Os 20 Kms de Almeirim nunca foram à câmara ao beija-mão
Gabriel Duarte, antigo vereador, diz que há muita gente na autarquia a fazer política e criar mexericos
Gabriel Duarte foi vereador do Desporto e da Educação na Câmara de Almeirim. Independente eleito pela CDU fez os últimos dois mandatos sem pelouros. É fundador da prova 20 Kms de Almeirim e da associação com o mesmo nome que tem dez secções desportivas. Nesta entrevista fala sobre a situação política no concelho e diz que as relações da câmara com a associação se degradaram neste mandato, chegando a falar em interferências. Homem sem papas na língua salienta que o presidente da câmara, Sousa Gomes, já devia ter saído do cargo e que agora vai abandonar as funções completamente de rastos.
Há quinze anos que não tem actividade política. Foi alguma desilusão?Com alguns políticos. A minha política era a da terra. No último mandato (1993/97) estava muito descontente com os procedimentos dos políticos do partido dominante, o PS. Passei por situações muito pouco honestas. As actas das reuniões de câmara apareciam ao fim de meses para serem aprovadas trazendo declarações que não tinha feito. Tinha à porta, no final das reuniões, empreiteiros e projectistas para me questionarem sobre o facto de votar contra determinado projecto urbanístico. Havia já alguém dentro da câmara preocupado em comunicar imediatamente as minhas posições. Era uma estratégia para o pressionar?O meu voto tinha o valor que tinha. O PS tinha a maioria. Penso que era para tentarem desacreditar-me. Como é que hoje vê esse período da sua vida?Era novo, impulsivo e prejudiquei muito a minha vida familiar, o acompanhamento dos meus filhos. Hoje lamento muito o tempo que deixei de lhes dedicar e que passei na autarquia, que acabou por não ter correspondência com aquilo que ansiava. Acabei por sair frustrado.E antes, quando foi vereador da oposição com pelouros na maioria PS e depois PRD com Alfredo Calado?Alfredo Calado tinha uma visão completamente diferente. Não se preocupava muito com a cor política das pessoas. Dediquei-me muito às escolas e ao desporto e penso que deixei um bom trabalho.Na câmara tinha a sua própria estratégia política ou a do PCP?Estava integrado na CDU e reuníamos habitualmente. Cada um expunha o seu ponto de vista e chegávamos a uma conclusão, a uma posição conjunta. O Partido Comunista também fazia reuniões mas nessas raramente estava presente. Por que é que nunca se filiou num partido?Sou incapaz, embora tenha sido convidado várias vezes. Tenho uma forma própria de pensar, obviamente com ideais de esquerda. Sempre quis e quero ter total liberdade para pensar e agir. Se fosse militante tinha que aceitar as decisões do partido e isso seria terrível se contrariasse a minha maneira de ser. Prefiro manter-me limpo da área partidária. Ser independente, pensar pela minha cabeça.Sente-se comunista, socialista…Sou um misto disso tudo. Quando era vereador nos mandatos do actual presidente Sousa Gomes eram raras as vezes em que não se inflamava. Era próprio da idade mas também não moderei completamente esses ímpetos. Há duas coisas que não guardo: o que tenho para dizer e o rancor. O que sinto é o que digo abertamente. Posso desentender-me com alguém numa discussão mas não o passo a considerar meu inimigo.Mas era visto como um radical.Não me considero um radical, quiseram sempre fazer passar essa imagem. As minhas posições não eram de radicalismo, mas sim de honestidade e firmeza. Quando eram apresentados os relatórios de contas do município encontrava tanta asneira que não conseguia conter-me. Um indivíduo, uma maioria, que apresenta as contas de um ano todas engatadas não tem perdão.Levantou casos bastante polémicos, situações que incomodavam a população. Hoje parece que as oposições estão mais centradas na politiquice…As coisas mudaram muito. As pessoas mudaram muito. Possivelmente terão razões para procederem assim. Se fosse vereador na oposição neste mandato de certeza absoluta que já tinha posto as cartas em cima da mesa e se as coisas não se clarificassem já me tinha vindo embora.O que é preciso clarificar?Saber quem manda na câmara. Se são os políticos ou outros. Os políticos foram eleitos e são eles que têm que mandar no concelho. O que me parece é que há funcionários que mandam mais na gestão da autarquia que os eleitos.Conhece alguém nessa situação? A chefe de gabinete do senhor presidente da câmara (Rosa Nascimento).E se fosse presidente de câmara…Obviamente demitia a Rosa Nascimento. Era a primeira coisa que fazia. Depois punha ordem na gestão da câmara, valorizando quem trabalha e desvalorizando quem nada faz. Há lá muita gente que não trabalha, que vai estando lá a fazer trabalho político, a criar mexericos. E há pessoas que trabalham a sério e não são valorizadas. O que seria melhor para Almeirim, era ter um presidente da CDU?Não me preocupa muito se é alguém da CDU, do PS ou do PSD. O melhor era ser eleito alguém que se preocupasse com as coisas da terra, com aquilo que interessa ao desenvolvimento do concelho. Há uns anos Almeirim era um dos concelhos que mais se tinha desenvolvido e hoje está parado. Estagnou. O que o leva a dizer isso?O que já se fez para criar emprego para os jovens? O que se fez para apoiar os agricultores? O que já se fez em termos culturais? Nada! Os empresários, os agricultores, os comerciantes são esquecidos. Uma câmara tem que se preocupar com o que tem. Na área cultural temos um cine-teatro que não serve para nada. Mas para haver actividades culturais é preciso dinheiro.Há cultura que se pode oferecer com pouco dinheiro e aproveitando os artistas da terra. Mas actualmente os artistas de Almeirim estão a mais. Temos pessoas conceituadas na área da pintura. Que incentivos ou pelo menos divulgação do trabalho já tiveram por parte da câmara? Já para não falar de exposições. Na área da música andam a actuar em outros concelhos vizinhos antes de terem uma oportunidade para se apresentarem na sua terra. Por que é que isso acontece?Porque a nossa câmara está alheia a todas estas coisas. Está fechada num casulo em que as coisas partidárias e a maneira de pensar de meia dúzia de pessoas que têm todo o poder é que importa. Tudo o que vier de fora é oposição e é mal vindo. E quanto ao resto, está tudo bem?Gostava de ver uma cidade mais harmoniosa em que existisse mais tempo para a cultura, mais atenção à ocupação dos nossos jovens. Há sempre equipamentos que se podem fazer, mas só depois de se conseguir dar utilização a 100 por cento aos que existem. Somos uma associação incomoda para os políticosEnquanto vice-presidente da Associação 20Kms de Almeirim como estão as relações com a câmara?Temos dez secções que são praticamente dez clubes. A câmara pediu-nos para criarmos três secções para assumirmos o andebol, ténis e natação. Mas este ano foram renovados todos os protocolos com associações e clubes e o nosso protocolo de apoio administrativo não foi, apesar de ter sido aprovado em reunião do executivo. Fomos à câmara obter respostas. Quando o presidente dos 20Kms mostrou que o protocolo tinha sido aprovado pela câmara e que não tinha sido desbloqueado, a chefe de gabinete do presidente da câmara rasgou-o à frente de toda a gente. Acabaram depois mais tarde por fazer o protocolo e já está em vigor. As relações estão tensas.Houve interferências várias na organização da prova 20kms do ano passado por parte do pelouro do desporto, através da assessora. Uma situação que chegou ao extremo de termos ficado sem o apoio do Grupo Conforlimpa. Isto criou um mal-estar. Acabámos por fazer das tripas coração para organizarmos a prova e a taça de clubes campeões europeus de estrada. Todos os encargos adicionais fomos nós que os suportámos.Mas a câmara acabou por dar o apoio habitual à prova.Sim, mas ainda não vimos o dinheiro. São cerca de oito mil euros. Por que razão é que o cheque que está passado há quase um ano ainda não foi entregue? Já nos pediram duas vezes a declaração em como não temos dívidas à Segurança Social, necessária para se fazer o pagamento. Quando perguntamos por que motivo ainda não nos entregaram o dinheiro dizem-nos que o cheque foi mandado guardar pela chefe de gabinete do presidente.O que é preciso fazerem?Se calhar é ir pedir o cheque à chefe de gabinete, mas isso não faço. Já expus circunstanciadamente a situação e está tudo na mesma. A empresa que forneceu os sacos para as lembranças da prova de há dois anos ainda só recebeu metade do valor. Ouvi na câmara que essa era daquelas empresas a quem só se pagava quando quisessem. Mas pelo menos ainda vão podendo usar os equipamentos municipais.Temos dois atletas que fazem triatlo e vão agora a provas importantes. Foram proibidos de treinar nas piscinas e estão a fazer os treinos de natação na Barragem dos Gagos. É incompreensível quando se calhar vêm atletas de Alpiarça treinar nas piscinas de Almeirim. Isto é perfeitamente inconcebível. O hóquei em patins agora e a prova 20Kms de Almeirim são os que mais público movimentam. Deviam ter outro tratamento?Não sei que apoios tem o Hóquei Clube os Tigres, mas ouço dizer que são muitos. Não tenho nada contra Os Tigres. Estão a fazer um trabalho interessante. Só tenho receio que estejam a dar passos maiores que as pernas, porque isso seria mau para o desporto em Almeirim. O hóquei tem tido o reconhecimento da autarquia e os 20 Kms até há cerca de dois anos tinham um relacionamento muito bom com a câmara. O que mudou?Se calhar foram os responsáveis pelo desporto. Passámos a ser uma associação incómoda. Passámos a ser o mais possível pouco recebidos. Porque não se vergam à câmara?Certamente. Nunca fomos ao beija-mão nem vamos. E enquanto lá estiver não vamos de certeza. Recuso-me a chegar à câmara e falar com outra pessoa que não seja o responsável pelo desporto. Não mando recados. Se calhar há pessoas que se sentem ultrapassadas por isso. Por isso nunca mais fui à câmara e agora é o presidente do 20kms, Domingos Martins (que já foi vereador do PS), que trata dos assuntos com o município.Sousa Gomes já pouco é de presidenteTem acompanhado o trabalho da oposição na câmara?Só há um opositor que é o Aranha Figueiredo (CDU). É um político polido. Em relação ao Francisco Maurício (independente) a luta política pessoalizou-se muito. O Francisco, que é meu amigo de infância, nem sempre terá tomado o melhor caminho e cheguei a dizer-lhe que o melhor era ir-se embora porque era uma peça abatida ao património da câmara. Fez muito bem em ter saído agora.E Manuela Cunha, que esteve pela CDU no mandato anterior…É uma mulher com uma vida difícil, é uma trabalhadora incansável na área política, tem muito valor mas tem um problema: é muito teimosa. Tenho simpatia para com ela mas essa teimosia acaba por lhe retirar credibilidade. O presidente Sousa Gomes tem condições para continuar até ao fim do mandato? Neste momento ele pouco é de presidente. Dei-lhe várias vezes o conselho de sair da câmara e gozar a vida enquanto podia. Agora vai sair completamente de rastos. Considero que nunca sairia com uma boa imagem, mas sairia com uma imagem razoável de um presidente que tinha deixado algumas marcas.Tem acompanhado a sucessão de Sousa Gomes dentro do PS?Parece que há uma série de partidos dentro do PS de Almeirim. Pelo menos há dois. E não me admiraria muito se nas próximas autárquicas aparecessem duas listas diferentes com origem no PS.O militar que não esquece os olhos tristes do menino a quem deu comida na GuinéGabriel Duarte, 60 anos, reformado do Fisco, foi o fundador da prova de atletismo 20Kms de Almeirim e depois da associação com o mesmo nome. Foi vereador durante 12 anos com o já falecido presidente Alfredo Calado e depois nos dois primeiros mandatos do actual presidente Sousa Gomes. Afastou-se da política. Dedica o seu tempo aos 20 Kms. Gosta do desporto apesar de na infância o seu desporto ser ajudar os pais na agricultura e jogar à bola na rua. O desporto que vai praticando de forma informal é o atletismo. Foi colega do capitão Salgueiro Maia na Escola Prática de Cavalaria em Santarém. Tinha a patente de aspirante. No 25 de Abril estava em Santa Margarida e estava previsto avançar para Lisboa para reforçar a equipa que tinha saído de Santarém. Acabou por não ser necessário e ficou com um grupo de homens a controlar a zona de Santa Margarida (Constância). Esteve na guerra na Guiné. Ele e os seus soldados foram os últimos a sair do território. Foi ele que arreou a bandeira portuguesa na ex-colónia portuguesa. Quando lhe perguntam se valeu a pena o risco e esforço de fazer o 25 de Abril, diz que sim, mas reconhece que se assiste a um retrocesso muito grande. De quem é a culpa? “Os políticos não podem ter a culpa toda. Nós, da geração do 25 de Abril, fomos muito maus educadores dos nossos filhos. Como fomos habituados a sermos privados de quase tudo e oprimidos, quisemos dar tudo aos nossos filhos, sem rei nem roque. E eles hoje nem sequer sabem o que é o 25 de Abril e pensam que as coisas caem do céu aos trambolhões”. Quando saiu da tropa voltou para as Finanças. Estava colocado em Almada. Um dia fez contas à vida. O dinheiro que ganhava não era muito e lembrou-se de voltar ao exército, então com o posto de tenente. Mas escolheu mal o dia. Estava a dirigir-se para o ministério quando viu uns aviões da Força Aérea a sobrevoarem o Terreiro do Paço. Estava a decorrer o 25 de Novembro. O golpe militar pôs fim à influência da esquerda militar radical no período revolucionário iniciado com o 25 de Abril de 74. As portas do ministério estavam fechadas e voltou às Finanças. Acabou a carreira na repartição de Almeirim. Na Guiné o que mais o marcou foi a miséria, “a forma como aquela gente sofria e sobretudo as crianças”. Recorda que no mato, quando estavam a fazer as refeições, tinham que ter uma chibata para afastar as muitas crianças que apareciam com uma lata na mão a pedir comida. “Nunca bati em nenhum mas tínhamos que os enxotar”. Houve um menino que o marcou. Os pais tinham sido mortos na guerra. “Fui a correr para ele e ele não fugiu. Perguntei-lhe se tinha fome e levei-o para a messe e mandei dar-lhe comer até ele querer. Passado uma hora ainda estava a comer. Passou a dormir na minha cama. Dei-lhe todo o dinheiro que tinha no bolso”. E ainda hoje está a ver os olhos tristes do menino quando teve que regressar a Portugal.
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