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No feudalismo os senhores da terra tinham o direito a ter sexo com a mulher do empregado

José Almeida, bancário na reforma, professor na Universidade Sénior de Vila Franca, é um autodidacta

Just primae noctis. O direito à primeira noite. A mulher antes de dormir com o marido dormia com o patrão. Era assim no tempo do feudalismo. Quem cita em latim uma prática que era exercida pelos senhores da terra é José Almeida. Um bancário na reforma, professor de matemática e latim na Universidade Sénior de Vila Franca de Xira. Nasceu na Beira mas reside na Póvoa de Santa Iria. Frequentou o Seminário e foi expulso porque o pai não se dava bem com o pároco da terra. Assim terminou o sonho de conhecer África como missionário. Tem 65 anos e nem a doença de Parkinson, que começa a manifestar-se, o impede de deslocar-se todos os dias à biblioteca da Quinta da Piedade, onde é leitor assíduo.

No dia em que o livro “Amor e Sexo no tempo de Salazar” foi apresentado na Biblioteca da Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, aproveitou para fazer referência em latim a uma prática antiga exercida pelos senhores da terra.Just primae noctis. O direito à primeira noite. Fiz referência a uma prática que, em alguns casos, não é tão antiga como isso. É referenciada como sendo da Idade Média. Os senhores do tempo do feudalismo, donos das terras, arrogavam-se ao direito da primeira noite porque davam guarida aos trabalhadores. Isso significava exactamente o quê?Significava que a mulher antes de dormir com o marido dormia com o patrão. Era uma coisa aceitável para o marido?É de imaginar o papel do marido... Havia uma preocupação oculta - há quem sustente isso - de garantir bons dotes físicos aos descendentes, o que só poderia resultar das sementes dos senhores da terra. Essa terá sido a razão invocada até porque por vezes acontecia não haver filho legítimo que sobrevivesse e havia assim reserva de genes para assegurar a perpetuação da estirpe. Mas os filhos bastardos não eram reconhecidos. Só eram reconhecidos por algum motivo de força maior. Se não existissem filhos legítimos para a transferência da propriedade dos bens, por exemplo, era então feito o reconhecimento.Considera que mudou muita coisa desde o tempo de Salazar? Perdeu-se a moral e os bons costumes?Pessoalmente acho que o casamento, por exemplo, enquanto instituição era um desafio tanto para o homem como para a mulher. Era o desafio de se dedicarem a uma pessoa em exclusivo fosse ela um anjo vestido de carne fosse um diabo vestido de anjo. É muito fácil amar uma multidão. Difícil é amar um só na saúde e na doença, na fortuna e na miséria. O casamento é um desafio e peras. São muito poucos os que conseguem manter-se fiéis conforme a sua promessa. Está a falar dos dias de hoje?Estou a falar dos dias de Salazar, dos dias antes de Salazar e dos dias de hoje. Na altura de Salazar as pessoas eram levadas a aguentar tudo no casamento...Se tivermos a percepção de que nada acaba no túmulo mas que apenas se vira uma página, depois da qual se virará outra, será mais fácil manter um casamento. É preciso perdoar e pedir perdão. De outra forma duas pessoas não são capazes de manter-se juntas. As pessoas preferem o caminho mais fácil que é pôr-se noutra, como se diz. Da mesma maneira que se aceita o facilitismo no divórcio aceita-se o facilitismo na dissolução da família. Os pais que cuidaram dos filhos são muitas vezes abandonados pelos próprios descendentes. A responsabilidade individual tem que coexistir com a responsabilidade colectiva. Em muitos aspectos somos mais primitivos que os mais primitivos. Como vê todo o materialismo a que os meninos têm acesso hoje em dia?Acho que não aprendemos a lição. A minha geração sentiu na pele que para ter as coisas tinha que esforçar-se e trabalhar para elas mas não soube transmitir essa mesma noção do custo das coisas àqueles que recebeu como filhos. Habituaram-se a ter as coisas sem ter que lutar muito por elas, bastava manifestar a intenção. Hoje dificilmente são capazes de aceitar as exigências da vida.Está a falar da geração dos seus filhos, por exemplo?Por exemplo. Esta geração sofre um pouco o desgaste psíquico que foi ter que perceber que a vida é uma luta e tudo o que não seja assim não dá gozo duradoiro. O que o choca mais nesta vivência urbana às portas de Lisboa?O abandono da juventude pelos próprios pais que terão condicionantes que cerceiam a capacidade de influenciar os filhos positivamente. Dizem as coisas num tom que gera o desrespeito. Às vezes os mais velhos dizem “Meu rico Santo António, nem sabes a falta que cá fazes” e com isto querem evocar Salazar. Salazar fazia falta actualmente?Na sua faceta de disciplinador era alguém com quem se deveria aprender alguma coisa. Há sempre um lado escuro mas também luminoso da personalidade de cada um. Por que havemos de olhar sempre para o lado escuro?Como é que se dá numa cidade tendo nascido numa aldeia rural. Tornou-se um urbano?Nunca se consegue, acho eu. A referência é sempre aquele recanto de terra onde nos sentimos gente pela primeira vez, onde subimos às figueiras, onde caímos porque um ramo se partiu e onde aprendemos a regar e a semear feijão e batata. Gosta de viver num apartamento, o que é muito diferente de viver numa casa com um quintal?Ainda não desisti de procurar no jornal uma casinha em ambiente rural que tenha quintal... Moro num rés do chão. Sofro muito por ver que alguns condóminos se esquecem de que têm que pagar a mensalidade para garantir que os elevadores continuam a trabalhar...Como é o seu dia a dia na Póvoa de Santa Iria?Vivo num exílio dourado. Vivo desterrado. Estou fora do ambiente das minhas memórias porque já não é possível encontrá-lo, tal como naquele tempo. Tornou-se mais fácil superar as carências que o dinheiro ajuda a resolver. As outras nem por isso. As sms’s abreviadas são um jogo e não “investida do diabo”É um leitor assíduo da biblioteca da Quinta da Piedade. Por que é que há tanta gente afastada destes espaços de cultura?Os miúdos normalmente não costumam gostar da sopa. Os pais lá lhes dizem: “Prova. Se ainda não provaste como sabes que não gostas?” Haverá mais que uma ordem de razões para explicar isso… A experiência escolar pode ter sido traumatizante... Eu tive uma professora que nos convidava a ir passar uma hora a sua casa para fazer mais trabalhos e eu aproveitava sempre. Os meninos usam muito as novas tecnologias e escrevem mensagens de forma ainda mais abreviada que o próprio acordo ortográfico.Inicialmente isso chocou-me. Pensei: lá está a tomar corpo mais uma investida do diabo para se apropriar da nossa língua mas depois vi que era um jogo que podia jogar-se. Hoje até acho graça. Concorda com o novo acordo ortográfico?Não faz sentido nenhum. É pôr o carro a andar ao contrário. Devia prevalecer a exigência do rigor da língua tal como nos foi legada pelas gerações imediatamente anteriores à nossa. Dizem os entendidos que é uma questão de simplificar.Essa é a lei do menor esforço. Temos visto os resultados. O que acontece com a disciplina de português e de matemática? Se houvesse outro nível de exigência teríamos mais sucesso?Já há muito insucesso na disciplina de matemática. Ser mais exigente ajudaria os alunos a obter melhores resultados?Não podemos permitir que um aluno com nota 10 tenha acesso a um curso superior em que a exigência de entendimento da matemática se ponha em grau elevado. Essa coisa de todo o mundo querer ser doutor reduz o proveito que se possa tirar do investimento que é feito. Quando pensa no insucesso dos alunos à disciplina de matemática culpa também os professores?Muitos dos professores já foram eles próprios fruto do sistema que hoje reprovamos. Se não houve exigência para que fossem admitidos aos colégios dos professores não podemos esperar milagres só porque passaram à condição de professores.O professor de matemática e latim“Alguma vez aprendeu a recitar a Salvé Rainha em latim?”, pergunta José Almeida pouco depois de deixar a sombra da grande árvore da borracha da Quinta Municipal da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira. É ali bem próximo que fica a biblioteca da cidade, um espaço que José Almeida frequenta religiosamente todos os dias. Tem 65 anos, é um bancário reformado e tem diagnosticada a doença de Parkinson. Nada que o tenha impedido de se oferecer como voluntário para dar aulas de matemática e latim aos alunos da Universidade Sénior de Vila Franca de Xira. Já residiu em Vila Franca de Xira mas vive na Póvoa de Santa Iria desde 1998. Nasceu na Cova da Beira, na aldeia de Escarigo (Fundãol). Perdeu a mãe aos nove anos. O pai refez a vida com uma madrasta que não o acarinhou. Ingressou no seminário aos 10 anos mas aos 17 acabou expulso porque o pai não se dava bem com o pároco da terra. Regressou a casa com a mesma roupa preta que tinha usado nos últimos anos. O dinheiro do pai, que tinha possibilidades, só era disponibilizado para os cadernos e pasta dentífrica. Rumou a sul aos 18 anos para iniciar a vida militar porque o ambiente familiar não o seduzia. Uma doença nos pulmões impediu-o de terminar o curso de enfermagem na Marinha. Trabalhou em Lisboa na Caixa dos Ferroviários e aos 20 anos foi admitido para o BES em Vila Franca de Xira. Deixou a pensão no Largo da Graça, com uma mala de cartão, e instalou-se num quarto em Vila Franca. Mais tarde mudou para o Banco de Fomento Nacional que deu origem por fusão ao BPI, onde se reformou com 53 anos de idade e 33 de trabalho no banco. Foi estudante universitário de Economia e Sociologia mas deixou ambos os cursos por completar. Tem dois irmãos. Tem casa na terra mas só lá vai raramente. Para desfazer as emoções negativas de uma vida escreveu “Vale de Lágrimas” em jeito de catarse. Esteve casado 18 anos e teve dois filhos. Deixou passar ao lado o grande amor da sua vida, que conheceu antes do casamento. Não voltou a refazer a vida e hoje, aos 65 anos, alimenta um amor à distância.Frequenta a biblioteca para agitar a mente e exercita o corpo com ginástica e caminhadas. Quando apanha alguém disponível gosta de conversar. Uma cigana leu-lhe um dia na mão que iria conhecer África. José Almeida sente que deixou escapar entre os dedos todas as oportunidades de o fazer mas contenta-se por conviver com quem lhe traz pedacinhos do exotismo africano que vai bebendo nas conversas de café. Se José Almeida ainda não foi ter com África, África tem ido aos poucos até ao seu encontro.

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