Memórias da Índia portuguesa 50 anos depois da invasão
José de Araújo partiu para Goa, na então Índia portuguesa, em 1960. Passou por Damão, percorreu o que restava do império português nessa zona do globo e viu a morte a rondar. Regressou incapacitado a terras lusas após a rendição do contingente português que tanto irritou Salazar.
Tem a hora e a data ainda gravadas na memória: 05h40 de 18 de Dezembro de 1961. José de Araújo tinha pouco mais de 20 anos e fora destacado para a Índia cerca de um ano antes. Há muito que se ouvia que os indianos iam invadir os últimos territórios portugueses, Goa, Damão e Diu, mas a ameaça já era tão antiga que os militares lusos a levavam na brincadeira. A invasão acabou por dar-se quando menos esperavam. “Eram dez mil soldados indianos, armados com G3, armas 30 vezes superiores às nossas. Nós em Damão éramos 300, com as velhas Mauser”. A aventura de José de Araújo começara a 3 de Janeiro de 1960, quando assentou praça e viu na lista, a vermelho, em frente ao seu nome, “Índia”. Vive actualmente em Riachos, Torres Novas, mas é natural de Lamego. Após três meses de recruta, partiu para Goa. Uma viagem de barco, com muitos balanços e enjoos. “Pedi a morte”, recorda, lembrando que o capitão lhe dizia que ele era forte e iria aguentar a viagem. Após oito meses em Goa foi para Damão. Já na Índia comprou uma máquina fotográfica e ocupou aqueles primeiros meses de tranquilidade e rotina a tirar fotografias às pessoas e aos lugares. Ainda hoje guarda num envelope os registos amarelados que conseguiu trazer da sua passagem pelas ex-colónias do Oriente, onde é possível ver casas ao estilo colonial, pessoas de rostos sombrios, casamentos e retratos de tropa. Comenta que já houve alturas em que as fotografias estiveram para ir para o lixo, mas vão sobrevivendo ao lado de outros álbuns de recordações.Sem problemas e procurando o convívio das populações, que apesar de alguns receios acabavam por se mostrar amigáveis, teria sido um serviço militar sem grande história não fosse a invasão indiana. O alerta já se ouvia há muitos meses, proveniente da rádio da União Indiana, mas os militares não acreditavam que viesse a suceder. “Aquilo era uma pândega, de conversas de rapazes”, recorda, comentando que Damão era pouco maior que Riachos. “Até ao fatídico dia…”. Estava a dormir quando ouviu a sirene e começaram os tiros. Em Damão pouco foi destruído, apenas os quartéis e o mercado. Os militares indianos conheciam bem o terreno, melhor que os portugueses, e apesar de em Damão ainda ter havido resistência durante 36 horas, as tropas portuguesas acabaram por render-se. “Perdi logo dois colegas”, conta, um no aeroporto e outro que se suicidou. José de Araújo ia numa carrinha de caixa aberta quando esta foi abalroada por um veículo indiano. “Fui projectado a 30 metros, a minha salvação foi o capacete. Parti o braço e fiquei com o joelho esmagado”.Foram horas de suplício. “Consegui estar no hospital aquelas 36 horas numa dificuldade terrível, era um sofrimento de morte. Assim que ouvia os aviões começava a tremer. Cheguei a ter sete pessoas debaixo da cama. A minha cama andou no ar”, recorda.Depois foi a história já conhecida. Os militares portugueses estiveram cinco meses prisioneiros na União Indiana, alguns quase foram fuzilados em Goa, mas conseguiram sobreviver. Da pátria distante, o ditador Oliveira Salazar exigia-lhes que lutassem até ao fim. Mas se isso tivesse acontecido “tínhamos morrido lá todos”, refere. Não tinham nem o número de homens nem o arsenal bélico para fazer frente à invasão indiana.José de Araújo é um dos sobreviventes. Estiveram para lhe cortar a perna, mas não deixou. Os médicos acabaram por encontrar uma solução e hoje tem uma incapacidade de 36,6 por cento. Enquanto prisioneiro, reconhece que os portugueses apenas foram mal tratados no que toca à alimentação. “Era uma água tingida com não sei quê, devia ser farinha. Depois uma metade de batata com muito caril, grão-de-bico, mas muito pouco. Quem quisesse comer tinha que comer arroz de caril, que lá se comia à mão”. Ainda experimentou o pitéu indiano, mas a experiência foi tão horrível que nunca mais tentou a proeza.Foi a guerra que o trouxe para RiachosFoi dos primeiros a regressar a Portugal por estar entre os feridos. Durante treze meses andou pelos hospitais, até que lhe permitiram regressar a casa. Poucos dias passados, foi visitado por um militar que o informou que estava apto para o serviço militar. A guerra em Angola começava a subir de tom. Sem ter para onde se virar ou como sobreviver, apesar de se saber incapacitado, escreveu às altas instâncias dando conta da sua situação e que, se estava apto, queria fazer carreira militar. Foi logo dispensado. “Eu fiquei com a rótula esmagada. Ao fim de três dias recebi carta a dar-me como incapacitado”. Comenta que foi a guerra que o trouxe a Riachos. Foi uma senhora que mais tarde viria a ser sua cunhada que lhe falou de um trabalho em Torres Novas, no hospital, e ele como estava inscrito na Liga dos Combatentes teve preferência. Veio para Torres Novas e em Riachos constituiu família. Acabou por estar como telefonista no Hospital de Torres Novas durante 36 anos. “Foi a minha salvação”, reflecte.Olhando para trás, confessa que gostava de regressar à Índia e ver o que mudou. “Já estive para lá ir. Aquilo não tinha nada. Eles só tiravam de lá ferro, mais nada. Damão era pior, tinham aquilo só por vaidade. Diu não cheguei a conhecer. Recordo-me das hienas, havia lá muitas. Tinham um cheiro muito desagradável. Cheguei a apanhar uns sustos. Vi um elefante ao longe. As pessoas eram muito simpáticas. Fossem hindus, cristãs, sicks, eram impecáveis. Tinham-nos muito respeito”.Sentiu alguma vez algum preconceito por ter sido um dos militares que perdeu Goa, Damão e Diu para a Índia? “Não fomos muito bem vistos quando cá chegámos, mas nunca nos trataram mal. Por vezes havia era certas bocas do género: «eles entregaram a Índia». Teríamos morrido lá todos”.
Mais Notícias
A carregar...