uma parceria com o Jornal Expresso

Edição Diária >

Edição Semanal >

Assine O Mirante e receba o jornal em casa
31 anos do jornal o Mirante

Sermão do planalto

Naquele tempo, como o mito, Santarém era o nada que é tudo. No «Central» p’la tardinha, boémios, la-tifundiários, professores, artistas, marialvas, aficionados do lado da sombra, actores imperfeitos num palco inclinado, abancavam ufanos. Entretanto, na rua Direita, provocante e assumido, o Clementino, a única nota pós-moderna na cidade integralista de Virgílio Arruda, dos regentes agrícolas, e do excesso de história, passeava o seu esplendor. Excesso é como quem diz, que os ecos do S.P.N. e da exposição do mundo português, resplandeciam que faz favor. As damas, se de condição, falavam piano e tocavam em francês (na maison, é claro).As restantes, prendadas na agulha, escutavam sonhadoras «os olhos castanhos», na rádio Ribatejo, e às vezes picavam-se, mas era raro. O Celestino insistia à vara larga nos campinos, cabrestos, e nos sementais da Marquesa d’Alorna. O padre Nuno, matreiro, debuxava caricaturas da ortodoxia. O Castela conspirava baixinho na plateia. O Cabeça d’Abóbora, todos os anos pela Primavera, vinha de fantasma cortar o baraço à Feira. Os servos da gleba enxameavam o Planalto a pagar a décima, enchiam os seirões de compras, e corriam a via-sacra embasbacados. Os do liceu chateavam o «Cocas» continuamente, pisavam a relva, marravam na «Organização Administrativa da Nação», e vingavam-se à biqueirada nos caloiros. Jocoso, no miradouro, cigarro nos queixos, o Pina recitava: «O sol raia os campos e as flores, e o café está na mesa…». Até que.Até que, depois do adeus à ruralidade, de cuja a urbe fora a cabeça da Lezíria toda, com as respectivas mordomias, a revolução saiu à rua num dia assim, a festa foi bonita mas, como na República, na guerra civil de frades e barões, nas guerras por causa da Beatriz contra Castela, e por aí abaixo, de «primeira no saimento do rei» como mandavam os forais, fulgurando aqui ou ali, Cinderela pobre em trajo de princesa, Santarém, no mais íntimo do seu ser aristocrático, nunca mais deixou de andar às óchas (termo arcaico mas ainda menos mau). E agora, Josés? Rosalinas? Noras? Eugénios? Veríssimos? Canavarros? e tantos outros que, melhor ou pior, com acertos e falhas, a trazem cravada na alma como um punhal? Chegará de lérias? De ser dada em arras a aretinos e bérnias, na classificação de Cervantes? P’ra cá do vale quem cá vive é que nos vale? E o resto? Um coaxar mole de pseudo-influentes e famosos a prazo, no charco precário do existir? Servem-se, insultam, e ala? Talvez, mas.A Fénix está aí de novo. Está aí na pós-industrialização. Na agricultura biológica. Nas auto-estradas do conhecimento. No ambiente sustentável. E alguns ainda gostam de poesia. No miradouro, em S. Bento, na Alcáçova, em noites como esta, o Universo em expansão, depois do big-bang, fervilha de constelações, mágicas e antigas. Entre elas, como no poema, bruxuleante, uma luz, algures, num mundo ainda por conquistar, uma luz, uma pequenina luz, brilha. Mário Rui Silvestre

Mais Notícias

    A carregar...