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“Quando comecei a dar consultas tinha o doente à minha frente e agora tinha lá um computador”

“Quando comecei a dar consultas tinha o doente à minha frente e agora tinha lá um computador”

Uma conversa com histórias de pessoas simples contadas pela doutora Antonieta de Almeirim

Tem um nome bem comprido. Maria Antonieta Rodrigues Grazina Loureiro Oliveira. Em Almeirim é a doutora Antonieta. Exerceu medicina até Abril deste ano, no centro de saúde local. Formou-se em Coimbra em 1972. Diz que na altura os médicos formados naquela cidade eram conhecidos por darem mais atenção aos doentes que os de Lisboa. Ela seguiu a tradição. O marido também é médico. Decidiu que se reformava aos 65 anos e cumpriu. Agora passa os dias na retrosaria que era do seu avô e foi do seu pai, na rua Dionísio Saraiva. A conversa com O MIRANTE foi feita ao balcão com interrupções constantes. Clientes para atender, pessoas que paravam à porta para a cumprimentar, antigas doentes que lhe pediam para lhes guardar os sacos das compras ou para lhes escrever a forma de tomar os medicamentos nas caixas que traziam da farmácia.

Quem sabe mais histórias da terra? O padre ou o médico?Falando por mim, diria que é o médico. Primeiro porque os doentes são mais que os católicos e depois porque algumas doentes me contavam histórias que tinham vergonha de contar ao padre.Qual a percentagem dos doentes que iam às suas consultas só para conversar?Não sei a percentagem mas eram muitos. Muitos mesmo. Trocámos histórias, receitas culinárias. Não os podia mandar embora. Lembro-me de uma senhora que às vezes entrava e avisava logo: “Ó doutora, eu hoje só venho para conversar”.Costumava recomendar exercício físico aos seus doentes? Recomendava. Claro que recomendava. Eu não fazia, mas recomendava. Agora nem é preciso recomendar. Pelo menos aqui em Almeirim é um corrupio de gente a fazer caminhadas à noite. Muitas dessas pessoas fartam-se de caminhar à noite mas no dia seguinte metem-se no carro para ir ao café. Eu sou ao contrário. Não faço caminhadas à noite nem nunca entrei num ginásio mas aqui na cidade vou a todo o lado a pé. Nunca ando de carro. Reformou-se em Abril. Já sente saudades do centro de saúde?Nenhumas. Gosto muito das pessoas que lá trabalham e tenho saudades de muitos dos meus doentes mas aquilo já era uma grande confusão. Eram muitos a mandar e nem sempre mandavam bem.Quando exercia ao fim de quantas horas de consulta começava a ficar saturada?O meu sinal para ir de férias era quando me entrava um doente no consultório e antes dele abrir a boca eu já estar farta de o ouvir.Antes de se reformar ainda teve que aprender a trabalhar num computador. Custou-lhe muito? Fui fazer formação e lá me desenrasquei como pude mas não gostei. Quando tirei o curso tinha à minha frente o doente e agora tinha um computador. Aquilo atrapalhava-me a mim e ao doente. A informática não é vantajosa?É, claro que é. Eu estou a falar na minha experiência. Antes dos computadores terem chegado ao centro de saúde o computador era eu. Uma espécie de base de dados humana. Quando era preciso saber quem era certa pessoa ou onde morava por causa de notificações para vacinas, por exemplo, vinham falar comigo. Eu conhecia os meus doentes e os doentes dos meus colegas. Uma sopa de pedra é uma comida recomendável para uma dieta saudável?Eu gosto muito de sopa de pedra mas reconheço que não é muito recomendável comê-la regularmente. Mas não é necessário bani-la. De um modo geral as pessoas podem comer de tudo, desde que seja nas doses correctas. O problema é definir o que é uma dose correcta.Exactamente. Um dia foi um casal à minha consulta. A mulher queixou-se que o marido bebia muito. Ele virou-se para ela indignado: “Bebo muito??!!!Eu bebo muito??!!! Cinco litros de vinho por dia é muito???!!!” Quantas vezes lhe perguntam se o pão engorda? Milhares de vezes. E engorda? O que engorda é o que se põe no pão. O pão não engorda e deve ser incluído na alimentação, principalmente o pão escuro. Mas comer pão, não é comer um quilo de pão de cada vez. Eu tinha um professor em Coimbra que costumava dizer que nunca tinha visto um prisioneiro de um campo de concentração, alimentado a pão e água, que tivesse ficado gordo.Um médico está sempre de serviço?De serviço e às vezes tem que estar pronto para todo o serviço. Um dia, ainda antes da sete da manhã, tocou o telefone de casa. Era um senhor de Paços dos Negros com um pedido muito original. “É de casa da drª Antonieta?! Olhe, eu sou irmão da Maria e queria pedir-lhe um favor. A minha irmã vai aí hoje à sua consulta. Diga-lhe que antes de vir para cá me telefone porque eu quero que ela me traga daí uma coisa”. Tinha muitos hipocondríacos no seu ficheiro de doentes? Alguns. Mais mulheres que homens. Elas só queriam um pouco de atenção. Se a vizinha tinha uma dor num braço ela tinha que ter a mesma dor, ou pior, nos dois braços. Dei consultas num lar de idosos e era uma tragédia. Havia uma que se não fosse a primeira já não queria ser vista. Se alguma saía da consulta e contava o que tinha, as outras quando entravam tinham o mesmo que ela e mais alguma coisa.As consultas de planeamento familiar funcionam?De vez em quando há uns percalços. Uma rapariga foi ao centro de saúde e pediu-me a pílula porque tinha um namorado e não queria engravidar. Dei-lhe duas embalagens de uma marca que tínhamos lá para ver se ela se dava bem com aquelas. Apareceu lá ao fim de quatro meses e disse-me que tinha feito um aborto. “Então dei-te a pílula e ficaste grávida?” E ela respondeu-me. “Mas só me deu para dois meses”. Enfim... provavelmente ficou à espera que eu fosse lá em casa entregar-lhe mais algumas embalagens.Receitou muito Viagra? Então não receitei!!! Na primeira consulta o homem ia com a mulher e era ela que explicava o problema. Nas consultas seguintes já só lá ia o homem. A vida sexual faz parte de uma vida saudável. É muito importante para a saúde mental do casal. Foi um medicamento que ajudou muito. Mas também receitei muito para jovens. Tem a ver com vidas pouco saudáveis... álcool, droga... etc.Há muitas mulheres que levam os maridos à consulta...Dizem que vão com eles porque eles não sabem explicar o que têm.Os homens quando estão doentes são mais queixinhas? São mais impacientes. Querem livrar-se daquilo o mais depressa possível? Se fosse possível tomavam o medicamento de uma única vez para acabarem com o sofrimento. E a doutora como reage quando está doente?Nunca estou doente...mesmo quando estou doente. Tem que andar o meu marido a insistir comigo para me tratar.A receita do sabonete líquidoAs estratégias dos médicos para levarem a sua água ao moinho têm dado para encher livros e livros. Maria Antonieta Oliveira tem a sua dose. Uma das que contou foi a de uma mãe de uma das aldeias do concelho que não cuidava bem da higiene dos filhos. A solução era aproveitar a altura em que alguma das crianças estava doente para lhe receitar, para além dos habituais xaropes, banhos mornos com um determinado produto de grande eficácia terapêutica...o sabão líquido. Os pedidos de atestados e baixas fazem parte das rotinas do médico de família. São dias para alguns trabalhos no campo, para as limpezas da casa na Páscoa, para justificar faltas nos tribunais. A médica de Almeirim diz que recusava quase sempre mas que às vezes era enganada pelas doenças imaginárias. “Um médico tem que acreditar nos seus doentes. Se eles diziam que se sentiam mal o que podia eu fazer?!”, justifica. Também havia os pedidos de atestados de jovens saudáveis para não fazer educação física nas escolas. “Na maioria dos casos eu respondia-lhes que apenas lhe podia passar um atestado para terem educação física...a dobrar”. Muitos doentes entram no gabinete de consultas e em vez de dizerem do que se queixam começam a ditar ao médico os medicamentos e exames que querem que ele passe. A drª Antonieta diz que nessas alturas a diplomacia é o melhor remédio. “Os doentes crónicos pedem o que estão a tomar. Não vem daí mal ao mundo. Os outros, por vezes, até têm razão em pedir certos exames. Cabe ao médico verificar e aceitar ou não as sugestões dadas. Eu nunca usei a famosa frase, aqui dentro o médico sou eu. Tenho um óptimo relacionamento com os meus doentes”, declara.
“Quando comecei a dar consultas tinha o doente à minha frente e agora tinha lá um computador”

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