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Quando as pessoas de Vila Franca contratavam advogados de Lisboa para escapar às más línguas

Quando as pessoas de Vila Franca contratavam advogados de Lisboa para escapar às más línguas

Fernando Valente exerce há 34 anos e é um dos advogados mais antigos da cidade

Trinta e quatro anos depois Fernando Valente ainda sente um nervoso miudinho na semana que antecede o julgamento. É um dos mais antigos advogados de Vila Franca de Xira. Tem 67 anos e o estatuto de reformado com autorização para trabalhar. É do tempo em que as pessoas da cidade recorriam a advogados da capital para escapar às más línguas. Memórias de um advogado dedicado à profissão que coloca a ética acima de tudo.

É advogado há 34 anos. Está em situação de reforma mas com autorização para trabalhar. Por que tomou esta opção?Podia ter parado mas toda a vida trabalhei e não sei fazer outra coisa. Parar era morrer. Como o meu filho seguiu a profissão vou ajudando enquanto a cabeça estiver à altura. Ainda mantém o mesmo ritmo?Há muitas coisas que empurro para o meu filho. Já não tenho paciência para fazer muitos julgamentos. Faço mais trabalho de gabinete. Vou a diligências, a julgamentos de processos antigos e pesquiso jurisprudência que é um trabalho de que gosto. Quando estava a cem por cento no activo nem sempre tinha possibilidades de o fazer. É mais difícil ser advogado hoje?É diferente. Hoje em dia têm mais apoio e formação. A própria Ordem dos Advogados além de manter a figura do patrono vai dando formação. Nós éramos atirados aos leões e tínhamos que nos desenrascar. Hoje a concorrência é muito elevada. Há advogados a mais?Tudo o que é excessivo é pernicioso. Seja em que campo for. As pessoas depois dificilmente conseguem angariar trabalho para poder subsistir e exercer a profissão condignamente. Seria bom haver um número máximo previsto de advogados em defesa da própria profissão. Como são muitos há uma competição grande que por vezes coloca em causa as regras de natureza deontológica. Refere-se a quê exactamente?Quando éramos menos havia mais solidariedade. Há colegas que podem sentir-se tentados a roubar a clientela a outros colegas em desespero de causa….Já perdeu alguns clientes para outros advogados?Se na comarca de Vila Franca havia 12 quando comecei e se agora há 200 é natural que o trabalho se distribua. Todos sentem que perdem a clientela. Naquela altura não faltava trabalho…Como éramos poucos havia trabalho para todos. Naquela altura as pessoas recorriam mais aos advogados. Mais do que hoje?Sim. Por uma questão preventiva. Antes de fazer uma asneira iam falar com o advogado. Hoje não sei por que não o fazem. Há pouco tempo encontrei um cliente dessa altura que me foi consultar antes de fazer determinado negócio que desaconselhei. Não fez o negócio e disse-me que isso evitou que perdesse cinco mil contos. As pessoas pensam que as leis são de uma maneira e são de outra. Se preciso de meias solas vou ao sapateiro por isso se preciso de saber de leis tenho que ir ao advogado. As pessoas vão menos ao advogado também porque há um certo descrédito da justiça?As razões são várias. O poder de compra também diminuiu. Se as pessoas puderem evitar gastar 60 ou 80 euros fazem-no. Às vezes o que é barato sai caro. Por se estar próximo de Lisboa há quem prefira os advogados da capital?Houve um período em que as pessoas evitavam os advogados de Vila Franca e procuravam um advogado de Lisboa porque não queriam que se ficasse a conhecer as suas vidas. O meio era pequeno. O advogado ficava a saber quem tinha prevaricado. Isto acontecia em que altura?Anos oitenta. Isso passou até porque as pessoas começaram a perceber que recorrendo a um advogado de Lisboa pagavam honorários mais caros e as deslocações. Depois passámos a ser procurados para muitos divórcios quando as leis se modificaram. Já tinha sido o 25 de Abril e com o passar do tempo as pessoas foram perdendo a vergonha. Tem dinheiro por receber?Sim… As pessoas mais humildes são aquelas que têm mais preocupação em pagar. Mesmo com sacrifício. Aquelas que se julga que estão melhor na vida são perigosas. Já cheguei a pôr acções em tribunal. Em alguns casos recuperei o dinheiro. Já decidiu não cobrar nada a determinada pessoa?Não levava dinheiro da consulta quando julgava que as pessoas tinham dificuldades. Uma vez fiz isso e por coincidência fui ao banco e mesmo ao meu lado estava essa pessoa a quem eu não tinha cobrado nada a tratar da vida com valores suficientes para me pagar e muito mais. Hoje quando as pessoas me dizem que não podem pagar digo-lhes que juntem primeiro o dinheiro e depois venham cá.Um profissional dedicado Quis ser engenheiro químico e até médico mas acabou por seguir Direito, influenciado pelo trabalho do pai, ajudante de notário e empregado de um escritório de advogados. Fernando Valente, um dos advogados mais antigos de Vila Franca de Xira, 67 anos, a exercer há 34, nasceu em Alhandra. Mudou-se para Vila Franca de Xira com o pai e o irmão quando a mãe faleceu. Tinha oito anos. Ficou a viver com os avós até o pai voltar a casar. É em Vila Franca que continua a morar. Estudou na Universidade Clássica de Lisboa e casou-se com uma professora do ensino secundário. Tiveram dois filhos. Um é sociólogo e outro advogado. Começou a trabalhar como subdelegado do Procurador da República no Tribunal de Vila Franca de Xira onde esteve dois anos. Acabou por optar pela advocacia e integrou o gabinete do advogado Fernando Roque do Vale. Durante trinta anos trabalhou na Rua dos Bombeiros Voluntários, actual sede de O MIRANTE, em Vila Franca de Xira. O actual escritório é partilhado com o filho, Filipe André Valente, delegado da Ordem dos Advogados, e com Andreia Figueiredo. Fica localizado na Rua Noel Perdigão, para onde se mudou há quatro anos. A intensidade do trabalho nunca permitiu que praticasse desporto. “O meu desporto era levar os filhos à natação ou ao judo”, diz com humor admitindo que os avós foram uma ajuda preciosa na educação dos filhos. Foi durante alguns anos professor na antiga escola industrial de Vila Franca de Xira. Foi vice-presidente da direcção dos Bombeiros Voluntários de Vila Franca de Xira e presidente da assembleia geral. Assumiu ainda o cargo de presidente da delegação da ordem de advogados, esteve no conselho distrital de Lisboa e no conselho de deontologia de Lisboa. Evitou sempre levar trabalho para casa. Os livros jurídicos já lhe consumiram muito tempo, mas continuam a ser substituídos de vez em quando por livros de história e policiais. Não gosta de romances nem poesia mas conhece os clássicos da literatura portuguesa. Leu algumas obras de Alves Redol e tem edições originais. Nunca se ligou à política nem é filiado em nenhum partido. É contra a disciplina de voto e seria incapaz de atraiçoar a sua convicção. Ideologicamente situa-se à esquerda. Foi alferes atirador em Angola. Ainda hoje, mesmo 34 anos depois de iniciar a profissão, um dos advogados mais antigos de Vila Franca de Xira sente um nervoso miudinho na semana que antecede o julgamento.Improvisa-se no Tribunal de Vila Franca mas não se resolve o problemaChove na sala de audiências do tribunal de Vila Franca e algumas diligências decorrem em contentores. Estes improvisos são suficientes?Não. Isto não dignifica a imagem da justiça. É o atamancar aqui e acolá sem nunca resolver a situação. Este tribunal teve um período com falta de juízes. Ninguém queria vir para aqui porque era uma comarca muito trabalhosa. Há comarcas mais calmas com menos processos. Se for para o Norte tem muitos problemas da vizinhança e das partilhas, por exemplo. Agora o quadro de funcionários também está completo. Se os atrasos não são de um lado são de outro. Agora os julgamentos não se podem fazer nas salas de audiências… O Campus da Justiça era uma boa solução face às actuais condições do tribunal?Havia vantagens e desvantagens, sobretudo em relação à forma como ia ser feito. Era uma parceria público-privada. Por aí era negativo. Até porque o edifício nunca ficaria na posse do Estado. Não compreendo como se pode fazer isso assim. Se fosse o Estado a fazer o tribunal de raiz, como fez Vila Franca e muitos outros, ficando o património do Ministério da Justiça, seria mais conveniente. Há processos que se arrastam durante muito tempo. Qual é a sua experiência?Tenho um processo no tribunal de Vila Franca de Xira que é de 1999. São partilhas. Andou-se muito tempo à procura de um dos herdeiros. Estou à espera que seja marcada a conferência de interessados. Houve uma senhora juíza que não gostou do processo e quis acabar com ele. Lá tive que recorrer o que atrasou tudo mais uma vez. Felizmente o tribunal da relação de Lisboa veio dar-me razão chamando a atenção do juiz. Foi o mais longo?Tenho outro em Alenquer também de partilhas que se arrasta também há mais de dez anos. Muitos advogados falam sobre os casos que têm em mãos. Faz sentido que continue a existir o segredo de justiça?Não compreendo as declarações que certos colegas fazem sobre processos que estão pendentes. Isto não é permitido nos termos do estatuto da Ordem dos Advogados. Não sei se os colegas não conhecem o estatuto ou se pura e simplesmente se borrifam para ele. Podem entender que está ultrapassado mas então há que alterá-lo primeiro. Considera útil a criação dos tribunais de especialidade?Pode ter vantagens e inconvenientes. O que acho é que não devem ser retirados assuntos aos tribunais e entregues às conservatórias para diminuir o volume de trabalho dos processos nos tribunais. Isso aconteceu com os divórcios e partilhas. A acção executiva foi outra asneira. Tudo deveria continuar a ser feito da mesma maneira?Cada macaco no seu galho. Aquilo que são leis da competência dos tribunais devem continuar nos tribunais. Os tribunais é que devem ser apetrechados de forma a poder dar cumprimento a essas matérias. Uma conservatória não estava preparada para tratar de divórcios. Quando é por mútuo acordo não há dificuldade mas por vezes há que regular o poder paternal. O defensor do homem que roubou um queijo no primeiro supermercado de AlvercaLembra-se do primeiro julgamento que fez?Era um processo crime. Um senhor com mais de 70 anos tinha sido acusado de ter furtado um queijo no primeiro supermercado que existiu em Alverca. Foi fazer umas compras, levou uma gabardina e meteu um queijo relativamente pequeno, de valor irrisório, no bolso. Convenci-me que o homem ou fez aquilo inadvertidamente porque a idade já era avançada e existiam dificuldades financeiras. O juiz absolveu o homem. Ao mesmo tempo cumpriu-se a tradição de que no primeiro julgamento de um advogado o juiz só se não pudesse não absolveria o arguido. Era tradição para dar sorte à carreira de advogado?Sim. Eu nem sabia disso e quem me explicou foi o próprio juiz. Dr. Ramires, um juiz com letra grande. Depois dos julgamentos convidava-nos para tomar um café no Aracuá. E ele é que pagava os cafés. Isto hoje era impensável. Porquê? Cultiva-se a distância?Porque no próprio Centro de Estudos Judiciários, fazem questão de separar os senhores magistrados dos senhores advogados porque eles são da nata e nós somos da plebe. Sente isso no tribunal de Vila Franca?De uma maneira geral temos tido boas relações com os juízes que estão em Vila Franca. Já foi advogado oficioso?Já. Quando comecei nós éramos nomeados pelo próprio juiz. Só recebíamos alguma coisa simbólica quando perdíamos a acção. Esta não lembra o diabo. Agora já não interessa se perde ou se ganha. Lembra-se quanto recebia?Dez ou vinte escudos. Este sistema não fazia qualquer sentido. Também recebíamos com muito atraso tal como agora.Vila Franca de Xira parou no tempoComo vê a evolução de Vila Franca de Xira?Vila Franca de Xira não evoluiu muito, antes pelo contrário. Outras terras do concelho evoluíram mais. Inclusivamente Alhandra, tal como Alverca e Póvoa de Santa Iria. Vila Franca de Xira ficou esquecida. Houve a preocupação de atender às outras freguesias. O centro comercial foi um fiasco. Parece que estamos a voltar aos tempos antigos com lojas de comércio tradicional espalhadas. Nessas freguesias de que fala também se construiu demais…Sim. Por todo o país mas sobretudo nas zonas suburbanas. Parece que a solução estava só na construção. Podia passar pela construção mas não exclusivamente. Fernando Paulo, que foi estagiário no seu gabinete, daria um bom presidente de câmara?Absolutamente. É uma pessoa competente. Não por ser meu estagiário. Vi as qualidades que tem. É uma pessoa inteligente que estuda tudo o que faz. Fez uma prova brilhante. Teria dado um bom advogado. Melhor do que um autarca?Cada coisa no seu sítio. Como advogado sei que seria bom. Uma das críticas que lhe fazem é a de que não tem muito trabalho cá fora. É político profissional.Se concorrer a um cargo político isso até o ajuda porque já tem a experiência.
Quando as pessoas de Vila Franca contratavam advogados de Lisboa para escapar às más línguas

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