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“Faço um funeral como um pedreiro faz uma parede”

“Faço um funeral como um pedreiro faz uma parede”

Carlos Lopes, 52 anos, agente funerário, Perofilho - Santarém
Continuo a morar na aldeia de Perofilho, Santarém, onde nasci e cresci. Sou filho único. O meu pai é carpinteiro e a minha mãe é doméstica. Fui estudar para a escola comercial e industrial de Santarém mas a determinada altura quis uma bicicleta, uma moto e um relógio e decidi ir trabalhar para ter o meu próprio dinheiro. Comecei a trabalhar aos 17 anos a lavar carros funerários. Foi o que me apareceu na altura. Tirei a carta de condução e comecei a conduzir os carros e a ajudar nos funerais. Trabalho na área há 32 anos. Já saltei de empresa em empresa, montei agências, fechei agências e comprei agências. A determinada altura cheguei à conclusão que esta é a área que domino, é o que gosto de fazer e é nisto que sei ganhar dinheiro. Passei a encarar a morte de forma diferente a partir do momento em que nasceram os meus dois filhos. Deixou de ser fácil fazer funerais a bebés. Quando somos jovens não nos lembramos que o pai e a mãe vão ficar velhos e vão morrer e que também nós iremos passar por esta situação. Embora consigamos adquirir alguma insensibilidade nesta actividade acabamos por ser humanos. Faço um funeral como um pedreiro faz uma parede. Quando está a assentar tijolos está é a lembrar-se que o Benfica joga logo à noite. É quase a mesma coisa. Temos que fazer o serviço o melhor possível porque somos profissionais. É claro que quando passamos por uma situação destas agimos todos da mesma maneira. Cheguei a ajudar a fazer a autópsia de um amigo. O profissionalismo prevaleceu numa fase inicial. Mais tarde quando abri a urna e vi que era o Luís que ali estava tive um choque tremendo. Comecei a chorar e a disparatar. Depois fiquei tão transtornado como as outras pessoas que lá estavam. Já cheguei a cair numa cova antes do morto. Acontece muitas vezes. Escorregamos com o peso da urna e saímos de lá de dentro cheios de lama. Agora os coveiros põem as tábuas à volta, o que serve de protecção. Tenho centenas de peripécias. Todas as situações que podem acontecer num funeral já me aconteceram. Até já fiz um funeral de marcha atrás, com o carro avariado a reboque de um camião.Uma vez fui chamado para fazer o funeral de um homem que a mulher foi envenenando aos poucos com veneno dos ratos. Quando fui ao médico, que o tinha visto 24 horas antes, para que ele me assinasse o certificado de óbito disse-me que ninguém morria com uma dor de barriga. Fizemos o funeral e só mais tarde soube que a senhora tinha sido presa. Há mais de vinte anos que o meu desporto é a caça. Tenho 14 cães de caça. Alguns pouco caçam, só comem, mas adoro aqueles bichos. Sou eu que trato deles. Lavo-os, alimento-os, limpo o espaço e levo-os às vacinas. Já me habituei a ter o pescoço apertado porque ando sempre de fato e gravata. Quando não a ponho já sinto falta. Hoje é excepção porque foi dia de lavar os carros. Sou um faz tudo nesta empresa. Lavo os carros, o chão, limpo as urnas e até domino a área jurídica. Sempre foi assim. É assim que eu faço a minha casa crescer. Mesmo nos dias em que não tenho nada para fazer, trabalho, porque entrar numa tasca e beber um copo é trabalhar. Quando morre alguém lembram-se que estivemos lá. Esta é a melhor publicidade que podemos fazer até porque nesta fase as dificuldades de pagamento são grandes. É nas aldeias que ainda há dinheiro. Na cidade já não vale a pena procurar.Gosto de boa comida e aprecio uma boa garrafa de vinho. Nunca almoço em casa. A minha vida é andar por aí. Às vezes não janto nem durmo em casa. Posso ser contactado por uma família que quer fazer um funeral de um familiar no Norte. Durmo com o telemóvel ligado porque posso ser chamado durante a noite. Contribuo para as tarefas domésticas sujando para a esposa limpar (risos). Não sei fazer nada em casa. Nem estrelar um ovo. Não sei, não gosto, nem quero aprender. Há uma série de factores que se conjugam. Fui sempre mal habituado. Tenho um filho economista e uma filha médica mas ainda não tenho netos. Quando preciso de tirar férias tenho que desaparecer de avião para longe. Se ficar num raio de 300 quilómetros sou capaz de receber uma chamada de um pai do amigo que faleceu e voltar a correr. Não consigo ser de outra maneira. No ano passado fui aos Açores e a Barcelona. Vivo um dia de cada vez por causa da profissão que tenho. Já não faço projectos a longo prazo e tento viver o melhor que posso. Há pessoas que pensam que não morrem e que continuam a fazer projectos e a importar-se com pormenores. Já levei bebés, crianças, jovens e pessoas da minha idade. Todas as pessoas morrem e nunca sabemos qual é o nosso dia.Ana Santiago
“Faço um funeral como um pedreiro faz uma parede”

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