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O homem dos gostos musicais estrambólicos diz que o Entroncamento continua a voar rasteiro

Manuel Fernandes Vicente lança mais um livro onde explica porque é que há cidades que são berço de estilos musicais

Mora no Entroncamento há cinquenta anos e diz que a cidade é mal amada e que precisa encontrar uma nova motivação. Professor de Matemática na Escola Ruy de Andrade lamenta que o “tremendo” investimento feito pelo município e famílias na educação esteja a dar frutos que apenas são aproveitados por Lisboa. Melómano reconhecido acaba de lançar o segundo volume do projecto “Música nas Cidades”. Esta é uma conversa racional sobre paixões.

Já está à venda o livro “Música nas Cidades - Volume 2, de Manuel Fernandes Vicente, editado pela mediaXXI (www. mediaxxi.com). São cinquenta e nove capítulos com prefácio de António Matias Coelho e um texto introdutório que responde à pergunta: “Porque é que os estilos musicais estão ligados às cidades e às suas histórias?”Na capa foi colocado um parágrafo que ajuda o eventual interessado a perceber o que vai encontrar no interior. “Histórias, contextos, lendas, razões, líderes e empatias sociais que explicam porque é que algumas metrópoles se tornaram fontes de estilos e ritmos do mundo”. Ao longo de trezentas e dezasseis páginas o autor guia-nos à volta do mundo numa viagem musical que se inicia com “A eskeusta de Adis Abeba” e termina no “Barroco de Veneza” com passagem pelo “Tubo-folk de Belgrado”, o “Chicago House and Acid House Music”, o “Funaná e Batuque da Cidade da Praia” o Tex-mex de San Antonio” ou “As Marchas Populares de Lisboa”.O primeiro volume de “Música nas Cidades” da autoria do melómano professor do Entroncamento foi editado em 2008 e reunia a maior parte dos textos sobre o tema publicados no extinto jornal Blitz. Depois deste segundo volume já está em preparação uma espécie de “best-of” (o melhor) a que serão juntos capítulos inéditos, para possível edição no Brasil e nos Estados Unidos. http://mediaxxi.com/OnlineBookShop/“Gastava tudo o que ganhava em música” Nos dias de hoje é possível aparecer um estilo de música ligado apenas a uma única cidade como o tango de Buenos Aires, o Jazz de Nova Orleães ou o Fado de Lisboa?A questão está bem colocada, é pertinente e eu próprio me tenho interrogado sobre isso. Eu vou ao Festival de Músicas do Mundo em Sines e vejo uma banda com cinco músicos de cinco continentes diferentes. Eles juntam-se e fazem uma música que é rica, que é fértil, que é agradável de ouvir mas que tu não consegues identificar. No entanto, apesar de pensar que a globalização plasmou tudo e homogeneizou tudo eu ainda vou pela ideia de que é possível. Alguma vez teve interesse em tocar um instrumento?Não. Sempre tive mais tendência a observar e a analisar. Desde os meus 14 ou 15 anos que escrevo sobre música. Quando era adolescente ia de propósito a Lisboa para comprar jornais que vinham de Espanha, encomendava revistas e jornais de outros países e comprava discos. Jethro Tull, The Doors...Jefferson Aairplane...ainda hoje os preservo e acho que tenho uma das melhores colecções do país de LPs, quer de rock alemão, quer da música de Canterbury quer da música psicadélica de S. Francisco e de Los Angeles.Eram os gostos dominantes na altura? De maneira nenhuma. Eu era considerado estrambólico por ter gostos musicais dissonantes dos da maioria. Nunca me revi na corrente dominante. Preferi sempre caminho de pé posto que me davam mais trabalho mas que também me davam mais prazer...Calculo que não ouvisse fado. O fado era uma música para os velhos. Combinava pouco com o espírito de rebeldia e de irreverência que são próprios da juventude. Não era um estilo musical com que me identificasse na altura, ao contrário de agora que, francamente, aprecio. Mas há razões para isso. Aprecio muito a maneira como se insuflou uma aragem nova no fado dando-lhe modernidade sem o perverter.“Descobri toda a minha força interior no dia em que corri a maratona”Durante muitos anos Manuel Fernandes Vicente praticou regularmente atletismo. Era normal vê-lo a treinar nas ruas do Entroncamento e no parque do Bonito ou a participar em provas de estrada e meias maratonas. Um dia decidiu correr a maratona. A concretização dessa ideia iria transformá-lo para sempre.“Foi uma experiência única. Uma experiência quase existencial. Transmitiu-me um conjunto de ensinamentos que eu penso que não ia conseguir colher em mais lado nenhum. Sobretudo ensinou-me que a nossa força mental pode ser tremenda. O nosso carácter molda-se é nas grandes dificuldades que a vida nos põe”, explica.O “feito” aconteceu em 1992, em Lisboa. A partida foi dada em frente ao Mosteiro dos Jerónimos. “Preparei-me durante alguns meses especificamente para enfrentar a maratona. Sabia que era habitual por volta dos 33 ou 34 quilómetros os atletas encontrarem “um muro”, mas eu nunca tinha feito mais que trinta quilómetros, desconhecia essa sensação. Para mim a grande questão era conseguir concluir uma maratona. Acho que esse é o grande objectivo de quem corre e era o meu. A certa altura mentalizei-me que iria conseguir”, lembra.Manuel Fernandes Vicente foi correndo no meio de centenas de outros atletas até encontrar um que corria ao seu ritmo. Foi com ele lado a lado quilómetros e quilómetros até chegar à altura em que deveria estar o “muro” de que todos os maratonistas lhe falavam. “Aconteceu aos 34 quilómetros quando ia a passar no Cais do Sodré. De repente parece que o Mundo se abateu sobre mim. Tudo enegreceu. Senti-me a afundar fisicamente. Perdi toda a energia. A minha cabeça ficou numa névoa e eu não percebia o que se passava. Deixei de ouvir; de ver; de sentir. Fiquei a pairar no ar mas de uma forma muito negativa em que tudo estava contra mim. Tive a percepção que ia desistir mas a ideia que eu tinha criado de que ia conseguir, fez-me continuar”, conta.O relato prende quem ouve apesar do aviso de que aquela experiência não se consegue contar por palavras. “Os últimos oito quilómetros foram feitos de uma forma intensamente dolorosa. Cada metro implicava um esforço inimaginável. Foi uma situação tenebrosa. O Mundo tinha-se transformado num inferno e esse inferno tinha-se focado inteiramente em mim. Foi a minha força mental que me levou até à meta. Consegui. Fiz 3 horas 15 minutos e 19 segundos. Não foi um tempo brilhante e a chegada foi para esquecer até porque vomitei logo a seguir, o que nunca me tinha acontecido. Mas consegui.”.Em termos desportivos aquela foi a sua glória porque há uma diferença entre “quem fez a maratona e quem nunca fez a maratona” mas o maior ensinamento para a vida foi a descoberta da força da nossa mente. “Continua a ser chique não gostar do Entroncamento” A “inteligentzia” continua a ignorar o Entroncamento, porquê?Não tenho explicação para isso mas efectivamente o Entroncamento é uma terra mal amada. Acho que continua a ser chique não gostar do Entroncamento. Provavelmente há razões e eu não vou culpar as pessoas, nem vou culpar a cidade. Continuo a manter a minha paixão pela cidade e a tentar olhar para o seu lado mais positivo. Mas faz como os outros. Não intervém; não participa...Há massa crítica e por vezes há tentativas de conglomerar vontades num determinado objectivo mas quando as contrariedades aparecem as pessoas acabam por se desmotivar e afastar. Os poderes não são sensíveis a estes movimentos e por vezes hostilizam-nos. Há anos participei num movimento designado “Plataforma” que aglutinou muita gente com vontade de melhorar a estação e os caminhos de ferro e as condições dos utentes mas que encontrou obstáculos indefiníveis. Muros de borracha. Até mesmo dentro dos órgãos autárquicos que viram nesse movimento alguma forma de concorrer com os próprios partidos políticos...Nunca teve a tentação de se meter na política activa?Não. Que me perdoem os que pensam de maneira contrária mas eu sempre me apercebi que o enfrentar a política envolvido em partidos políticos me iria trazer mais dissabores do que estímulos. Apercebi-me muito cedo do que eram as realidades dos partidos e por isso procurei preservar-me a determinadas situações. Numa escala de zero a vinte que nota dá ao Entroncamento? Pergunta difícil...dou-lhe um 13. Tem havido um esforço nos últimos anos de tirar determinados locais de uma situação de degradação óbvia e de lhes renovar a imagem. Mas continuam a não existir medidas de fundo. Continuamos a não ter uma visão para o concelho. O Entroncamento continua a voar rasteiro. Precisa de um golpe de asa. Precisa de uma perspectiva mais ampla e de, eventualmente, criar uma nova motivação.O que tem sido bem feito? Tem-se investido muito na educação. Quer fisicamente, através da renovação do parque escolar, quer no apoio às escolas. Isso tem dado resultados. Os nossos alunos têm correspondido com resultados que são de destacar. O problema é que toda esta massa cinzenta que se cultiva e desenvolve e que resulta do esforço do município e das famílias, acaba por se perder. O Entroncamento não tira partido deste investimento brutal que tem feito na educação e estas pessoas vão criar riqueza para outros lados, nomeadamente para Lisboa. Temos que estar gratos a quem cria condições para acolher os nossos jovens e lhes dá emprego mas é pena que não sejamos nós a fazê-lo. Continua a ter prazer em ensinar?Sim. Cada vez mais. É estimulante. Dá-nos um sentido de vida tremendo. Sentimo-nos extremamente úteis. E procuro em cada dia, em cada ano lectivo, ser um bocadinho melhor, quer como professor, quer como pessoa e transmitir valores, conhecimentos, disciplina, organização e rigor aos meus alunos.Os comboios ainda têm importância para o Entroncamento? Faz sentido falar na capital do comboio?Faz todo o sentido. O comboio ainda tem peso e embora tenha perdido muita da importância que já teve. O Mundo dá muitas voltas. Há ciclos e oportunidades. O Entroncamento ainda vai beneficiar de novo desta relação com o comboio que é um transporte que serve toda a gente, é relativamente económico e é ecológico. Tudo depende de uma alteração da sociedade e até política. De estimular os movimentos dos comboios para reacender de novo esse interesse. Eu não punha um epitáfio no comboio.O que pensa do Museu Nacional Ferroviário?Sempre fui um adepto do Museu Nacional Ferroviário mas estou desiludido com a forma como o Museu tem sido levado para o público. Não é cativante. Pensava que houvesse um comboio histórico a ir pela linha da Beira Baixa, por exemplo. Recriações do ambiente dos anos 40 ou 50 do século passado. O Museu está afastado das pessoas. Os fenómenos do Entroncamento têm algum interesse para a cidade? O Entroncamento está a perder a oportunidade de agarrar isso e é pena. Hoje em dia tudo é cinzento e amorfo. Tudo é igual. As cidades precisam de pegar em algo que as diferencie. O Entroncamento teria muito mais a ganhar se tivesse uma dinâmica de marketing que tirasse partido dos fenómenos em vez de meter a cabeça na areia e fingir que aquilo nunca existiu. É o receio do ridículo...Há muitas cidades que aproveitam coisas suas menos positivas, com bastante sucesso. Aqui ao lado em Espanha, Ronda (a 60 Km de Málaga) até tem um Museu do Bandoleiro que é um sucesso em termos turísticos. Esta entrevista está a ser feita na Barquinha a seu pedido. Estamos a conversar com o Tejo à nossa frente. Este é o seu habitat? Para mim a Barquinha é um prolongamento do Entroncamento. O presidente da Câmara de Torres Novas quer que o Entroncamento seja uma freguesia do seu concelho. Isso são questões mal resolvidas por ele. É uma ideia que não faz qualquer sentido. O Entroncamento com Torres Novas não faz sentido nenhum. Com a Barquinha sim, não só a nível histórico como socialmente. Há uma interpenetração social e comercial e de trabalho entre estes dois concelhos. Há muita gente da Atalaia e da Barquinha que vai às compras ou trabalha no Entroncamento e do Entroncamento vem-se à Barquinha a desfrutar do que existe. E há uma proximidade. O próprio Cardal é Entroncamento que não coube no Entroncamento, como acontece com alguns pequenos lugares à volta do Entroncamento.Quando Vicente cantava e toda a república escutavaManuel Fernandes Vicente é professor de Matemática na Escola Básica 2,3 Dr. Ruy de Andrade no Entroncamento, cidade onde mora desde os 11 anos de idade. Filho de um militar da Guarda Nacional Republicana nasceu em 1952 no hospital de Castelo Branco por questões circunstanciais. A família dos progenitores é de Malpica do Tejo. A profissão do pai e as constantes transferências a que o mesmo estava sujeito, fizeram com que, ainda em criança, tivesse morado em Alenquer, Santarém, Mação e Abrantes. No Entroncamento frequentou o externato Mouzinho de Albuquerque. Seguidamente fez o liceu em Tomar e dali foi para a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra.Embora tenha dois livros publicados sobre “Música nas Cidades” não sabe tocar nenhum instrumento. Mas tem ouvido para a música e sabe cantar. Em Coimbra, quando estava alojado na “Real Republicana”, uma república dos filhos dos militares da GNR que ficava no quartel daquela força de Segurança, fazia-se um silêncio respeitoso quando ele cantava o fado “Samaritana”.Para além de Matemática houve alturas em que também leccionou Físico-Química e Jornalismo. É correspondente do jornal Público, foi fundador do jornal Notícias do Entroncamento e foi no extinto jornal musical Blitz que publicou as primeiras crónicas que estiveram na origem dos seus livros. Foi em Malpica do Tejo, nos longos meses das férias de Verão, que ganhou o gosto por ouvir música. Ele e um grande amigo que morreria anos mais tarde na guerra colonial, faziam concursos para ver quem primeiro adivinhava o cantor ou o grupo que passava na rádio. Mega consumidor de todos os géneros musicais a ideia para o “Música nas Cidades” surgiu quando esgotou a forma tradicional de catalogar os milhares de discos, CD e DVD. Como havia géneros que não eram totalmente rock, ou jazz, ou samba, etc, etc, surgiu-lhe a ideia de os organizar por cidades. Assume-se como entroncamentense e considera improvável um regresso à aldeia dos seus pais. “Quando era miúdo e lá ia de férias, o primeiro dia era passado a cumprimentar a família. Tínhamos familiares porta sim, porta não. E o último dia era destinado às despedidas. Agora as casas estão lá e as pessoas não. É deprimente”.

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