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A professora que luta pelas boas notas da Banda Republicana Marcial Nabantina

Maria Júlia Filipe entendeu dar continuidade à obra do falecido marido à frente da colectividade

A Sociedade Banda Republicana Marcial Nabantina, fundada em Tomar a 12 de Setembro de 1874, é liderada por uma professora de 54 anos que se assume “nabantina de alma e coração” e tem como objectivo “limpar” o nome da colectividade que herdou avultadas dívidas de antigas direcções. Tudo para que a Nabantina, um símbolo do centro histórico, volte a ter boas notas na sua cotação social.

Elsa Ribeiro GonçalvesO seu marido foi presidente da direcção da Sociedade Nabantina durante cinco anos. Agora, cabe-lhe a si a liderança. Como surge a vossa ligação a esta colectividade tomarense?Temos duas filhas. A mais velha tem 29 anos e é licenciada em Conservação e Restauro e a mais nova fez agora 26 anos e é licenciada em Multimédia mas o seu grande amor é a música. Toca saxofone. Foi ela que trouxe os pais até à Nabantina, numa altura em que a direcção estava demissionária, isto depois da Festa dos Tabuleiros de 2003. Na altura, formámos uma lista com outros músicos mas, como tinha muito trabalho na escola, nem pretendia ficar nos lugares dianteiros. O que é certo é que o meu marido (Luís Filipe da Costa) foi eleito presidente e eu vice-presidente da direcção. Fizemos um mandato. Entretanto quando ele faleceu, em 2009, fiquei a substitui-lo no cargo. Voltei a concorrer à direcção e ganhei, contra uma segunda candidata. Este é o meu terceiro mandato.O que os motivou a aceitar o desafio de gerir um barco à deriva? Estamos a falar de uma colectividade centenária - celebrou este ano 137 anos de existência - e para nós era impensável que fechasse as portas por não haver uma direcção. No fundo tentámos ajudar porque, como sempre morámos aqui, esta casa pertence ao nosso “bairro”. Foi, portanto, o bairrismo que contribuiu para a decisão?É claro que, tendo nascido na Rua do Camarão, em pleno centro histórico de Tomar, fui sempre nabantina. Foi aqui que nasci, morei e comprei casa depois de casar. Sempre me habituei a ouvir a Banda da Nabantina a tocar porque as salas onde decorriam os ensaios tinham uma porta que dava para a minha rua. Nunca saí do centro histórico e era incapaz de ir viver para outro lado. É com tristeza que quando saio daqui já tarde, por exemplo à segunda-feira quando há aulas de danças de salão, vejo as ruas completamente desertas. Não estava habituada a este cenário.Não toca nenhum instrumento?Não (risos). Há duas coisas que me intrigam na minha vida: os meus pais nunca me terem posto a aprender música na Nabantina e nunca ter levado um tabuleiro na Festa dos Tabuleiros. É um vazio que sinto. Digo isto porque o meu pai era um grande entusiasta da festa e até fazia parte da comissão. Eu vivo sempre muito a festa. Ajudo na ornamentação da minha rua, sempre com grande empenho e alegria. Podia ter levado um tabuleiro em adulta…Nunca me senti instigada a isso. Recordo que, na Festa dos Tabuleiros de 2007, tive um dos dias mais felizes da minha vida. Isto porque a minha filha mais nova ia a tocar na Banda da Nabantina, eu estava acompanhada com o meu marido a representar a direcção da colectividade e a minha filha mais velha ia levar o tabuleiro pela primeira vez. Estávamos os quatro juntos e consegui transmitir às minhas filhas o gosto pela festa, que já veio dos avós. Voltando à Nabantina. Qual a força que esta colectividade tem para si?A Nabantina é a Nabantina e há-de ficar para sempre. Acaba por ser um símbolo do centro histórico de Tomar. É uma casa pobre mas que tem ensino gratuito de música. Vivemos com dificuldades acrescidas. Já nos disseram que tínhamos que começar a levar dinheiro pelo facto de ensinarmos música, porque a única coisa que pedimos aos pais dos alunos é que se façam sócios. Mas não vamos por aí. Quando concorreu à direcção qual foi a situação financeira que encontrou?Nós já sabíamos que as coisas não iam ser fáceis porque existiam dívidas de montantes muito elevados. Daí resulta que, nos três mandatos que levamos, não tenhamos feito nada que fosse muito visível em termos de obras, porque o que temos e o que não temos tem sido para pagar as dívidas das direcções anteriores. Mas temos conseguido diminuir o passivo de ano para ano. Continua a ser negativo mas é menor.E como é que conseguem angariar receitas?Temos sócios, mais antigos, que nos dão donativos. A Nabantina tem à volta de 400/500 sócios, mas pagantes são muito menos. Tenho contado, incondicionalmente, com o apoio dos meus colegas de direcção porque isto não é um trabalho meu. É o trabalho de uma equipa. Nunca decidimos nada sozinhas. Digo sozinhas porque há quem diga que a Nabantina é uma banda só de mulheres mas também temos músicos homens na direcção (risos). Concedemos a exploração de um restaurante aqui na sede da colectividade a troco de uma renda mensal e onde os sócios podem regularizar as suas quotas.O que motivou a sua candidatura em Dezembro de 2009?Foi para continuar a obra do meu marido. Ele gostava muito da Nabantina e partilhava esse amor comigo, isto apesar de ter nascido na Anadia, distrito de Aveiro. Eu senti que estava à espera que continuasse no lugar dele. No fundo, quis honrar os compromissos que ele tinha assumido, por exemplo, com a autarquia que tinha protocolado a nossa participação no projecto “Praça Viva” e que consistia na actuação da Banda da Nabantina durante três anos em iniciativas culturais. No segundo mandato, trocámos lugares na direcção e entraram mais dois jovens músicos e uma colega minha, reformada, filha de um dos sócios mais antigos (o avô é o sócio n.º 1), que sempre se ofereceu para ajudar. É ela que tem andado a recolher o dinheiro das quotas. Mas não é tarefa fácil….“As escolas são cada vez mais um depósito de crianças”Sempre quis ser professora?Sim. Era muito comum a minha mãe ir dar comigo no quarto a ensinar as bonecas. O meu sonho sempre foi ser professora mas, neste momento, sou uma professora desencantada. Porque esta não é a minha escola. Muitas vezes penso que se me sinto assim como se sentirão aqueles colegas que foram parar ao ensino por mero acaso. Nunca pensei dizer isto mas, neste momento, se pudesse reformava-me já. De onde surge o desencanto? Do sistema de ensino, dos alunos?Levo já 32 anos de serviço. São muitos anos. O desencanto vem das políticas, dos alunos e dos pais dos alunos. É mais difícil ensinar agora do que há 30 anos. Os alunos vêm do 1.º ciclo sem saber estar numa sala de aula. No 5.º ano passamos o primeiro período a ensinar aos alunos que a sala de aula não é um espaço onde cada um se levanta quando quer e lhe apetece. Esquecem-se que há ali alguém que manda e a quem devem pedir autorização para se levantar e, por exemplo, ir pôr alguma coisa no lixo. Não sabem estar sentados e, fundamentalmente, não sabem ouvir. Isso cria um problema de comunicação. Antigamente, quando havia barulho na sala de aula, a minha estratégia era calar-me. Hoje em dia calo-me mas a barulheira continua.Porque é que isso acontece?Eu costumo perguntar-lhes se falam assim para o pai e para a mãe. Eles dizem que sim. Penso que lhes falta o acompanhamento dos pais. As escolas cada vez mais são um depósito de crianças. Os pais deixam-nas lá de manhã, vão buscá-las e ainda as levam para um centro de apoio ao estudo onde fazem os trabalhos de casa. Há muitos anos que sou directora de turma e digo sempre aos pais que é importante seguir a vida escolar dos filhos e que, pelo menos semanalmente, vejam a caderneta dos filhos, mas é escusado. Os pais cada vez se demitem mais da sua função de pais e de educadores. Acham que esse papel cabe à escola. Depois, acreditam cegamente no que os filhos dizem. O professor é sempre o mau. Como é a Maria Júlia Filipe fora da escola e da Sociedade Nabantina?Sempre fui uma pessoa simples. O facto de ter tirado um curso superior, há mais de 30 anos, não mudou nada em mim. Na altura recordo que havia amigos do meu pai que até ali me tratavam por “Julinha” e, a partir do momento em que me formei, começaram a tratar-me por senhora doutora, o que me fazia imensa confusão. Nunca fui pessoa de me vangloriar, antes pelo contrário. Eu tenho a noção, e sei, que na escola (quer sejam os meus colegas quer seja o pessoal auxiliar) têm muita estima por mim. Tive duas grandes provas dessa amizade e dedicação para comigo: quando fiquei sem o meu marido e agora, mais recentemente, quando estive internada no hospital. É porque, sem falsa modéstia, não devo ser uma pessoa muito má. Gosto, fundamentalmente, de ajudar as pessoas.Colectividades não são todas tratadas da mesma formaQue obra da Nabantina gostava de ver concluída?Gostávamos de acabar um campo de jogos que está a ser construído num terreno na Encosta das Maias, na freguesia de São João Baptista, doado pela câmara há bastantes anos. Já ali foram construídos balneários, um campo e uma bancada mas a obra parou por falta de verba. Isto já vem antes de estarmos na direcção. A ideia, algo polémica, passava por construírem um lar. Mas não quisemos entrar em projectos megalómanos e achámos que esta era uma boa opção colocar ao serviço da população residente um espaço para a prática de desporto. A obra era para acabar com ajudas mas todas as portas onde batemos fecharam-se. Sente que o trabalho associativo tem o devido reconhecimento?Sinceramente, não. Eu tento sempre que a Nabantina colabore com as actividades da cidade. Acho que não devia ser preciso andar a pedir o dinheiro à câmara, a que tínhamos legítimo direito, pela participação na Festa dos Tabuleiros. Neste momento, temos que reclamar para conseguir alguma coisa e não devia ser assim. Choca-me que as colectividades não sejam todas tratadas da mesma forma. Fico magoada quando sou alvo de injustiça. Muitas vezes faço mais do que posso para levar as coisas para a frente mas o reconhecimento é nulo. Mas depois relativizo as coisas e continuo a trabalhar.Costuma sair com a banda nas actuações?Sim. A banda tem cerca de 30 elementos, desde o sr. Diamantino Santos, que já toca aqui há mais de 60 anos, até aos mais pequeninos que estão agora no 5.º ano. Os nossos músicos têm saído da nossa escola de música. Mas este ano temos mais uma coisa em que a Nabantina é pioneira: uma maestrina. O nosso maestro, que era do Cartaxo, teve que sair por razões profissionais. Assegurou a banda até à Festa dos Tabuleiros e despediu-se no concerto que demos a 29 de Julho. Só neste dia é que os músicos souberam da sua saída. Tivemos que arranjar um substituto e dos vários currículos que recebemos escolhemos a Andreia Carreira. É uma jovem que é médica num Centro de Saúde em Leiria, onde reside, embora seja natural da Chancelaria, Torres Novas. Duas mulheres que ocupam funções normalmente atribuídas a homens… Talvez porque devido à minha profissão de professora já esteja habituada a liderar e a tratar assuntos com diversas entidades, não tenho esse tipo de problemas. Pelo contrário. Tenho orgulho em ser presidente da Nabantina tal como tenho orgulho em ter uma maestrina a assumir a banda. Há sempre um certo receio com o que dizem os “velhos do Restelo” mas ela está a ser bem recebida. Tem algum episódio engraçado relacionado com a banda? Sim, guardo um episódio atribulado mas como conseguimos dar a volta acabou por ser engraçado. Como somos nós e só nós - e porque, na maioria das vezes, o autocarro da câmara nunca está disponível para nos transportar - certa vez tivemos que ir a um encontro de bandas em Santarém e fomos, direcção e músicos, nos nossos carros. Os instrumentos maiores eram transportados numa carrinha. O que é facto é que quando chegamos a Santarém estava lá o bombo mas faltava a maceta (vara curta e grossa, de cabeça almofadada). Tinha ficado em Tomar. Ora, sem bombo, a actuação não podia acontecer. A rapariga do instrumento andou pelos restaurantes e cafés de Santarém e improvisou a peça com um cabo de uma vassoura onde enrolou pano. Agora, em jeito de brincadeira, perguntamos sempre que saímos: e a maceta fica cá? E um episódio triste?Não esqueço quando, nesta última Festa dos Tabuleiros, nos roubaram um painel em pano pintado com o símbolo da Nabantina. Pedi a uma amiga que o fizesse e ela ofereceu-nos tudo, de bom grado, inclusive não colocou nenhuma data para que pudesse voltar a ser utilizado. Foi um acto de pura maldade. Fiquei muito triste porque para quem o levou não significava nada e para nós tinha um grande valor sentimental uma vez que já fazia parte do património da Nabantina.Uma mulher que não quer nada com políticaMaria Júlia Filipe nasceu na Rua do Camarão, em pleno centro histórico de Tomar, a 29 de Janeiro de 1957. Formada em Literatura e Línguas Modernas (Inglês-Alemão) pela Universidade de Coimbra, é professora na Escola Básica 2/3 Santa Iria, onde preside ao Conselho Geral do Agrupamento. A conversa decorre no rés-do-chão do histórico edifício da Sociedade Nabantina, na Rua Silva Magalhães, a poucos metros de sua casa. A sala está repleta de fotografias dos antigos directores (todos falecidos) desta colectividade que completou este ano 135 anos de existência. Na parede há um retrato especial, junto ao qual mais tarde faz questão de ser fotografada: o do seu marido, Luís Filipe Costa, que morreu de forma súbita, há quase três anos. A voz embarga-se sempre que fala do marido, com quem esteve casada 29 anos e namorou mais nove. “Foi um choque muito grande porque não estava preparada para ficar sem ele. Têm sido três anos muito dolorosos. Mas acredito que está sempre comigo e que é ele que me dá força para continuar, a par dos meus colegas da escola”, revela com lágrimas a aflorar ao rosto. Foi para dar continuidade ao trabalho do “cúmplice de uma vida” que aceitou concorrer à direcção da Sociedade Nabantina, desempenhando o cargo desde 2009. Este ano trouxe para a banda uma novidade: a maestrina Andreia Carreira. Mas recusa a ideia que a Nabantina é uma colectividade só de mulheres. Chegou a ser convidada para integrar uma lista para a Assembleia de Freguesia de São João Baptista mas disse não. “Na política, é preciso ter capacidade para dizer a todos que uma coisa é azul quando toda a gente vê que é vermelha. E eu não conseguia”, confessa. Por isso, diz que não há nada melhor que dormir, todos os dias, de consciência tranquila. E ela dorme.

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