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Um homem formado na escola da vida

Um homem formado na escola da vida

António Jaime Carvalho, 73 anos, empresário, ex-autarca e dirigente associativo em Santarém, é um homem de múltiplos interesses

Pessoa que gosta de aprender, Jaime Carvalho interessa-se pelo que o rodeia e permanece atento aos dias que correm. Dono de uma empresa do ramo automóvel há 40 anos, diz que sempre viveu em crise, garante que não vai cortar regalias aos trabalhadores e critica as medidas laborais impostas pelo actual Governo. Considera que a CDU faz falta na Câmara de Santarém, que o PS cansou a cidade e que ainda é cedo para avaliar a gestão de Moita Flores à frente do município.

É dono de uma empresa há 40 anos. Ainda não se cansou de vender automóveis?Não, porque todos os dias que passam são dias novos. As empresas a meu ver assentam em dois pilares fundamentais: ter um respeito muito grande pelos clientes e apostar no investimento nos seus trabalhadores. Pode ter uma boa montra, pode ter tudo, mas nunca será uma boa empresa se não tiver estes dois elementos como perspectiva de base.Quanto ao negócio dos automóveis, tem margens apertadas e é preciso ter uma grande atenção aos dias que correm e àqueles que vão correr. Estou atento mas ligo pouca importância à chamada crise. Não é um discurso muito habitual nos tempos que correm para quem tem uma empresa.Não é não. Tenho aqui uma coisa engraçada, um livro sobre a posse do 1º Governo Constitucional que tinha como grande lema “vencer a crise e preparar o futuro”. A conversa já vem desde essa altura, há 35 anos. E se virmos as pessoas que fizeram parte de 1º Governo Constitucional temos que bater com as mãos na cabeça quando aparecem na televisão como se nunca tivessem tido responsabilidades políticas na vida. E tiveram-nas.Como empresário, como vê as medidas deste Governo relativamente às questões laborais?Os direitos laborais não são entrave para as empresas melhorarem a sua rentabilidade. Para mim isso é uma falsa questão. A água, a electricidade, os combustíveis chegam a preços insuportáveis e eu não os vejo muito preocupados com isso. Não sou economista mas tenho um medo muito grande de uma coisa que é falada, que é a recessão. Pode ser um poço sem fundo e levar muita empresa que deu o melhor de si a mergulhar numa recessão profunda. O que se ouve é que entrámos em recessão.Teme os dias que aí vêm?Se der ouvidos àquilo que dizem é um temor. Mas as pessoas de bom senso não podem dar ouvidos a um determinado tipo de coisas que são veiculadas, que vão deprimindo as pessoas. Algumas pessoas com quem falo dizem-me que já não querem ver televisão, pois ficam deprimidas.Esta é a pior crise desde que iniciou a sua actividade empresarial?Sempre vivi em crise. Essa é que é a questão. Vou lutar dentro das minhas capacidades e com as pessoas que me rodeiam, porque somos uma empresa familiar bem discutida todos os dias, para que a AutoGirar não se assuste com os dias que aí vêm.Vai implementar o horário de trabalho com mais meia hora por dia na sua empresa, como defende o Governo?Não vou. Não é por aí que a volta se dá. A volta dá-se estimando os clientes e convivendo com eles cada vez mais de perto. Essa é a nossa receita.É preciso ter uma grande capacidade argumentativa hoje em dia para se vender um automóvel, atendendo à muita concorrência que existe?Desde que a AutoGirar seja respeitada pensamos que há lugar para todos. A concorrência não é feita pelos nossos colegas que estão no terreno. Muitas vezes a concorrência pior é a feita pelos distribuidores aos fabricantes, que aparece nas televisões. Essa é que confunde os clientes. Tenho uma relação saudável e de grande respeito pelos meus colegas aqui em Santarém.Um militante da liberdade e da democraciaAntónio Jaime de Sousa Carvalho nasceu na Vila da Marmeleira (Rio Maior) em 11 de Maio de 1938, terra da família materna, mas aos 8 dias foi viver para Santarém, cidade da família paterna e onde os pais residiam. E ali ficou até hoje. Perante a renitência em frequentar o Liceu de Santarém, o pai pô-lo a trabalhar na firma onde era caixeiro-viajante. Foi através do progenitor, “um homem com ideias já avançadas para a época”, que conheceu uma “escola da democracia” chamada Estrela do Mar. Uma taberna e restaurante no centro histórico de Santarém propriedade do pai do advogado escalabitano, seu amigo e camarada da CDU João Madeira Lopes. Aos 15 anos vai trabalhar para os escritórios da firma Oliveira Lda., concessionária da Ford em Santarém, que encerrou há cerca de 15 anos. Decidiu então prosseguir os estudos e fez o chamado curso comercial no antigo Ateneu Comercial de Santarém, já extinto, “um grande estabelecimento de ensino” que funcionava no largo do Pereiro. Foi ganhando estatuto na empresa e aos 20 anos já era vendedor de automóveis. Até que, em 1971, decidiu estabelecer-se por conta própria. “Foi uma aposta de risco, como tudo na vida”.Na cidade é uma figura conhecida não só pela sua carreira empresarial de sucesso mas também pela ligação ao movimento associativo e à vida política. Foi autarca da CDU na Câmara de Santarém e na Assembleia de Freguesia de São Nicolau, esteve ligado ao mítico Cine-Clube de Santarém fundado por Alves Castela nos tempos da ditadura salazarista e hoje acompanha de perto a segunda vida dessa colectividade.O cinema é uma das artes que admira. A literatura também o ajudou a formar consciência política e cívica, citando nomes que para ele foram referências como os de Jorge Amado, Alves Redol, Fernando Namora, Ferreira de Castro ou Aquilino Ribeiro ou o cronista Mário Castrim. Cita também com alguma emoção o padre Francisco Nuno, que com ele integrou a comissão política do MDP/CDE, e o farmacêutico Francisco Viegas, pai de Mário Viegas. “O conhecimento nunca está completo, estamos sempre a aprender”.Na vida assume uma postura discreta, dizendo que não gosta muito de aparecer e de se fazer à fotografia. Fez durante muitos anos parte da coordenadora concelhia da CDU em Santarém, que deixou há algum tempo para dar lugar aos mais novos. Afirma-se um militante da liberdade e da democracia, foi opositor da ditadura e é um eterno admirador dos “militares generosos que fizeram o 25 de Abril. “Para quem o viveu foi uma coisa bela e eu fui um homem feliz nisso, porque o vivi”, diz.Mas, como não há bela sem senão, diz que a luta pela liberdade e pela democracia é uma viagem sem fim. “Veja-se há quantos anos foi a Revolução Francesa e ainda não estão cumpridos os três grandes princípios da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Ainda há muito caminho a percorrer no mundo”.Adepto do Sporting, adora futebol. Jogou na Académica de Santarém nos escalões jovens e deslumbra-se hoje com a máquina de jogar futebol que é o Barcelona de Guardiola e Messi. “O futebol é uma coisa bela porque é jogado por 11 jogadores. E só em unidade é que as coisas saem bem. Por isso é que mesmo na vida a minha preocupação foi sempre lutar pela unidade. É um lema de vida”.Um negócio de famíliaJaime Carvalho é casado, pai de três filhas e avô babado de cinco netos. As filhas trabalham todas com ele na AutoGirar, concessionário da Nissan em Santarém há quatro décadas. A empresa foi fundada em Outubro de 1971 e inaugurou recentemente novas instalações. Diz que é importante estar rodeado de pessoas de confiança e de quem gosta, mas quando se trata de negócios não há ali filhas nem pai. “Aqui há um respeito muito grande pela pessoa fora do quadro familiar e dentro de uma perspectiva de dinâmica comercial que uma casa como esta tem de ter, que é o lucro”. O empresário diz que o negócio faz parte da sua vida e as filhas entenderam juntar-se aos afectos do pai, o que ele aceitou. Ou seja, juntou-se o útil ao agradável.“Não tinha condições para ser militante do PCP”É um homem de esquerda, que me atrevo a classificar como próximo do PCP…Nunca fui membro do PCP. Fui vereador da CDU na Câmara de Santarém e pertenci também à Assembleia de Freguesia de São Nicolau, mas venho da CDE. Fiz parte da comissão política do MDP/CDE. Depois houve divergências. Faço parte daqueles que integraram a Intervenção Democrática. Mas tenho um grande respeito por homens do PCP que deram a sua vida pela democracia, como o Alfredo de Lima, de Alpiarça. Cito também a firmeza de um Álvaro Brasileiro, de um Humberto Lopes.Nunca pensou filiar-se no PCP?Nunca.E nunca lhe fizeram essa proposta?Não. Ser membro do PCP implica uma responsabilidade e um peso muito grandes e eu penso que não tenho essas qualidades. Os militantes comunistas têm que ser pessoas mais ligadas ao próximo do que propriamente à sua pessoa. E eu, pela profissão que desenvolvo, não tinha essas condições de sacrifício.Não é muito habitual ver empresários a darem a cara por projectos políticos com ligações ao PCP. Duvido sempre dos que dizem que não são políticos, pois todos eles vão votar. Ou seja, tomam uma atitude política. As pessoas devem votar, devem participar e dar a cara pelas suas convicções. Até porque essas pessoas, muitas vezes, têm grande qualidade e podiam ajudar a dignificar a actividade política. A classe política tem vindo a perder qualidade com o andar dos anos?Quem sou eu para avaliar? O que posso dizer é que faço parte de uma escola que não tem nada a ver com esta escola que anda por aí.E que escola é esta?Aproveitaram esta beleza que aconteceu com o 25 de Abril para exercerem a actividade política, mas muitas vezes por detrás estão interesses que mais tarde ou mais cedo se vêm a exibir através dos lugares que ocupam.Nunca receou que a sua ligação à política lhe pudesse prejudicar os negócios?Não. Admito que possa ter acontecido, mas não dei por isso. Não me devo violentar com essas coisas. Quando fui vereador recebi algumas cartas anónimas, alguns telefonemas anónimos, mas isso são acções que ficam com quem as pratica. É uma questão que não me mete medo. Se metesse era mau. A nossa Constituição salvaguarda a liberdade de expressão.“A CDU faz falta na Câmara de Santarém”A CDU quase desapareceu do mapa autárquico em Santarém. Porquê?A CDU sofreu um golpe muito grande com a ruptura da Luísa Mesquita. E depois disso deixou de ter representante no executivo da câmara, porque esperávamos que as coisas acontecessem de uma maneira mais correcta. Os lugares que cada um ocupa na CDU não são das pessoas, são da força política. Como não se deu a substituição do elemento da CDU, mais tarde deu-se aquilo que se viu. Com antigos presidentes de junta de freguesia da CDU a abandonarem a causa optando por uma falsa independência. Penso que um dia a cidade de Santarém vai ter necessidade de eleger novamente a CDU, porque ela faz falta. Ficou desiludido com a postura de Luísa Mesquita nesse processo?Politicamente sim, sobre o aspecto pessoal continuo a respeitá-la. Vemo-nos poucas vezes, mas uma coisa é a atitude política e outra é a pessoa. Quanto à atitude política não posso deixar de a condenar, porque foi um trabalho em que, por exemplo, eu participei com muitos companheiros durante mais de 30 anos.Como analisa a actual gestão autárquica?Pelo que posso verificar, de facto o PS cansou a cidade com os seus mandatos consecutivos. Depois apareceu uma figura pública a quem a população deu o aval. Julgo que está na altura de as pessoas atentas à cidade fazerem a avaliação correcta do que se tem feito e da gestão da própria autarquia.Que avaliação é que o senhor faz?Em relação ao que se diz, às vezes é uma coisa até bonita de se ouvir. Mas relativamente aquilo que a gente vê na cidade, sobretudo na zona mais antiga, acho que ela está mais velha e sem ter os cuidados que devia merecer. Acha que Moita Flores vai ficar na História de Santarém?A História é contada de diversas formas, mas é o povo que a faz. Moita Flores ficará na História ou não consoante o balanço feito pelo povo. E para já o balanço é positivo ou negativo?Não o fiz ainda.O senhor está a jogar à defesa.Não. Estou a ser sincero. Muitas vezes é preciso conhecer as coisas por dentro para se fazer a avaliação correcta. A CDU hoje não está na câmara e não estando perde uma importante fonte de informação. Fazer avaliações só pelo que se diz e ouve não vou por aí.Não há uma zona industrial em Santarém para receber empresasSantarém não tem praticamente áreas para instalação de empresas. É um problema com barbas que tarda em ser resolvido.O que nasce mal é difícil de endireitar. Nasceram mal dois pólos, a chamada zona industrial e a zona do CNEMA. Discuti isso profundamente e estou à vontade para falar disso. A zona industrial tinha um quadro legal que foi ultrapassado e se queriam ter ali indústria e serviços podiam ter feito um plano de pormenor prevendo isso. Mas havia no meu entender um campo muito mais vasto, na zona do CNEMA, onde podiam estar alguns serviços que estão na zona industrial. O que até lhe daria outra dinâmica. Mas algumas capelinhas políticas levaram à actual situação e hoje nem temos uma coisa nem outra.A Câmara de Santarém devia dar outra atenção a essa área?Sim. Até criou de uma forma fantasiosa as zonas industriais de Alcanede e de Pernes. Neste último caso não há lá nada, porque o terreno não é o mais adequado. Foi uma má decisão política. Deviam ter ouvido a população. Parece que na política existem verdades absolutas, mas nenhum de nós é dono da verdade. O comércio tradicional queixa-se da proliferação de grandes superfícies comerciais. Tem havido demasiada permissividade na sua instalação?Também estive nessa discussão. As zonas comerciais até podiam ser ponto de desenvolvimento em freguesias próximas da cidade. Mas ficando na cidade já se sabia que iria ter o reflexo que tem. Lembro-me de um presidente da Câmara de Santarém que jurou a pés juntos que era apenas uma e que só por cima do seu cadáver é que viriam mais.Está a referir-se ao presidente José Miguel Noras?O senhor é que está a dizer (risos)…O centro histórico está condenado a médio prazo?Ainda voltando ao tal presidente, numa discussão sobre Santarém a património da humanidade, ele dizia que queria as pedras da cidade vivas. E eu disse-lhe que para mim as pedras que ele referia eram as pessoas. Se as pessoas estivessem dentro da cidade velha e se a fossemos melhorando, depois podíamos ir pensando então em classificá-la. Eram formas de fazer política mais para caçar votos, para se dizer que se estava a fazer alguma coisa quando não se estava a fazer nada. Mas estava-se a gastar dinheiro. Foi um processo mal conduzido porque se começou a casa pelo telhado. Se primeiro se arranjasse a cidade e as pessoas lá vivessem, então sim, tínhamos tempo para pensar se a cidade tinha valor histórico para ser classificada. Veja-se o que se passa com o Teatro Rosa Damasceno e zona envolvente. Aquilo é doloroso.
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