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Os problemas de Tomar estão ligados ao seu passado templário

Os problemas de Tomar estão ligados ao seu passado templário

João Godinho Granada fala da sua cidade por altura de mais um aniversário da urbe templária, que se celebra a 1 de Março

João Godinho Granada, 80 anos, é um advogado tomarense radicado em Lisboa há meio século que nunca esqueceu as suas origens. Apaixonado por História, é autor de vários livros onde busca explicações para a actualidade. “Sem conhecer o passado, não conhecemos quem somos”, atesta quem considera que os tomarenses herdaram uma mentalidade “templária” que urge mudar em prol do progresso.

Está há 50 anos em Lisboa mas é frequente vê-lo em Tomar. Sente o apelo da terra-mãe?Sou filho de mãe tomarense e de pai nazareno e vou, regularmente, tanto a Tomar como à Nazaré. Tenho casa em Tomar e não desperdiço as épocas notáveis e solenes da cidade como é o caso da Festa dos Tabuleiros ou o encontro dos antigos alunos do extinto Colégio Nun’ Álvares, por onde passei. É sempre com grande vontade que regresso. E o que recorda mais dessa passagem?Fui aluno, em regime externo, entre 1942 e 1947. Sou do tempo dos três fundadores iniciais do colégio que foram o Dr. Raúl Lopes, o Dr. Gil Marçal e o professor Ilídio Correia. As melhores recordações são as dos colegas, dos amigos, da época, daquilo que era Tomar naquele período e das pessoas. Que diferenças nota entre Tomar da sua juventude e a cidade actual?Tomar era uma cidadezinha de província, muito agarrada às suas tradições, muito senhora das suas prerrogativas, da sua História, do seu passado. E era uma cidade, sobretudo, enquadrada na zona que constitui hoje a freguesia de São João Baptista, o chamado centro histórico. A ponte ligava-a à outra freguesia, Santa Maria dos Olivais, a chamada “além da ponte”, que na verdade era uma zona muito rural composta por hortas, quintas, veredas, caminhos estreitos, azinhagas, olivais. Então, Tomar deu um salto e a zona “além da ponte” urbanizou-se intensivamente. Hoje, quanto a Tomar, é difícil dizer que é uma única cidade. Como assim?Tomar hoje são duas cidades com características diversas. Até a maneira de ser da população é diversa. Enquanto em “aquém da ponte”, actual freguesia de São João Baptista, se constituiu um núcleo histórico, menos movimentado e com uma população mais envelhecida e ligada às suas raízes, a zona de “além da ponte”, Santa Maria dos Olivais, apresenta estruturas modernizadas, uma população mais rejuvenescida, um comércio mais activo. Há dinâmicas diferentes.Nota-se uma preocupação constante de revitalizar o centro histórico. Cada vez há menos razões para frequentar o centro histórico, que é onde se localiza o núcleo edificado notável e característico do passado. Para a vivência do dia a dia as pessoas procuram mais Santa Maria dos Olivais. É ali que se encontra a Filarmónica Gualdim Pais, que se expandiu com actividades desportivas e culturais, todas as escolas secundárias, o Instituto Politécnico, o Hospital, as instituições culturais. Já na velha São João Baptista há apenas uma filarmónica centenária, com menos dinamismo e cultura de actualidade. O rio Nabão acabou por ditar o destino da parte velha da cidade?Sim, mas não só. A parte velha da cidade tinha a célebre Fundição Tomarense, que fechou. Tinha os correeiros, os latoeiros, as oficinas a trabalhar em ferro forjado, marcenarias... Tudo isto acabou. Estas actividades encerraram e não foram substituídas por outras. O grande estabelecimento fabril de Tomar foi a Fábrica de Fiação e Tecidos que vivia fundamentalmente de algodão em bruto importado de Moçambique, que chegava em boas condições e a preços convidativos. Entretanto, tornou-se inviável importar esta matéria-prima da sua origem e a fábrica começou a declinar. Tomar hoje encontra-se sem indústria. Há quem diga que é esse o principal obstáculo ao seu crescimento. Concorda? O problema de Tomar, e da evolução de Tomar, está radicado na maneira de ser e na identidade dos tomarenses. Há uma falta de capacidade de iniciativa porque Tomar foi, desde a sua origem, um domínio templário e, portanto, teve um destino traçado que se pode sintetizar nos dois forais de Tomar escritos por D. Gualdim Pais. Que diziam esses documentos?O primeiro, data de 1162, e concedia aos tomarenses o direito de habitar a terra e de a transmitir por negócio ou herança mas não admitia que gente nobre viesse ali morar a menos que se sujeitasse a viver como o povo de Tomar. O segundo surge após a construção do castelo, que demorou dez anos, em 1174, quando D. Gualdim Pais dá um apenso ao foral anterior em que vem especificar a existência de problemas tais como “injúrias e roubos” que pretende corrigir comportamentos. Isto marcou, a meu ver, definitivamente e para sempre as gentes de Tomar, criando uma certa incapacidade de pensar e resolver as questões práticas que se prendem com o progresso e evolução material. É portanto devido a uma herança multisecular que Tomar não evolui?Os tomarenses manifestaram, desde sempre, uma orientação comportamental muito virada para as actividades lúdicas, culturais, artísticas e intelectuais. Em termos culturais, é uma cidade de uma riqueza inesgotável. Já em relação à evolução industrial esta deu-se sempre com a ajuda de pessoas de fora de Tomar. Por exemplo, é com o primeiro Governador da Ordem de Cristo, o Infante D. Henrique, que Tomar vai dar um grande salto, desenvolvendo-se no aspecto urbanístico. Os traçados paralelos e perpendiculares das ruas do centro histórico, que ainda hoje se conservam, a ele se devem. O mesmo se passou com a actividade industrial?Quando se tratar de dar um salto para a frente, de modernizar em termos de inovação industrial, de produtividade, de transformar coisas em dinheiro são sempre pessoas de fora porque os tomarenses estão muito agarrados à sua maneira de ser, que vem dos tempos da fundação da cidade. A excepção que confirma a regra, neste caso, é o industrial Manuel Mendes Godinho, um homem extraordinário. Fundou moagens, a primeira central eléctrica que Tomar teve e uma das casas bancárias de Tomar. “A justiça está pelas ruas da amargura”Tirou o curso de Direito na Universidade Clássica. Foi por vocação?Fiz o curso de Direito sem repetir uma única cadeira. Senti uma vocação completa para o curso embora, na vida prática, não possa dizer o mesmo. Apanhei muitas desilusões devido à maneira como funcionam os tribunais e, infelizmente, continuam a funcionar. A justiça já não funcionava muito bem mas agora está pelas ruas da amargura. Tem piorado constantemente. O tempo que os processos se arrastam pelas secretarias e bancas dos juízes, o tempo que demoram os julgamentos, as sentenças, os despachos, acaba por significar uma denegação da justiça. É o contrário da justiça, uma injustiça. Quantos anos exerceu advocacia?Mais de quarenta anos. Activamente até aos 75. Mantenho a inscrição na Ordem, pago a minha contribuição e mantenho as condições para exercer mas não tenho tido vontade de retomar a actividade. Fui um advogado de barra, generalista, actuando em todos os ramos do Direito e “franco-atirador”. Trabalhei sempre sozinho, embora dividisse um escritório com outros colegas com quem partilhava despesas e conversas.Chegou a inscrever-se no curso de Farmácia em Coimbra mas desistiu. Porquê?Não gostei daquilo. Era incompatível com os tempos. Em pleno século XX, na disciplina mais importante do curso, que tratava o conhecimento dos fármacos, estudava-se as características das plantas o que me pareceu bastante desactualizado. A ideia para Farmácia foi mais moldada pela família com o Dr. Raul Lopes com a perspectiva da rentabilidade. Tratava-se de uma profissão com futuro assegurado.É advogado mas já escreveu vários livros. Sente-se um pouco historiador?Dizer que sou historiador é um exagero (risos). Eu gosto é muito da História do meu país. De saber como começou, como evoluiu, o que houve antes e como chegámos à nossa actual situação, para perceber justamente os tempos de hoje. Não é possível entender quem somos, como somos e o que somos sem perceber o que já passou. Já escrevi alguns livros sobre Tomar mas também publiquei três sobre a Nazaré.Há desinteresse pela agricultura e falta de espírito inovador na indústriaQue sentimento experimenta em cada regresso a Tomar?Quando vejo desfilar as nossas filarmónicas sinto um orgulho muito grande. Quando assisto às representações do grupo Fatias de Cá sinto um prazer cultural enorme. Quando vejo os nossos ranchos a cantar e a dançar sinto um prazer muito grande. Tenho bastante orgulho no meu berço tomarense. Em contraponto, tenho muita pena de não ver um desenvolvimento maior nas actividades primárias e secundárias. Tenho muita pena de ver o desinteresse da população de Tomar pela agricultura e a falta de espírito inventivo, inovador no aspecto industrial. Precisamos de estabelecimentos que consigam trocar bens por dinheiro. A cidade vive de uma actividade terciária que acho exagerada e que não pode ser sustentada sem uma agricultura e indústria.O que é necessário para quebrar a estagnação que a cidade vive?Primeiro que tudo é preciso que os tomarenses tenham dinheiro. Para sobreviver e para gastar. Que as pessoas possam gastar mais do que ganham. E para as pessoas terem dinheiro é preciso que produzam bens transaccionáveis, que possam ir para fora contra dinheiro que venha para dentro. Se Tomar conseguir retomar o seu ciclo produtivo, produzindo bens que cubram as necessidades actuais, então teremos um comércio florescente, uma cidade cheia de gente e veremos um desenvolvimento económico. Repare, Tomar foi próspera quando teve a sua fábrica de fiação a trabalhar em pleno, as suas três fábricas de papel, uma fundição a trabalhar para todo o país. Tempos que já lá vão.A actual situação tem a ver com a apatia, com a vivência pouco interessada dos tomarenses. Tomar agora sobrevive, não vive. Os grandes avanços deram-se quando a cidade teve grandes governantes como, no século XIX, um grande presidente da câmara chamado João Torres Pinheiro, ou quando teve, no século passado, o general Fernando de Oliveira. Os tomarenses entregavam os seus destinos ao presidente da autarquia, que se esforçava por eles. Os tomarenses têm vivido muito disso: entregam os seus interesses a quem governa a cidade. A cidade também tem que viver da sua capacidade de realizar dinheiro. Que problema gostava de ver resolvido em Tomar?O problema é, fundamentalmente, cultural. Ou os tomarenses assumem uma capacidade cultural de intervenção, de dinamismo, de criatividade e desenvolvimento e Tomar muda, ou não assumem essa capacidade e mantêm apenas o interesse pela cultura musical, coral ou teatral e tudo continua na mesma. Apesar de tudo, Tomar deve defender a marca “Templários”?Sim. Tomar ter sido uma cidade templária, ter tido origem na Ordem do Templo, ter sido a sede da Ordem do Templo e, mais tarde, da Ordem de Cristo são motivos de orgulho. Mas não chega, não é suficiente. Querer reduzir toda a actividade produtiva de Tomar ao turismo não é o caminho para o progresso. É crucial saber conjugar e harmonizar, culturalmente, as memórias do passado com as certezas do presente e as esperanças do futuro. Este é um esforço que deve ser entendido de particular relevância para Tomar, terra que não nasceu ontem. Um pato bravo assumidoFoi na Casa do Concelho de Tomar em Lisboa, onde se radicou há 50 anos, que falámos com João António Godinho Granada, numa tarde chuvosa de sexta-feira. É casado, tem dois filhos e sete netos. Com uma lucidez e memória bem apuradas, nasceu a 2 de Junho de 1932 numa casa da Rua da Fábrica, freguesia de Santa Maria dos Olivais, Tomar. Foi nessa cidade que fez a instrução primária, tendo frequentado o ensino secundário no extinto Colégio D. Nuno Álvares Pereira. Em 1948 rumou a Coimbra, algo contrariado, para frequentar o curso de Farmácia que entretanto abandonou. Aproveitou a passagem pela cidade dos estudantes para fazer parte da Tuna Académica e de grupos de serenatas, tendo ainda fundado a “Real República dos Inkas”. Mais tarde matriculou-se na Universidade Clássica de Lisboa, onde se licenciou em Direito. Fez o serviço militar no Regimento de Infantaria 15 em Tomar como aspirante a oficial miliciano. Foi destacado para o Campo Militar de Santa Margarida, onde integrou a Brigada Portuguesa da Divisão Shape da Nato. Promovido a alferes e depois a tenente miliciano cumpriu comissão de serviço em Moçambique. Regressado, fixou-se em Lisboa exercendo advocacia em nome individual. “Pato bravo assumido”, presidiu sucessivamente ao Conselho Fiscal, à direcção e à assembleia geral da Casa do Concelho de Tomar em Lisboa. Actualmente preside ao Conselho Regional. Foi ainda presidente da primeira direcção da Associação dos Antigos Alunos dos Colégios de Nun’Álvares de Tomar. Em Setembro de 2012 lançou o livro “Tomar, Tempos e Gentes”, onde revela o seu apurado sentido de humor descrevendo-se como estando “fora de qualquer academia ou seita, não filiado em qualquer partido político, não titular de qualquer cargo público ou administrativo, não interessado em qualquer empresa ou negócio, não beneficiário de compadrio ou sinecura”.
Os problemas de Tomar estão ligados ao seu passado templário

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