Os radialistas da Rádio Bonfim da Chamusca que entrevistaram Amália Rodrigues
José Sirgado conta a aventura de há vinte anos com Raul Caldeira e Joaquim Queimado
A entrevista foi conseguida através de uma vendedora da Valentim de Carvalho que conhecia a cabeleireira da fadista que meteu uma cunha à governanta que só percebeu que a conversa não era pelo telefone quando viu três homens à porta.
Noite de sábado, 9 de Fevereiro de 1991. A campainha do nº 193 da rua de S. Bento, em Lisboa, onde morava Amália Rodrigues toca. À porta, penteadinhos, aprumados e com um grande ramo de rosas, estão três homens. Os apresentadores do programa “Coisas do Arco da Velha”, da Rádio Bonfim da Chamusca, José Sirgado e Raul Caldeira e o amigo e colaborador Joaquim José Queimado.Acendem-se luzes no interior e a governanta da casa vem à varanda. Os homens da rádio apresentam-se e lembram a marcação feita para uma entrevista à fadista. A resposta que vem de cima gela-os. A senhora dona Amália tinha acedido a dar uma entrevista mas pelo telefone. Não iria ser possível entrevistá-la frente a frente porque ela não estava arranjada. “Não está vestida para receber ninguém, não foi ao cabeleireiro nem à manicura e não está maquilhada”. Após uma acabrunhada insistência a interlocutora retira-se e inicia-se uma longa espera.A ideia de chegar à fala com Amália fora de José Sirgado, um “amaliano” de pedir meças a muitos outros, que afirma possuir cerca de 95 por cento de toda a discografia da fadista editada em Portugal, para além de horas e horas de gravações de programas de rádio e de televisão em que a mesma participou. A única nódoa em tal currículo de fã é o facto de nunca ter assistido a um único espectáculo dela. Nem antes, nem depois da entrevista que o marcou para sempre.“Nunca a vi cantar ao vivo. A primeira vez que tive essa possibilidade tinha 14 ou 15 anos. Ela actuou no Entroncamento e não consegui ir. Depois, por esta ou aquela razão, nunca fui”, conta. Quando Filipe La Féria fez o musical “Amália”, José Sirgado foi vê-lo cinco vezes. “Para falar verdade vi-o quatro vezes. A primeira vez que fui não consegui ver nada porque estive a chorar do princípio ao fim. Lembrava-me da Amália a contar-me de viva voz aquilo que estava a acontecer no palco e as lágrimas corriam-me pela cara abaixo”, confessa.Voltamos ao tal sábado de Fevereiro de 1991. Ao fim de meia hora vem a ordem para entrar. Mas nada de imagens. A câmara de vídeo e o tripé ficam no carro. Com a equipa do programa vai apenas o gravador de bobines Uher, um microfone de lapela que mãos trémulas haveriam de colocar no vestido de Amália, um microfone de mão e a máquina fotográfica (a entrevistada acabaria por aceitar ser fotografada). Para ofertar, o ramo de rosas que Sirgado jura que eram amarelas por serem as preferidas da cantora mas que a foto mostra encarnadas, livros de uma conhecida poetisa da Chamusca, Mimela (Maria Manuela) Cid e o inevitável galhardete da câmara municipal.Deve ter sido uma das primeiras entrevistas, senão mesmo a primeira, que Amália Rodrigues, então com 70 anos de idade, deu a uma rádio local. Foi passada em blocos ao longo de vários programas. O primeiro foi emitido a 17 de Fevereiro. O MIRANTE fez notícia e publicou a foto que volta agora a publicar da autoria de Joaquim José Queimado. José Sirgado confessa que a entrevista não acrescentou nada ao que já se sabia da fadista. Primeiro porque os entrevistados não eram experientes. Depois porque estavam meio anestesiados por estarem a privar com alguém que tanto admiravam. “Eu não estava em mim. Foi um momento único e irrepetível. Uma sensação de prazer indescritível. Sentia-me no céu. Agora fala-se para o Presidente da República como quem fala para o guarda-nocturno. Mas eu estava ali com tal respeito e admiração como se estivesse perante uma divindade”. A entrevista era para ter meia hora mas acabou por ter hora e meia. Começou por ser gravada com uma velocidade que permitia o máximo de qualidade e acabou com a quarta velocidade. Foi interrompida uma vez para apagar declarações da entrevistada sobre a sua vida amorosa (ver caixa). Acabou com os entrevistados a pedir autógrafos e antes do regresso a casa, a comerem bifes com batatas fritas na cervejaria Portugália. “O Joaquim Queimado estava de tal maneira que quando o empregado perguntou o que queríamos para sobremesa ele encomendou outro bife”, conta José Sirgado. “Corta...corta...”A entrevista começa com José Sirgado a situar o acontecimento e a anunciar a entrevistada sendo de imediato interrompido. “Em casa de dona Amália...”diz ele. E ela. “Amália. Já ganhei o direito a ser Amália, pelos anos que cá ando”. Sirgado recomeça: “Pois bem, tratemos então Dona Amália, por Amália”.Tinha havido cuidados especiais na preparação da conversa. Raul Caldeira tinha sido avisado para não se precipitar e deixar a entrevistada acabar as respostas sem a interromper. José Sirgado tinha organizado as perguntas de forma a passar em revista toda a vida da fadista. Cronologicamente. “Confesso que era muito inexperiente mas Amália foi de uma grande simpatia. Quando lhe perguntámos se se lembrava de uma coisa do arco da velha (nome do programa de rádio) que lhe tivesse acontecido não lhe ocorreu nada. Eu para ajudar sugeri: ‘será uma coisa do arco da velha termos prendido Amália aqui durante uma hora e meia?’. E ela: ‘Uma hora e meia? Já? Isso é que é uma coisa do Arco da Velha porque eu já tenho 70 anos”.O som da gravação é excelente. Amália começa pela infância e conta a história do vizinho motorista que chorava sempre que ela, então com 12 anos, cantava uma daquelas tragédias que vinham nos folhetos que os ceguinhos vendiam pelas ruas. No caso um crime em que a vítima tinha sido um outro motorista. Depois lembra a avó e o avô que lhe pediam para ela cantar quando vinha da escola porque gostava de ver as pessoas pararem para ficarem a ouvir. “Não separo a minha vida das cantigas. Não me lembro da minha vida sem cantar”, diz. A certa altura diz que uma das suas sete gravações que a envergonham “é o Molero” e canta um pouco para a seguir dizer. “Isto é uma vergonha para mim que não sou lamechas”. Depois explica que o fado não é assim. “É uma canção séria. Pode fazer chorar as pessoas mas porque é o destino”. E cita Camões para sublinhar o que quer dizer. “Com que voz chorarei meu triste fado” e a seguir: “Memória do meu bem cortado em flores por ordem dos meus tristes e maus fados”. E remata “O fado é triste mas é lúcido”. Quando os entrevistadores lançam o tema dos amores de Amália e esta, descontraidamente, começa a falar do banqueiro Ricardo Espírito Santo, a governanta, que assistia à entrevista salta da cadeira e interrompe. “Senhora dona Amália. Senhora dona Amália...corte isso. Corte isso. Não autorizo...”. E foi mesmo necessário parar e gravar por cima do que já tinha sido dito.Amália diz que nunca se sentiu uma mulher fatal. Que nunca fez olhinhos a nenhum homem. Que não acreditava no que lhe diziam certos admiradores ricos e famosos embora gostasse de acreditar mesmo sabendo que era mentira. “Sabia que não era feia e que cantava bem. Que isso atraía admiradores. Que estava exposta. Mas dizem tanta coisa de mim que por vezes já nem sei quem sou”, desabafa a certa altura. O final da entrevista é precipitado pelo marido de Amália, César Seabra, que farto de esperar, entrou na sala e perguntou: “Então hoje não se janta nesta casa?”.Um homem da rádioJosé Sirgado nasceu a 1 de Outubro de 1937 em Vale dos Ovos, no concelho de Tomar. O pai era ferroviário e tinha ido para ali trabalhar como encarregado do paiol de uma pedreira que a CP explorava. Frequentou a escola primária em Chão de Maçãs e foi aí que ouviu rádio pela primeira vez. “Um senhor que morava ao pé da estação tinha um rádio e eu ia a pé, de casa até lá, para ouvir.A CP entregou a exploração da pedreira a privados e a família mudou-se para o Entroncamento. José Sirgado tinha onze anos. Começou a trabalhar dois ou três anos depois. “O meu primeiro estágio na universidade da vida foi feito a aviar copos de vinho na taberna do José Coelho, junto à serração dos Parracho”, contas.Fez mais dois ou três estágios do género antes de casar em 1960 com Leonor Oliveira Sirgado, de Vila Nova, Tomar. Antes de casar fez o serviço militar. A casa onde recebeu O MIRANTE, naquela localidade, era dos sogros. Tanto lá, como na casa do Entroncamento há aparelhos de rádio, gravadores, amplificadores, mesas de mistura, discos em vinil, mini-disc e CD por todo o lado. E até uma grafonola. Tudo funciona. A música e a rádio sempre o acompanharam vida fora. “Quando trabalhava em Pé-de-Cão, numa mercearia do José Serra, ia três vezes por semana a Torres Novas, de bicicleta, carregar a bateria com que alimentava o rádio, porque não havia electricidade. Aquilo pesava uns dez quilos”, conta.Estabeleceu-se por conta própria na Golegã e o negócio durou 18 anos. Acabou com a chegada dos hipermercados à região. O primeiro rádio da família foi um Mediator que o pai comprou. Tem pena de não saber o que foi feito dele. O Grundig a válvulas que comprou quando casou ainda toca e tem um aspecto impecável. “Já naquela altura tinha som estereofónico e frequência modelada”. A sua ligação à Rádio Bonfim da Chamusca e a amizade com o seu companheiro de programas, Raul Caldeira, começou em 1988 na altura do falecimento do cantor Francisco José. Ao ouvir o locutor dar a notícia da morte do artista e lamentar não ter nenhum disco para passar, pegou nos dele e foi-se apresentar nos estúdios, resolvendo a questão. Uma aventura do arco da velha algum tempo antes da criação do programa com o mesmo nome que durou anos e anos. Actualmente José Sirgado grava em sua casa diversas rubricas que são passadas nas rádios Bonfim e Comercial de Almeirim.
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