Ainda não é o fim nem o princípio do mundo
Escolho para título da crónica uma parte do título de um livro de poesia deManuel António Pina que partiu este Outono. Um exemplo para jovens jornalistas que falou como um sábio sobre a honestidade e empenho que é preciso colocar em cada texto mesmo que o jornal acabe no dia seguinte a embrulhar peixe.O maestro José Júlio, matador de toiros de Vila Franca de Xira, falou-me certo dia dos seus fantasmas, dos seus mortos, que o acompanhavam a determinada altura à praça de toiros. Nesta crónica, iluminada por esta ideia, faço uma vénia, tão solene quanto a dos matadores de toiros, em humilde forma de letra, a todos quanto se cruzaram comigo e entretanto partiram ao longo da dúzia de anos que já levo deste ofício nesta casa.Letrados, magníficos reitores, revolucionários de base, bombeiros e homens e mulheres simples que frequentaram a universidade da vida. Guardo em casa “Stvdium Dilectvm”, colectânea de homenagem ao reitor Justino Mendes de Almeida, que se dedicou ao estudo como a um sacerdócio.Encontrei-o em Benavente em 2008 numa das poucas casas que resistiu ao terramoto de 1909. Contou-me, rodeado de livros, como se apaixonou pelo lirismo de Camões tendo nascido numa terra onde quase todos os rapazes estavam destinados a dedicar-se à agricultura: a arte de empobrecer alegremente.Do outro lado do rio, em Azambuja, cruzei-me mais tarde [ao mesmo tempo demasiado cedo] com Francisco Graça, bombeiro, recompondo-se dos tratamentos de uma doença que não conseguiu vencer pela segunda vez. Escreveu o livro “Voluntariamente feliz” dando testemunho de quanto é importante subir na vida 10 degraus em vez dos 20 que sempre ansiamos na ambição do dia a dia.Partiram ambos em 2012, tal como Manuel António Pina. Já dizia Alves Redol, em “Barranco de Cegos”, pedindo desculpa aos vivos, que nem todos os mortos merecem a mesma sepultura. Para os que ainda vivem, inspirados por aquilo que outros vão deixando, fica o título completo do livro de poesia do mestre que referenciei no início e que tenho pena de não ter conhecido. Foi publicado em 1974 mas assenta que nem uma luva aos conturbados dias que correm: “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo, calma é apenas um pouco tarde”.Ana Santiago - Jornalista
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