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Dança aproximou Filipa Francisco das suas raízes

Dança aproximou Filipa Francisco das suas raízes

Coreógrafa e bailarina está a preparar um espectáculo com o Rancho Folclórico de Riachos

Natural de Abrantes, a coreógrafa e bailarina apresenta o espectáculo “A Viagem”, inserido na 3.ª edição do Festival de Materiais Diversos, a 22 de Outubro no Teatro Virgínia, em Torres Novas, onde o fandango se funde com a dança contemporânea.

Que ligação tem com a sua terra natal, Abrantes?Costumo ir com muita frequência à terra dos meus avós (Água das Casas), que já morreram. Esta zona tem uma beleza natural fantástica. O meu avô era o barqueiro contratado pelo Governo e assegurava a travessia do rio com o seu barquinho a remos. Desde Setembro, altura em que estou em residência artística em Alcanena, que aproveito os meus dias de folga para ir para lá.Já viu ou fez algum espectáculo em Abrantes?Em Abrantes não, mas sinto que me tenho vindo a aproximar da zona onde nasci. Um dos grandes objectivos que tenho é um dia levar um pequeno festival a esta zona tal como o Tiago (Guedes) faz aqui. De voltar às minhas raízes e de promover, com os conhecimentos de dança contemporânea que tenho, a cultura na zona onde nasci. Principalmente nas zonas rurais, porque tenho uma ligação muito grande a trabalhar com as pessoas na comunidade. Como este trabalho que estou a desenvolver com os ranchos. É um objectivo a curto, médio ou longo prazo?Como tenho estado a trabalhar em outras cidades do país ainda não fiz nenhum passo para isso acontecer. Mas gostava de voltar a Abrantes e criar uma associação ou residências artísticas, aproveitando uma zona de campo e de natureza. Porque quando estamos a criar necessitamos de um certo isolamento e, ao mesmo tempo, estar próximo de uma cidade já de uma dimensão grande, como é o caso de Abrantes. A realidade é que a vida tem levado a aproximar-me cada vez mais da zona onde nasci (risos).Sente que as suas origens tiveram repercussões no seu trabalho de coreógrafa?Nesta aldeia, Água das Casas, durante muito tempo não houve nem televisão, rádio ou electricidade pelo que as pessoas reuniam-se para contar histórias. Eu acho que este desejo por contar histórias nas minhas peças, sem pensar bem, vem desta questão da oralidade. Há grandes contadores de histórias na minha terra (risos). Tenho pensado no futuro e andei a visitar casas na minha terra para ver se conseguia levar a cabo um projecto de residências artísticas. Já se dança até muito tarde mas há uma altura em que vamos parar e, aí, imagino-me a organizar coisas. Se for na minha região ficaria muito contente. Está a gostar de viver em Alcanena?Em Lisboa tenho sempre muita coisa para fazer. De manhã estou numa reunião de produção, à tarde estou a ensaiar, à noite vou dar aulas e, em casa, ainda respondo a e-mails. Aqui, só estou para isto. É um luxo. Apesar de ser muito intenso, só estamos a trabalhar para isto. É um hiato no tempo que faz com que as pessoas estejam mais unidas. É muito interessante viver numa residência artística. O grupo veio de armas e bagagens para aqui. Moramos numa casa junto do Cine-Teatro São Pedro. Como é que concilia a vida profissional com a pessoal?Sou casada mas não tenho filhos e o meu marido também viaja muito e é “nómada” como eu (risos). É uma questão de gerir. Não é fácil estar sempre a fazer as malas. Às vezes sonhamos e, quando acordamos, não sabemos em que casa é que estamos. Se calhar para a maioria das pessoas é estranha esta “confusão de lares” mas já não imagino de outra maneira. Acaba por diluir estas duas facetas?Sim, porque os amigos são os amigos do trabalho e até os hobbies estão ligados à dança. O único hobbie diferente que tenho é mergulho e apneia do mar. É um escape, para mim, estar debaixo de água a lidar com os peixinhos (risos).A menina que gostava de disciplinaFilipa Francisco, 40 anos, nasceu em Abrantes a 11 de Agosto de 1971. É casada e não tem filhos. A sua família é “de uma terrinha muito pequenina” chamada Água das Casas, no concelho de Abrantes mas perto do Sardoal. Com seis anos foi morar para Lisboa com os pais. Na família, apesar de não ter ninguém ligado às artes, começa por fazer dança rítmica. O ballet clássico chega até si aos 11 anos na Academia Almadense, por coincidência do destino, uma vez que nesse ano já não havia vagas para a dança rítmica. “Ao contrário das outras crianças, gostava daquela disciplina. De estar ali, pontual, à hora marcada e do esforço físico que aquilo envolvia. Completou a minha personalidade”, recorda. Mais tarde frequentou a Escola Superior de Dança de Lisboa. Começou logo a coreografar na Associação “A Torneira” que fundou com outros colegas. Mais tarde trabalhou durante três anos na companhia de Francisco Camacho. Já fez espectáculos em países como Espanha, Brasil, Chile, Alemanha, França, Palestina e Itália. De todos os projectos em que participou, destaca o projecto “Rexistir”, que levou a cabo durante nove anos, dentro do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco. No sábado, 22 de Outubro, pelas 21h30, no Teatro Virgínia em Torres Novas, leva a palco o espectáculo “A viagem” - inserido na 3.º edição do “Festival de Materiais Diversos - que funde o fandango com a dança contemporânea e que vai repetir em outras cidades portuguesas mas com outras danças tradicionais. A descoberta do folclore tem sido reveladoraComo é que uma coreógrafa de dança contemporânea aparece a trabalhar com o Rancho Folclórico dos Riachos?Eu não só desconhecia como tinha muitos preconceitos em relação às danças tradicionais. Achava que era uma coisa cristalizada, para turista ver. Só depois de ter ido à Palestina, há três anos, e ter trabalhado com um grupo tradicional é que me apercebi que as pessoas tinham verdadeiro prazer em dançar. Foi então que pensei que havia um vazio, que gostava de conhecer, e que era a dança que se fazia em Portugal. Tem sido uma descoberta reveladora. E o que é que descobriu até agora?Descobri uma dança muito forte. As pessoas fazem daquilo uma festa. Para além da disciplina, há uma energia que se transmite ao público. Como se faz essa ligação é o que estamos a descobrir agora. Esta primeira fase aqui em Alcanena, a trabalhar com o Rancho dos Riachos, é uma fase de descoberta. Nós, coreógrafa e bailarinos, estamos a aprender os passos da dança tradicional, principalmente do fandango que identifica muito esta zona, e o grupo de dança tradicional está a aprender algumas frases coreográficas que reconstruímos.Na prática o que vamos ver em cima do palco no dia 22 de Outubro?Vamos improvisar e vermos o resultado da junção destas duas danças em palco que acabam por resultar numa terceira criação. Vamos ter pessoas da dança tradicional a fazer dança contemporânea e pessoas da dança contemporânea a dar passos de fandango. Há outros ritmos, pudemos aplicar emoções, tanto musicais como de dança, ao fandango. O fandango pode ser retratado como uma discussão ou como uma pessoa a falar consigo mesma. É um espectáculo muito forte.Como é que chegou ao Rancho de Riachos?Fomos ver ensaios de três ranchos desta zona e acabamos por escolher o de Riachos porque era o que denotava mais profissionalismo e abertura para este projecto. Está a ser um trabalho muito interessante, de parte a parte. Neste momento estamos em processo de negociação em relação às vestes. Na dança contemporânea o figurino tem mais a ver com o que queremos transmitir enquanto na dança tradicional o traje é único, nunca muda. Não estava à espera que esta parte fosse fácil porque os trajes fazem parte da identidade do grupo e o que define a sua maneira de dançar.Em concreto, como decorrem os ensaios? Mostramos-lhe vídeos da Pina Bausch e de outros coreógrafos e explicamos-lhe porque dançamos desta maneira. Quisemos que as pessoas percebessem o que estavam a fazer. São trinta elementos do rancho que estão a trabalhar com uma coreógrafa, dois bailarinos, um músico e um compositor. É um espectáculo autoral. Estamos a ensaiar desde Setembro, às quintas, sextas e sábado, em horário pós-laboral uma vez que eu as pessoas trabalham. Esta fusão entre dança contemporânea e dança tradicional é inédita no país?Acho que outros coreógrafos já trabalharam com ranchos, nomeadamente a Madalena Vitorino, mas as danças tradicionais não entraram no espectáculo. Acho que nenhum trabalhou de forma a pensar como é que as danças tradicionais podem ressoar no corpo de bailarinos contemporâneos e vice-versa. Este espectáculo, “A Viagem”, vai ser apresentado em Março em Guimarães, Capital Europeia da Cultura. Mas aí não será com o fandango. A ideia é, em cada região, trabalhar com um rancho dessa região. O espectáculo nunca é igual. Como é que a Filipa Francisco aparece no Festival de Materiais Diversos?Eu faço parte da própria associação uma vez que a Materiais Diversos faz a produção dos meus espectáculos. O Tiago Guedes tinha uma ideia de propor a alguém um projecto que trabalhasse com ranchos da região e sabia que eu, desde que tinha vindo da Palestina, tinha a ideia de trabalhar as danças tradicionais em embrião. Acabou por ser um feliz encontro de ideias.“Esta é uma vida sem contratos”Como é que se consegue viver da dança em Portugal?É possível mas é preciso ter muita força de vontade. Eu, e a maior parte das pessoas, temos que fazer muita coisa ao mesmo tempo para ter um rendimento estável. No meu caso, gosto muito de dar aulas, não o fiz só para colmatar parte do rendimento. O coreógrafo, hoje em dia, é uma pessoa que não se dedica só ao seu treino físico ou a planear a sua coreografia. Tem que estar por todos os lados e, se for preciso, carregar o seu cenário. Esta é uma vida sem contratos. Só há oportunidades para a cultura nos grandes centros urbanos?Há muito mais oportunidades nos grandes centros, principalmente no que diz respeito à formação. Em relação aos teatros, com a rede que foi criada, a distribuição de espectáculos está um pouco melhor. Os coreógrafos e bailarinos têm-se mostrado mais interessados em estrear espectáculos fora da capital. Acho que devia haver mais escolas, de maior qualidade, fora de Lisboa ou Porto. Quantas horas os bailarinos treinam por dia?Depende muito se estou a fazer espectáculos ou produção. Neste momento (ensaios para o Festival Materiais Diversos) fazemos uma hora e meia de aquecimento e depois estamos desde as dez da manhã à meia-noite a trabalhar. É um mito dizer que estão permanentemente em dieta?(Risos) Temos falado disso ultimamente porque, desde que estamos em Alcanena, comemos sempre em restaurantes. Não estamos em dietas mas temos cuidado com a comida. Alguns de nós decidiram ser vegetarianos e os que não são não comem carne todos os dias. Há uma preocupação em comer bem para termos forças mas não é a chamada dieta. Mais do que uma opção é um estilo de vida saudável. É possível “reinventar” a dança?Há sete, dez anos andava um bocadinho “perdida” sobre o que queria fazer com a dança. Tinha a sensação que a dança atingia apenas uma elite, que eram as pessoas que conheciam os teatros ou tinham dinheiro para pagar o seu bilhete. Estava contente com a minha paixão mas pouco satisfeita com a forma como ela era exposta ao público. Foi quando descobri que havia um grande trabalho a fazer, por exemplo, dentro das prisões. Isto levou-me a descobrir novas coisas sobre mim própria e sobre a minha arte. Dinamizei durante nove anos um projecto de Música e Dança chamado “Rexistir” dentro da prisão de Castelo Branco.Como é que obteve autorização para trabalhar com reclusos?Porque a directora da prisão era uma mulher bastante ligada às artes. Estava em Vila Velha de Ródão numa residência artística e dava workshops de dança. A certa altura recebemos muitas inscrições e apercebemo-nos que alguns dos interessados eram reclusos. Foi uma professora que dava Matemática na prisão que inscreveu os seus alunos porque queriam que fizessem outras coisas, mesmo sabendo que não podiam sair da prisão. Foi então que fui eu à prisão.
Dança aproximou Filipa Francisco das suas raízes

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