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“A Chamusca tem feito bastante pela cultura ribatejana”

António Matias Coelho, professor e estudioso das tradições da nossa região, explica a importância que manifestações festivas como a Semana da Ascensão têm para a valorização das tradições e para o reforço da identidade de uma comunidade. “No concelho da Chamusca tem-se dado um relevo especial ao lado cultural da vida. Tem-se entendido que a valorização destes rituais não deve ser apenas uma questão meramente simbólica, folclórica ou turística”, diz.

A Quinta-Feira de Ascensão continua a ser feriado em vários concelhos do Ribatejo mas a data parece ser cada vez menos celebrada, salvo algumas excepções como na Chamusca. O que pensa disso?Isso acontece porque se foram perdendo as memórias que estão associadas à sua origem. Aliás, o decreto que legalizou o feriado municipal da Chamusca explicava porque concedia a esse município e a mais alguns o direito de celebrarem esse dia. Tinha a ver com as tradições rurais ligadas ao amadurecimento das searas e à apanha da espiga. É um conjunto de rituais muito próprios do mundo rural e muito particularmente desta zona do país. Com o andar dos tempos as coisas foram mudando.Entretanto os anos passaram, a vida mudou. Por acaso este ano o Ribatejo tem mais trigais, mas durante anos houve poucos, isto foi invadido pelo girassol no tempo dos subsídios e, mais recentemente, pelo milho. O Ribatejo rico é hoje um mar de milho. Além disso, hoje a agricultura é feita sobretudo por máquinas e uma das características das máquinas é que não têm tradições e não apanham a espiga. Na Chamusca ainda se mantém essa tradição.É natural que as tradições se vão perdendo, a não ser que haja um esforço, como o que a Chamusca fez em devido tempo, para as valorizar e para as promover. Para que, estando elas fatalmente condenadas ao desaparecimento, porque nada é eterno, se possa pelo menos retardar o seu definhamento. No concelho da Chamusca o apanhar da espiga não é uma manifestação para a fotografia ou para turista ver. É uma manifestação genuína e popular mantida por pessoas que vão apanhar a espiga porque os pais apanhavam, porque os avós apanhavam e porque lhe atribuem significado. Acreditam que o apanhar da espiga tem um valor benéfico, que lhes garante um ano de felicidade, de paz.Em que medida este tipo de manifestações é fundamental para a preservação e reforço da identidade de uma comunidade?Sobretudo num mundo cada vez mais globalizado, se não valorizamos as coisas que nos distinguem um dia destes somos todos iguais. A apanha da espiga é uma afirmação da nossa identidade rural. O povo da Chamusca dá mais importância às datas simbólicas e a certos rituais do que as populações de outros concelhos?No concelho da Chamusca tem-se dado um relevo especial ao lado cultural da vida. Tem-se entendido que a valorização destes rituais não deve ser apenas uma questão meramente simbólica, folclórica ou turística, mas sim uma forma de as pessoas se reverem nessa simbologia, de assumirem isso como seu e de serem a garantia que essas manifestações vão prosseguir.As escolas podem ter um papel importante no recordar dessas datas marcantes de uma comunidade.E têm. No concelho da Chamusca, as escolas e jardins-de-infância têm feito um trabalho notável com os alunos para dar continuidade a essas tradições.Tem a noção de como é que os seus alunos vivem a Semana da Ascensão?A própria escola assume que na Semana da Ascensão é desaconselhável marcar testes de avaliação. Há uma certa tolerância, especialmente na sexta-feira, pois na quinta-feira é feriado. E a Ascensão na Chamusca não se resume à apanha da espiga...Sim. Na Chamusca a Ascensão é um conjunto de manifestações da qual a apanha da espiga é a primeira de todas e eu diria a mais importante. Mas é apenas uma. Nos últimos 25 anos, devido sobretudo à intervenção do município da Chamusca, as celebrações da Ascensão foram revitalizadas, quer na componente das tradições rurais como na das tradições taurinas, que são uma outra componente. E o que se fez neste quarto de século de promoção da Quinta-Feira de Ascensão transformou-a - hoje já nem tanto, por causa da crise - numa grande festa do Ribatejo, frequentada por muita gente que já não tem qualquer relação com o campo, que não conhece ou não valoriza as tradições que deram origem à festividade. Outras componentes menos tradicionais da festa passaram a ser mais valorizadas?Essas pessoas, e os meus alunos também, se calhar valorizam mais a parte dos concertos, da cerveja, das brincadeiras com os toiros, mas, sobretudo, a parte talvez menos recomendável da festa, que é a da cerveja e das bebedeiras. O estar em Ascensão, que foi uma feliz designação que se arranjou, infelizmente para muitos jovens significa hoje estar com uns copos a mais. O que mexe mais consigo nessa festa da Chamusca?É o lado rural da festa. Nasci no campo, em Salvaterra de Magos, sou filho de agricultores, fui criado neste universo. A minha mãe ainda hoje apanha a espiga, tal como eu. Não há Quinta-Feira de Ascensão sem apanha da espiga. Faz parte do meu estar na vida. O que mexe mais comigo na Quinta-Feira da Ascensão é o louvor da natureza. Acontece 40 dias depois da Páscoa, quando a natureza está madura e se exibe em toda a sua pujança. É o tempo dos dias bonitos, do tempo quente sem ser tórrido. Apanhar a espiga representa essa ligação quase umbilical à terra. O que distingue a Semana da Ascensão na Chamusca de outras festas ribatejanas de cariz tradicional?A alma, a matriz é o que a distingue. A apanha da espiga e também a tradição taurina são a essência última da matriz rural da Chamusca. E por isso é que são preciosas. É qualquer coisa que persistiu para além do desaparecimento do que lhe esteve na origem. Porque num tempo em que quase não há camponeses, ou pelo menos já não há camponeses como no tempo em que essas coisas se faziam, a tradição ainda vive.“O Ribatejo não morreu”A Câmara da Chamusca provou nos últimos anos que não é necessário gastar rios de dinheiro para manter viva a tradição. As autarquias devem continuar a empenhar-se neste tipo de actividades ou devem passar mais a responsabilidade para a chamada sociedade civil?Penso que as autarquias não podem fazer tudo. Nem devem. Mas podem fazer alguma coisa e têm essa obrigação, porque os municípios são órgãos que representam as populações e a sua identidade e têm responsabilidades ao nível da cultura e dos valores locais. O essencial é a defesa e valorização dessas tradições, para permitir depois à sociedade civil fazer o preenchimento do resto. Os municípios são os guardiões desse sentimento profundo das gentes, da sua matriz cultural.Acha que tem havido sensibilidade por parte dos autarcas ribatejanos para essas questões?Há autarcas que fizeram esforços notáveis nesse sentido e há péssimos exemplos de autarcas que pura e simplesmente se demitem dessa função, que não fazem nada. Não vou dizer quem são, mas as pessoas sabem. E depois há ainda pior, que são aqueles que fazem o contrário do que deviam fazer. Porque às vezes mais vale estar quieto. Mas diria que, em termos gerais, há municípios que têm feito bastante pela cultura do Ribatejo. A Chamusca é um deles.São festas como a da Semana da Ascensão que ajudam a manter viva a alma ribatejana, apesar de o Ribatejo administrativamente já não existir e cada vez estar mais dividido?Mas o Ribatejo existe, porque existe dentro de nós. Se me perguntarem o que é que sou, respondo que não sou de nenhuma NUT ou CCDR nem pertenço ao QREN não sei do quê. Sou português primeiro e ribatejano a seguir. O Ribatejo não morreu apesar das reformas administrativas, porque os ribatejanos se sentem ribatejanos. A cultura ribatejana é muito rica e variada. A tradição dos cavalos na Golegã, dos toiros na Chamusca, da Boa Viagem em Constância, do Colete Encarnado em Vila Franca, do Barrete Verde em Alcochete, da Feira de Maio na Azambuja, dos Santos no Cartaxo, dos Tabuleiros em Tomar, entre outras, fazem a alma do Ribatejo e ele só acaba quando não houver ninguém em Portugal que se diga ribatejano.Um ribatejano de gema que vive no “lado certo” do TejoAntónio Matias Coelho considera-se um ribatejano de gema. Nasceu em 11 de Julho de 1957 em Salvaterra de Magos, onde viveu a infância e parte da juventude. Já formado em História, residiu na Chamusca, onde continua a leccionar, vivendo já há uns bons anos na Golegã. É também assessor cultural da Câmara Municipal de Constância. Durante toda a sua vida só saiu da região que o viu nascer quando estudou em Lisboa e no Porto e quando deu aulas durante dois anos na Madeira.Casado, pai de uma filha e já avô, tem uma visão curiosa do Ribatejo, que explica quando o questionamos após dizer que actualmente vive “do lado certo do rio” Tejo, referindo-se à margem norte. “Passou-se sempre tudo do lado de cá do Tejo, pelos séculos fora. O outro lado é o lado esquecido, sempre foi. As grandes vias de comunicação do país, desde a Idade Média, passaram sempre a norte do Tejo. E a Chamusca é especialmente esquecida. Almeirim, Benavente e Salvaterra têm auto-estrada. Alpiarça tem uma auto-estrada perto. A Chamusca não tem nada. Tem uma ponte que foi melhorada mas que é um funil”.E acentua: “O Ribatejo é composto pela lezíria, pelo bairro e pela charneca. A lezíria é a parte rica, o bairro é a zona que diria remediada e depois há a charneca, que é o mundo dos pobres. Zona pedregosa, onde as distâncias são grandes, que ficou para os eucaliptos, para os fogos, para a desertificação humana”. Um panorama que, na sua óptica, é difícil reverter. “Estas coisas têm sempre tendência a agravar-se. Não temos visto que se faça seja o que for para contrariar isto. É uma espécie de ciclo vicioso de onde é muito difícil sair”.Matias Coelho refere que essas circunstâncias estão na origem de ter ido residir para a Golegã. “Sou uma vítima, entre aspas, disto. Preferia viver na Chamusca e não vivo lá há quase 30 anos porque não consegui arranjar casa. Empurraram-me para o lado certo da vida, para o lado certo do Tejo”, afirma, reconhecendo que o facto de a Chamusca ter mantido esse lado mais pobre, mais fechado, teve a vantagem de conservar melhor as tradições. “A mudança nesses meios é mais lenta”, alega.Do que se compõe o ramo da espigaEmbora as pessoas apanhem a espiga de forma espontânea, porque o que interessa é fazer um ramalhete vistoso, há uma forma “canónica” de se fazer o ramo da espiga, explica Matias Coelho. O ramo é composto de três espigas de trigo (que representam o pão, a fartura, o alimento), três malmequeres amarelos ou brancos (que representam a riqueza - o amarelo simboliza o ouro e o branco a prata), três papoilas (que representam o amor e a vida), um raminho de oliveira em flor (que simboliza a paz), um esgalho de videira com o cacho em formação (que representa o vinho e a alegria), um pé de alecrim, um pé de rosmaninho (que representam a saúde e a força). O significado da AscensãoA Ascensão significa a subida de Jesus Cristo ao céu. “O que a tradição cristã nos transmitiu é que Cristo morreu na Sexta-Feira Santa, ressuscitou ao terceiro dia e depois manteve-se na terra 40 dias, durante os quais apareceu aos apóstolos e depois, à vista deles, elevou-se aos céus. No calendário católico a Ascensão, que é sempre à quinta-feira por ser 40 dias contados após o Domingo de Páscoa, é o momento em que se celebra a consumação da missão do Deus vivo na terra. O filho de Deus que se faz homem, que vive a sua vida, que faz a sua pregação, que morre, que vence a morte ressuscitando e que depois volta ao céu, de onde veio. Esta é a explicação religiosa”, diz Matias Coelho.E acrescenta: “Não foi a tradição rural que ‘cavalgou’ a tradição católica no que toca à tradição da apanha da espiga nesse dia, mas o contrário. Foi a festa religiosa que se colou a uma tradição que já existia, associada à maturação das plantas e que já se fazia no tempo dos romanos anteriores ao cristianismo”.

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