uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

A arte de escolher as palavras

Depoimento

Sou uma jornalista de província. Percorro o Ribatejo ora por estradas de terra enlameada ora por vias mais ou menos rápidas para ouvir as palavras dos outros, como diria um mestre do ofício, Baptista-Bastos. A minha vida não poderia ser mais rica e atarefada

Os meus dias de trabalho começam longe das estações de metro e das redacções das grandes avenidas de Lisboa. Sou uma jornalista de província. Percorro o Ribatejo ora por estradas de terra enlameada ora por vias mais ou menos rápidas para ouvir as palavras dos outros, como diria um mestre do ofício, Baptista-Bastos. A minha vida não poderia ser mais rica e atarefada. Já me sentei à sombra de uma casa térrea a ouvir um cavaleiro tauromáquico. Falei com um pescador avieiro e senti o pontão de madeira dançar debaixo dos pés. Interroguei trabalhadoras rurais sobre as agruras de cumprir a jorna debaixo de sol. Entrevistei governadores civis, toureiros, empresários e artistas. Ouvir as palavras dos outros é a grande riqueza da minha profissão. Escolhê-las e passá-las depois a palavra escrita é um desafio. Vi um Prémio Nobel da literatura acabar de nascer na aldeia mais portuguesa do Ribatejo. Saramago falou e as palavras estavam escolhidas. Mas nem sempre nos deparamos com os mestres. Há aqueles que falam com o gesto, com o sofrimento. Que palavras escolher para descrever a mulher que vive enclausurada? E para o homem que sofre os traumas de uma guerra retardada, que todos os dias recomeça? Que palavras escolher para quem oferece uma estrelícia? Que palavras escolher para descrever quem é poesia? No calor do diálogo ecoam palavras em catadupa. Algumas escapam para lá da vontade do orador. Outras ficam esquecidas. Avisa-me às vezes o entrevistado mais cioso de que não sabe que palavras escolherei eu de tanta conversa…Aconselhou-me um dia um empresário da restauração que reconsiderasse se alguma vez ponderasse ter uma relação séria com alguém desse mesmo ramo, tal é a intensidade dos dias. Um toureiro avisou-me sobre o viciante poder de atrair os olhares de uma plateia para o centro da arena e um poeta falou-me das inquietações que o levavam a preencher uma folha em branco. Tomei as palavras como sábias. Nem o poderia ter feito de outra forma. Assim, a ouvir para depois escolher as palavras, mas também a guardá-las no coração, passei os últimos anos da minha vida.* Jornalista

Mais Notícias

    A carregar...