Espólio de Jorge Reis à espera de um destino condigno
Fiel depositário do acervo do escritor neo-realista de Vila Franca de Xira deixou o apelo em Santarém
Hermínio Nunes tem na sua posse um valioso espólio do escritor neo-realista Jorge Reis, nascido em Vila Franca de Xira em 1925 e falecido em Paris há cinco anos. Recentemente, na abertura de uma exposição evocativa de Alves Redol em Santarém, onde participou contribuindo com algum do seu acervo, este historiador e antiquário da Marinha Grande apelou à necessidade de se encontrar um destino para esse material, onde o mesmo possa ser classificado, estudado e valorizado.Trata-se de uma “imensa quantidade de documentação”, entre ela cartas de figuras da política e cultura nacional como Maria Lamas, Manuel Alegre, Urbano Tavares Rodrigues e Mário Soares, com quem se correspondeu durante o exílio. “Os anos vão passando e não sei o que vou fazer daquilo”, afirmou. A única certeza, diz Hermínio Nunes, é que esse espólio não se há-de perder e que Jorge Reis há-de ter o reconhecimento que merece como nome grande das letras nacionais do século XX.
Como conheceu Jorge Reis?No aeroporto de Orly, no dia 21 de Maio de 1990. Havia nesse dia uma greve do pessoal da Air France e o voo foi cancelado. O Jorge Reis vinha a Portugal à apresentação do seu livro “A Memória Resguardada”. Por razões que ele próprio nunca viria a conhecer, o editor, francês, não apareceu, e a edição perdeu-se. Creio que tenho o único exemplar dessa primeira edição, que o Jorge Reis me ofereceu autografado Que recordações mais marcantes guarda dele?O profundo humanismo e a sua ímpar cultura. Jorge Reis era um apóstolo da filosofia humanista de Romain Rolland e viveu por dentro muitos dos momentos históricos contemporâneos.Ficou como fiel depositário do espólio de Jorge Reis em que circunstâncias?Não sou um fiel depositário no sentido lato do termo. Quando o Jorge Reis mudou da sua casa de Massy para um apartamento mais pequeno, na Rue Vandrezanne, no centro de Paris, confrontou-se com uma natural falta de espaço para albergar os livros e papéis acumulados ao longo da vida. Decidiu então doar-me a sua biblioteca em língua portuguesa, bem como um acervo de documentação importantíssima em vários vectores, especialmente para a história contemporânea de Portugal. De que tipo de espólio se trata e que destino lhe pretende dar?A biblioteca contém, entre obras de história, teatro, poesia, etc, as obras dos romancistas do seu tempo, especialmente as dos Neo-realistas, um imenso fundo Camiliano e grande parte da obra do seu mestre de letras e amigo pessoal, Mestre Aquilino Ribeiro.Onde tem guardado esse espólio? Na minha própria biblioteca e arquivo Da conversa em Santarém com o curador do Museu do Neorealismo resultou alguma conclusão?Não acho que tivesse de acontecer chegar a qualquer conclusão. A única conclusão a que cheguei, foi a frustrante constatação de a documentação que o Jorge Reis doou em 1995, para a Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira, estar a um passo de perder-se por falta de conservação. Tem contactado algumas entidades no sentido de procurar uma solução para essa questão?Tenho falado ao longo do tempo com as pessoas com quem devo falar, todas do círculo de amigos do Jorge Reis, mas a última decisão será sempre minha. O seu espólio não irá perder-se, isso está assegurado.Qual a sua opinião acerca do contributo de Jorge Reis para a cultura nacional?A obra escrita do Jorge Reis é bastante vasta, muito para além de “Matai-vos Uns Aos Outros” que já conta mais de uma dezena de edições. Os seus trabalhos sobre Aquilino Ribeiro continuam incontornáveis. E a sua obra vastíssima aos microfones da ORTF em prol dos emigrantes portugueses - e não só - em França, e por consequência em defesa e culto da língua portuguesa, é algo que um dia , tenho a certeza, colocará o seu nome e memória no pedestal da história da literatura portuguesa que é seu por direito próprio Na sua opinião, a sua obra devia estar mais divulgada?A obra de um homem vertical e escritor impoluto como foi o meu mestre de letras Jorge Reis, não se alimenta de vaidades humanas; o ritmo próprio da história encarregar-se-á de fazer subir a sua obra ao proscénio da nossa literatura, sem pedantismos fúteis. Faria mais sentido, na sua opinião, que o espólio ficasse na terra natal do escritor, Vila Franca de Xira?Já tive mais certezas! Após saber do estado miserável do espólio ali em depósito, alimento hoje muitas dúvidas sobre essa questão.Acha que a vida e a obra de Jorge Reis têm tido a divulgação que merecem?Não acho, mas não vejo nisso qualquer acto premeditado. Simplesmente, o Jorge Reis viveu e morreu em Paris e os da sua geração, familiares e amigos, restam poucos vivos ou com capacidade para promover a sua vida e obra. Por outro lado, a sua família directa não fala o português, outro drama para a dinamização da sua obra.Em nome da amizade que nos uniu, vou fazendo o que posso para não o deixar esquecido e por isso aproveito todas as oportunidades como esta por ocasião da homenagem ao Alves Redol.Não foi por acaso que o Jorge Reis quis doar-me o seu arquivo e me tornou seu “herdeiro” quase à força... ele sabia que eu jamais o esqueceria!Quem foi Jorge Reis*Jorge Atilano dos Reis Ambrósio nasceu em Vila Franca de Xira em 1926 e viveu exilado em Paris desde 1949 até ao 25 de Abril de 1974. Depois da Revolução dos Cravos optou por continuar na “cidade luz”, onde faleceu em 2005. Entre 1946 e 1948, fez parte da revista Vértice, tendo estabelecido relações de amizade com Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado, e com outros escritores ligados a essa revista. Partiu para França em fuga à perseguição da Pide (polícia política do regime salazarista), motivada pela sua militância no PCP e pela sua participação nas greves de 8 e 9 de Maio de 1944. Chegado a Paris, Jorge Reis inscrever-se-ia na Sorbonne, iniciando um doutoramento em História de Arte. Em 1951, começa a sua colaboração com a Radiodiffusion Française. Em 1963, participa com Maria Lamas, António José Saraiva e outros intelectuais na criação da Liga Portuguesa de Ensino Popular, secção portuguesa da Ligue Française de L’ Enseignment Laic. Em 1966, inicia um programa da Radiofusão-televisão francesa (Radio France, também O.R.T.F.E.) - destinado a dar apoio aos emigrantes portugueses, aí tendo impulsionado cursos de Língua Portuguesa. Em 1962, publica a obra “Matai-vos uns aos Outros!”, prefaciada por Aquilino Ribeiro e premiada, em 1963, pela Sociedade Portuguesa dos Escritores, com o Prémio Camilo Castelo Branco. Embora proibido e retirado do mercado, o romance circulou de forma clandestina, tendo sido traduzido em diversos países. A carreira literária de Jorge Reis foi preterida em prol do jornalismo e de um empenhamento político-cultural intenso, no sentido de melhorar a qualidade de vida de todos os portugueses que nos anos sessenta procuravam a França como refúgio, desde os desertores e os refractários ao regime aos trabalhadores assalariados. Em 1983, foi galardoado com o título de Comendador da “Ordem do Infante D. Henrique”.* Fonte: Instituto da Literatura Comparada Margarida Losa
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