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Aos cem anos Manuel da Gertrudes é um exemplo de amor à vida

Aos cem anos Manuel da Gertrudes é um exemplo de amor à vida

Tem a mesma idade do concelho em que nasceu e sempre viveu: Alcanena. A 11 de Julho, no dia em que completou um século de vida, Manuel da Gertrudes lançou um novo livro “Quadras soltas e mais alguma poesia”, que retrata uma vida cheia de histórias contadas em forma de rima. “Parar é morrer”, sentencia o autor, exemplo de longevidade e dono de uma memória invejável.

É um fim de tarde solarengo em Gouxaria, Alcanena, que nos espera para iluminar a conversa com Manuel António Ferreira da Gertrudes, que aguarda por O MIRANTE sentado numa cadeira branca de plástico à porta de casa, antes de nos convidar a entrar. O brilho que ilumina o dia é o mesmo que ilumina o rosto deste centenário que se confessa um apaixonado pela vida. “Gostava de viver até dar, mas já não podem ser muitos”, lamenta-se entre sorrisos.Quando questionado sobre o porquê de gostar tanto de escrever poesia, responde com uma das suas quadras: “Já vi muitas luas cheias / Mas a idade não me ilude / Eu sinto ainda nas veias / Algum sangue da juventude”, declama como quem resume o seu estado de espírito após um século de vida. “Vê? Com quatro versos diz-se algo com princípio, meio e fim”, afirma taxativamente.Manuel Gertrudes nasceu a 11 de Julho de 1914. Nesse ano era fundado o concelho de Alcanena e começava a I Guerra Mundial. Natural de Bugalhos, afirma ter tido “uma juventude muito carinhosa”, resultado porventura de ser filho único, reconhece. Entrou para a escola primária e sentiu-se posto de lado pelo professor “que tinha ideologias políticas diferentes do meu pai”. O seu progenitor decidiu retirá-lo da escola e educá-lo em casa, até que outro professor fosse escolhido para leccionar.Aos 13 anos foi viver com um tio em Torres Novas, para trabalhar na mercearia deste. “Naquele tempo quem não tinha posses tinha que ir trabalhar”, afirma. Uma “fraqueza pulmonar” devolveu-o a casa de onde só voltou a sair, já recuperado, para o seminário em Santarém, onde admite ter adquirido um nível educacional elevado. Uma reincidência da doença atirou-o novamente para os braços da sua mãe para se restabelecer. Só voltou a sair de casa para ir trabalhar, de vez.À beira de atingir a idade adulta, iniciou uma vida de trabalho que não mais quis largar. Começou por trabalhar na indústria dos curtumes, um trabalho “muito duro” porque “naquela altura era tudo artesanal”, recorda entre suspiros. Assumindo-se como “um verdadeiro homem dos sete ofícios”, trabalhou ainda na Comissão Reguladora do Comércio Local, graças a um tio que lhe “arranjou esse gancho”, até esta se extinguir. Esteve depois na Caixa de Crédito Agrícola durante 17 anos e, por fim, no escritório de uma oficina de metalomecânica até 1984, altura em que se reformou com 70 anos.Pelo meio, leccionou na escola primária de Filhós durante quase vinte anos. “Foi o serviço que mais gostei da minha vida. Gostava do que ensinava e tinha amor pelas crianças”, frisa com o mesmo brilho nos olhos com que iniciou a conversa.A viver na Gouxaria há 50 anos, Manuel da Gertrudes garante que leva “uma vida jeitosa”. “Vim para aqui como um passarinho para o ninho”, acrescenta. Apesar de estar reformado não se confinou a uma vida sedentária. Arregaçou mangas e até perto dos 85 anos ajudava a esposa, Isaura Gonçalves, 22 anos mais nova, no negócio de venda de fruta porta a porta que esta herdou dos pais. “Parar é morrer” é o lema que o tem guiado neste século de vida.Benfiquista “de quatro quadras” e católico praticante - ainda vai à missa aos sábados - desloca-se frequentemente a Alcanena, sozinho, no autocarro que apanha numa paragem perto de casa. “Olhe que até aos 85 anos eu ia a pé a Alcanena”, refere. Prolongar pelo tempo as actividades de que gosta é algo que lhe é intrínseco. Com 80 anos ainda ia à caça às perdizes e ainda cultiva a horta. “Tenho um amor por aquilo que nem calcula. Planto tudo: vegetais, couves, nabos, cenouras, cebolas. Mando lavrar a terra mas sou eu que planto, rego e sacho”, vinca. Para o que resta dos seus dias, Manuel da Gertrudes destaca “o convívio familiar” como aquilo que lhe dá mais prazer. Se ainda tem sonhos? “O meu único sonho é ser amigo de toda a gente, nunca conheci inimigos”, diz envaidecido antes de terminar com mais uma quadra que sintetiza a sua ideia: “Nunca tive inimigos / E digo isto sem vaidade / Conheci muitos amigos / Mas amigos de verdade”.Paixão marcada pela tragédiaA vida tranquila que leva nem sempre foi uma realidade. A tragédia também abalou a vida de Manuel Gertrudes. Com cerca de 20 anos teve o desgosto da sua vida: “Perdi uma namorada, ela morreu com febre tifóide”, diz entristecido. “Era um namoro muito contestado pela família” o que tornou a dor ainda maior. Nessa altura escreveu várias quadras pela memória da sua antiga paixão: “Se aí no céu houver janelas / Pede ao senhor para me conceder / O favor de assomares a uma delas / Para eu cá da terra te poder ver”, é apenas um exemplo que nos relata.Mais tarde casou mas esse foi um matrimónio que não deixou grandes saudades a Manuel da Gertrudes: “Nem vale a pena falar”, atira. Voltaria a casar apenas em 1977 com Isaura Gonçalves, a companheira com quem ainda permanece: “Ela ia à Caixa [de Crédito Agrícola] com o pai e convidei-a para ir jantar. Foi difícil, mas sabe que tudo leva o seu tempo”, conta. “Dei-lhe a volta com um bocado de habilidade”, diz com convicção. Do primeiro casamento de duas décadas, Manuel Gertrudes teve 3 filhas, mas duas morreram ainda bebés. “A outra vive em França mas falamos todas as semanas”. Tem ainda uma neta. Ambas apareceram de surpresa na apresentação do livro, algo que o deixou visivelmente emocionado.Do casamento com a actual esposa herdou também “um filho verdadeiro” revelando que sempre foi “um pai dedicado” para Herculano Gonçalves. A família, garante, é o seu pilar. Apesar de nunca se ter envolvido na política, porque “trabalhava para comer e mais nada”, tem ligações familiares a dois rostos bem conhecidos da política na região. É padrasto de António Herculano Gonçalves, antigo deputado na Assembleia da República, e primo de Pedro Ferreira, actual presidente da Câmara de Torres Novas, que fez questão de marcar presença na cerimónia de lançamento da obra.Doenças da juventude não deixaram sequelasApesar da sua longevidade, Manuel Gertrudes tem um histórico de doenças enquanto jovem que não deixavam adivinhar que apagaria as 100 velas. Dois problemas pulmonares antes dos 18 anos deixaram-lhe graves marcas: em ambas as vezes teve de abandonar o trabalho para poder recuperar totalmente.Em 1937 teve uma tuberculose que o obrigou a deixar de leccionar e andou quatro anos em tratamentos até se curar. De tal modo sentiu a vida escapar-lhe entre os dedos que jamais esqueceu o nome do homem que o salvou: Dr. Artur de Oliveira, médico que só lhe cobrou a primeira consulta durante todo esse tempo. A doença mais grave, contudo, foi a que lhe predestinou a longevidade: “Quando eu tinha 4 anos tive uma doença gravíssima na pele. Eu estive tão mal que a minha mãe perguntou ao médico se eu ia morrer”, conta. “O médico disse que eu ia morrer mas não morri. Como sobrevivi, ele disse que não havia doença nenhuma que me matasse, que só morria de velho. E aqui estou eu com 100 anos”, diz com vaidade.Primeiro livro de versos lançado aos 98 anos“Quadras soltas e mais alguma poesia” não é a primeira obra do autor. Manuel da Gertrudes lançou em 2012 o seu primeiro livro intitulado “Versos Meus”. Questionado sobre se esta segunda obra é como que uma autobiografia, refere que “há um pouco disso, sobretudo pelos namoritos” mas que há muitas quadras que são “coisas que me lembro de escrever”.Desde pequeno que mostrou interesse pela escrita, nutrindo grande admiração por Eça de Queiroz. Na sessão de apresentação do novo livro de Manuel da Gertrudes, a 11 de Julho em Alcanena, Vicente Batalha comparou “o seu estilo métrico, a sua musicalidade poética” à poesia de Bocage. Em Outubro de 2002 ganhou os II Jogos Florais de Temática Ribatejana - concurso de carácter nacional - e várias pessoas o tentaram a editar um livro. Surpreendentemente, quem teve mais influência foi uma senhora que não conhece: “Tenho a agradecer à Dona Lolita, que só conheço pelo telefone. Ela trabalha na rádio Ourém e eu lia-lhe poesia pelo telefone. Então ela incentivou-me a escrever o livro”, revela.Os familiares, confessa, gostam da ideia e desafiam-no constantemente. “Quando é que vem outro?”, atiram. Será esta obra a última de Manuel Gertrudes? “Gostava de escrever as minhas memórias mas já tenho muita dificuldade em escrever”, lamenta. A sua memória, como referiu Óscar Martins, director da Biblioteca Municipal de Alcanena, “é a obra bonita que nos deixa”.
Aos cem anos Manuel da Gertrudes é um exemplo de amor à vida

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