junto do chefe de serviço e foi encarada a possibilidade de, através de meios legais, retirar temporariamente o poder paternal aos pais. A situação acabou por resolver-se sem necessidade de qualquer transfusão.Foi a única situação do género que enfrentou? Tenho uma história cujo desfecho não cheguei a conhecer. Um dia apareceu-me no hospital um casal muito jovem que me colocou uma situação inesperada. Estavam em pânico porque iam casar e antes do casamento as mulheres da família tinham que certificar-se que a noiva ainda era virgem. Como já tinham tido relações tinham viajado de muito longe para tentarem resolver o problema. Se a situação fosse detectada a noiva nunca mais poderia casar e o rapaz teria que casar com outra mulher. Ainda falei com o cirurgião mas não consegui fazer nada porque a verificação da virgindade seria feita no dia seguinte. Há aquela anedota do doente internado que telefona ao médico como única solução para conseguir saber o que tem porque os dias vão passado e o médico nunca passa pela sua cama nem fala com ele. Só posso falar pela experiência que tenho. Nunca me apercebi disso. Antes pelo contrário. De todas as vezes que fui informada que um doente meu tinha sido internado, quando contactei com o colega que o estava a acompanhar no hospital ele pôs-me ao corrente da situação. Nunca me aconteceu encontrar um médico que não soubesse quem era o seu doente e o que ele tinha. Não sei como é que eles interagem com os doentes mas conhecem os casos. Pessoalmente sinto necessidade de estar próxima dos meus doentes.Em alguns serviços o doente não sabe muito bem quem é quem porque há médicos que não usam bata ou usam-na “às três pancadas”. É a favor ou contra o uso de batas pelos médicos? Para mim a bata é essencial. É o meu fato de trabalho e é um elemento identificador. Não critico quem não usa mas a primeira coisa que faço quando chego ao centro de saúde é vestir a bata. Quando se confronta com a situação de doentes terminais em sofrimento o que lhe passa pela cabeça?Temos que ter noção que vai haver um fim. Que não há eternidade física. O que eu gostaria era de conseguir proporcionar calma e serenidade a essas pessoas. Não queria abreviar-lhes a partida. Sou contra a eutanásia. Mas gostaria que a pessoa que sofre sentisse que tinha ali uma mão. Que percebesse que tinha ali um apoio. Qual a reacção das pessoas em geral perante o sofrimento e a morte?A sociedade só mostra o que é belo, perfeito e rico. Exalta-se a perfeição e a saúde e esconde-se a doença, a morte e a fealdade. Não se mostram os avós que estão doentes aos netinhos, para os meninos não ficarem traumatizados. Não se levam as crianças aos funerais. Esconde-se a realidade da vida e quando as pessoas são inevitavelmente confrontadas com a doença e o sofrimento a situação é vivida de uma forma duplamente dramática.No meio de algumas situações dramáticas ocorrem episódios caricatos. Nunca se passou isso consigo? Várias vezes. Acho que acontece com toda a gente. Um dia estava a trabalhar na urgência do hospital de Torres Novas e fiz um pequeno intervalo para ir à copa comer um pão com manteiga que tinha levado de casa porque não tinha tido tempo para almoçar. Mal tinha começado quando alguém gritou que estava a entrar um doente grave. Saí a correr e momentos depois ali estava eu, em cima da maca a fazer massagem cardíaca à pessoa, com um papo seco na boca. Foi uma colega que me chamou à atenção. Na altura nem me apercebi do ridículo da situação. Apercebe-se que há pessoas que não vão comprar os medicamentos que lhes está a receitar, por falta de dinheiro? Muitas vezes somos confrontados com a necessidade de decidir o que faz mais falta ao doente. Nem sempre se consegue. Se eu já sei que ele não vai comprar este ou aquele medicamento, tenho que insistir com ele para comprar o essencial. Felizmente também há instituições que estão a dar apoio a pessoas que não têm capacidade para comprar medicamentos.Alguma vez se sentiu pressionada a receitar menos ou a pedir menos exames?Pressionada não. Sinto que há uma política, com a qual eu concordo, de racionalizarmos os pedidos. Hoje existe legislação em Diário da República, Normas e Orientações da Direcção G. da Saúde e “guidelines” que devemos seguir com o objectivo de racionalizarmos os custos e combater o desperdício que torna o Serviço Nacional de Saúde insustentável. Andámos todos a gastar o que não tínhamos. Nós é que estragámos o Serviço Nacional de Saúde? Há muitas pessoas que só conhecem os seus direitos. Entram no gabinete do médico de família e começam a pedir. Quero uma TAC, uma ecografia, um check-up... é complicado contrariar isto. Muitos colegas receiam o que possa acontecer se não passarem os exames. Passámos a uma medicina defensiva. Ou passamos o que nos pedem ou temos que explicar, argumentar, observar o doente de alto a baixo para verificar se há alguma coisa nele que esteja mal, verificar o seu historial clínico e familiar, para pedir apenas o que se justifica pedir. Há cada vez mais médicos que são também empresários? Como vê essa situação? A culpa não é deles. É do sistema que foi criado. Mas isso não significa que não sejam excelentes profissionais. Conheço alguns que qualquer pessoa desejaria ter a seu lado numa situação de doença. A começar por mim. Custou-lhe a adaptação à informatização dos serviços? Sim. Foi muito difícil. Tenho que confessar que foi muito difícil. Mas trata-se de algo essencial ao bom funcionamento dos serviços. Não podemos rejeitar ou entravar esta evolução. Mas foi duro. Foi um grande desafio, principalmente para quem não estava vocacionado para máquinas como eu que nem sequer tenho computador em casa.Quanto tempo gasta diariamente com burocracia?Mais do que desejaria. Tenho o meu ficheiro de mil e seiscentos doentes e do que eu gosto é de medicina. De tratar das pessoas. Ainda por cima como coordenadora sou uma aprendiz. Mas alguém tem que fazer o trabalho. Temos que viver com isto. Eu e muitos outros colegas que também não se sentem vocacionados para a parte burocrática.Aconselha ou usa mezinhas caseiras para tratar doenças?Não sou especializada. Sei que o chá de flor de laranjeira é bom para a digestão e para a vesícula preguiçosa e pouco mais. Em termos de ervas sou mais pela sua aplicação na culinária. Mas aconselho o termalismo. Há futebolistas que se benzem antes de entrar em campo. Também faz o mesmo?Eu sou religiosa e rezo diariamente. Peço ajuda a Deus para que tudo corra bem. Mas também já me benzi muitas vezes antes de entrar ao serviço. É uma espécie de pedido suplementar de ajuda para dias que antevejo mais complicados É supersticiosa? Tenho uma ou outra superstição (risos). Tenho medo de passar debaixo de uma escada onde esteja uma lata de tinta em desequilíbrio. Quanto a gatos pretos estou vacinada. Tenho um no quintal e estou sempre a vê-lo. Excerto do conto “Ontem, hoje...e amanhã?”“O senhor Manuel, outrora dócil, inibido, pacato e respeitador das regras da vivência numa sociedade local fechada e aparentemente conservadora, perdeu o discernimento por ausência de controlo, tornando-se agressivo, irascível e intratável.- Morreu? - perguntou a sobrinha, quando o vizinho lhe telefonou a contar o sucedido. (tentativa de suicídio).Não mas está internado e dizem que o caso é sério... - respondeu a medo o vizinho.- Então escusava de me telefonar...- e desligou, sem nunca se interessar.”in “O Lado Humano da Medicina - Contos Médicos - Volume IX, Março 2009, Padrões Culturais Editora”.“Ir a pé para o trabalho é um dos meus prazeres”Considera-se uma “acérrima defensora do Serviço Nacional de Saúde”. Interroga-se frequentemente sobre a evolução da humanidade. “Tanto progresso e afinal não somos mais felizes. É uma desilusão”. Escreve para descarregar alguma frustração e revolta. “Não sou escritora. Faço relatos. Junto episódios diversos e construo personagens a partir de características de diversas pessoas que conheci. Não escrevo sobre a vida de ninguém em particular. Invento vidas a partir de factos reais”, explica. E acrescenta: “Há pessoas que não entendem. Que gozam com este meu passatempo mas eu não me importo”.Maria Adelaide Lopes Alves Dias nasceu em Santa Clara, aldeia que é sede da freguesia de Alcaravela no concelho do Sardoal. Foi a 11 de Fevereiro de 1954. Tem lá uma pequena casa, junto à casa dos pais, construída onde existiu a casa da avó materna. Diz que se tivesse muito dinheiro reconstruía a antiga Casa do Povo. “Gosto muito da minha aldeia. Mesmo quando não estávamos lá era lá que passávamos as férias. Tive uma infância muito feliz”, justifica.Tem um irmão, cinco anos mais novo, chamado António, com quem tem uma grande relação de afecto. O pai é professor reformado. Foi delegado escolar no Entroncamento durante anos. Professor Alves Dias. Foi para lá quando Adelaide tinha 9 anos. Antes leccionou em Pedrógão, Riachos, Carrazede. A mãe, Maria Salomé, está acamada há oito anos. “Aqui há tempos falei com um padre. Lamentei faltar tantas vezes à missa uma vez que sou católica. Ele disse-me que a minha missa era a minha mãe”, conta.Durante 18 anos foi médica na Lamarosa, concelho de Torres Novas. Nos livros onde tem textos editados é apresentada como “Médica Rural”. Actualmente desempenha o cargo de coordenadora do Centro de Saúde do Entroncamento, cidade para onde foi devido à doença da mãe. “Uma das coisas que me dá muita satisfação é poder vir a pé de casa para o trabalho. Isto é uma conquista. Eu tenho esse prazer. Podem dizer-me que é um disparate mas é verdade”, refere a certa altura da entrevista. “Sou demasiado rebelde para pertencer a um partido”Foi membro da Assembleia Municipal do Entroncamento eleita pelo PSD. Que gosto lhe deixou a sua passagem pela política?Aprendi muita coisa. Estive por dentro e agora consigo compreender melhor o que se passa. Os políticos em geral dizem que são bem intencionados. É assim? Em termos de intenções são fantásticos. Uns têm intenção de servir e outros têm intenção de se servirem. Porque aceitou ser candidata? Foi por cidadania e porque insistiram muito. Eu já tinha dito que não quatro vezes e à quinta não tive coragem de voltar a dizer não. Falei com a minha família e o meu pai disse-me sempre. “Se é para o bem comum, vai”. Fui como independente mas por um partido que tinha uma linha política com a qual me identificava. Obviamente não foi um partido da extrema esquerda que me veio convidar, embora eu tenha atitudes na minha vida que considero serem de esquerda.Ficou vacinada? Não. Mas se voltar tenho que estudar política. Eu fui para lá sem saber nada e é preciso estudar. Não basta a dedicação. É como tudo. Nunca considerou inscrever-se no PSD?Não tenho feitio. Sou demasiado rebelde para pertencer a um partido e respeitar a obediência partidária. Não consigo. Eu seria uma má militante e para isso não me inscrevo.Nunca se zangaram consigo quando tomava atitudes contrárias às da sua bancada? Comigo não. As pessoas que me convidaram é que sofreram. A mim sempre me trataram bem. Ainda hoje tratam. Estou no conselho municipal de segurança e não noto qualquer animosidade de ninguém. Sinto-me bem tratada, nomeadamente, pelo senhor presidente da Câmara - Jaime Ramos (PSD) mas acredito que se passeiem por aí alguns neurónios bolorentos que não me vejam com bons olhos.Vivemos num país livre onde cada um pode falar livremente?Sem dúvida. Neste país a asneira é livre.
“Não se mostram os avós doentes aos netinhos para não traumatizar os meninos”

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