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Um revolucionário na terra da moca

Um revolucionário na terra da moca

Augusto Figueiredo foi o primeiro comunista a ser eleito vereador na Câmara de Rio Maior. Um feito histórico num concelho que foi considerado um bastião anti-comunista no “Verão Quente” de 1975. O autarca, professor e dirigente associativo viveu por dentro esses anos de “brasa” e diz que foi alvo de perseguições e de ameaças. Na altura em que se assinala mais um feriado municipal em Rio Maior, garante que está na política para ser parte da solução e não do problema e assume que tem uma necessidade compulsiva de intervir na sociedade.

Que prenda gostaria de ver Rio Maior receber neste feriado municipal? Duas. A primeira seria que o governo aplicasse a Lei das Finanças Locais e permitisse que o poder local em vez de ser o que eles hoje querem que seja, um conjunto de autarcas baratos para fazerem a política do Governo, pudesse ser o que a Constituição diz. Ou seja, ter autonomia administrativa, financeira e de projecto poder fazer o melhor para o bem-estar das populações.A segunda prenda qual seria? Que houvesse uma ideia e um projecto para o concelho de Rio Maior no futuro. Porque nos tempos de crise em que vivemos Rio Maior não pode continuar no marasmo. Vai ser necessário, com a participação da população, encontrar uma ideia e um projecto mobilizador para a comunidade. Tem algumas ideias nesse campo? Rio Maior tem uma fileira extraordinária que não está rentabilizada, que é um geo-parque. No concelho de Rio Maior extraem-se as matérias primas mas fica cá muito pouco. É necessário que o geo-parque seja uma nova centralidade capaz de atrair investidores, criar emprego, valorizar Rio Maior no contexto nacional e internacional. Não só pelas areias, pelas pedras, pelos recursos hídricos, mas por tudo o que aqui temos.Na sua opinião, o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros tem sido bem promovido, bem “vendido”? Não. Mesmo a própria lei reduziu à insignificância o papel dos parques naturais que hoje são mais cobradores de coimas, e criadores de dificuldades às pessoas para construir as suas próprias habitações, do que organismos com uma visão estratégica para o território. Rio Maior vive neste momento demasiado subordinado à fileira do desporto? Rio Maior tem que encontrar novos caminhos, apesar da Escola Superior de Desporto e do complexo desportivo serem hoje fundamentais e constituírem âncoras para o desenvolvimento. Mas costuma-se dizer que não se devem colocar os ovos todos debaixo da mesma pata. Acima de tudo deve haver uma ideia, um projecto para se lutar até à exaustão pela sua concretização.As Marinhas do Sal são um pólo de atracção que tem conhecido um desenvolvimento notório nos últimos anos. Sim, ainda é dos poucos lugares hoje, tirando duas ou três empresas, que vai criando postos de trabalho. Aliás, o grupo parlamentar do PCP na Assembleia da República apresentou uma proposta para a classificação das Marinhas do Sal como património de interesse nacional, para permitir que sejam uma âncora para os que lá vivem e trabalham e que, acima de tudo, reforce a sua capacidade de atracção turística como ex-libris único no país. Que se criem na zona valências que a valorizem, como um parque de campismo e caravanismo, um parque para autocarros, casas de banho públicas. São coisas tão simples... Rio Maior não tem um parque de campismo, o que, como cidade do desporto, é um non sense, uma falha imperdoável.O que mais o marcou neste primeiro ano de mandato? Foram duas coisas. A primeira foi encarar isto como uma tarefa exaltante por o povo ter confiado tanto em nós. Estivemos sempre do lado da solução e não do problema, com humildade, coerência, contra os interesses instalados e na defesa das populações.A segunda foi a limitação para fazer coisas. Não nos foi atribuído pelouro e o que fazemos é dar as nossas ideias e exercer o nosso carácter fiscalizador. Fora da sala de sessões temos muito mais um vereador de rua do que um vereador de gabinete. Mas as condições não são fáceis. Ainda agora para o orçamento recebemos a agenda de trabalhos com 30 pontos a uma terça-feira à noite para a ir discutir na sexta-feira. A CDU trabalha em colectivo, mas ler e estudar com pormenor 30 pontos nem o Descartes, que era enciclopedista, seria capaz de o fazer. É notória a cumplicidade entre maioria e oposição na maior parte das questões que são abordadas em reunião de câmara. Esperava esse ambiente? Não diria cumplicidade. Diria que quando estamos naquelas cadeiras não devemos abdicar dos nossos princípios e nós temos feito sempre isso. Não votamos contra por votar contra nem votamos sim para fazer favores. Quando dizemos que não ou sim é com razões praticamente intocáveis. E isso tem dado a possibilidade de haver encontros. O nosso voto contra muitas vezes é um alerta e essa é uma das coisas mais positivas deste mandato. Ousaria dizer que com a CDU neste executivo melhorou significativamente a qualidade dos documentos que vão a reunião de câmara. E aqui uma homenagem à disponibilidade imensa que os trabalhadores da câmara têm manifestado em todas as questões que lhes coloco. Foi o primeiro comunista eleito para o executivo da Câmara de Rio Maior. Sentiu que fez história? Quem fez história não fui eu, foi o povo de Rio Maior. Porque ao dar esta votação a um eleito da CDU, quando os outros perderam milhares de votos, quis dizer que o que vinha sendo feito não estava bem. O povo de Rio Maior, com essa votação, deu um contributo para a sua auto-estima.A vontade de mudar o mundoÉ professor, sindicalista, autarca, dirigente associativo, dirigente comunista. É daquelas pessoas que não conseguem estar paradas? Sim. Realizo-me no social. Só estou feliz quando ao meu lado vejo gente feliz.Tem uma necessidade compulsiva de intervir? Sim. Onde quer que esteja tenho de estar interveniente. Faço parte de um partido revolucionário que não gere apenas as coisas. O que nós queremos é a transformação do mundo. Porque interpretar o mundo já toda a gente o interpretou. Queremos sempre intervir no sentido da equidade, que todos tenham acesso ao sucesso. E isso obriga-me quase compulsivamente a intervir. Porque vivo num tempo onde não tenho tempo para perder tempo. Se tenho um filho na escola e não há associação de pais, eu tenho de formar uma. Se o meu filho achava que a música era um aspecto importante da sua formação, tive de criar uma escola de música para mim e para os outros. Se tenho problemas de saúde, tenho de defender o serviço nacional de saúde. É uma pessoa que gosta de protagonismo? Já fui mais. Houve alturas da minha vida em que tinha necessidade de algum protagonismo para ser visível. Hoje não. Atendendo à quantidade das tarefas e à necessidade de as desempenhar consistentemente ao longo da vida, não há ninguém que se mantenha 38 ou 40 anos na crista da onda se for apenas por desejo de palco.Das actividades que actualmente tem qual mais o preenche? A escola, porque é o meu espaço de liberdade, o meu espaço de realização interior. Outras actividades que me dão muito trabalho são a de vereador e também o movimento de utentes e a federação das colectividades. Como consegue conciliar essas tarefas todas? Muitas vezes com o prejuízo da família e com noites mal dormidas. Ainda na noite passada deitei-me às duas da manhã e às sete já estava a pé. E hoje vai ser igual.A necessidade compulsiva de intervir na sociedadeAugusto Figueiredo, 56 anos, é um homem que se divide por diversas frentes de intervenção na sociedade. “Está” vereador da Câmara de Rio Maior, presidente da Federação das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto do Distrito de Santarém (entidade com quase 300 associados), presidente da Escola de Música de Asseiceira que ajudou a criar, integra a comissão de utentes de Rio Maior e o secretariado do Movimento de Utentes dos Serviços Públicos (MUSP) do Distrito de Santarém e é dirigente distrital do Partido Comunista Português (PCP). Aos 19 anos teve a primeira experiência autárquica, sendo eleito para a Assembleia Municipal de Rio Maior pela APU (Aliança Povo Unido). Depois foi durante quatro mandatos presidente da Junta de Freguesia de Asseiceira e durante muitos anos dirigente distrital do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa. No ano passado esteve envolvido activamente no movimento contra a extinção de freguesias “No Ribatejo Freguesias Sim!” e ainda não desistiu dessa luta.Nasceu em Beduídos, concelho de Estarreja, distrito de Aveiro, em 3 de Fevereiro de 1958, viveu a infância e juventude em Angola, para onde a numerosa família emigrou (eram oito irmãos), e fez-se homem em Rio Maior, onde chegou em Julho 1975, a tempo de viver o chamado “Verão Quente” do PREC (Processo Revolucionário em Curso). Quando regressou de África, a família - “com uma mão atrás e outra à frente” - veio para Rio Maior porque tinha uma irmã casada a viver em Alcobertas que os acolheu.Augusto Figueiredo casou em Asseiceira, aldeia onde continua a residir com a esposa, Maria José, educadora de infância e directora do centro escolar nº 2 de Rio Maior. Tem dois filhos já formados: Miguel é capitão da Força Aérea e piloto de aviões F16; Ana Rita acabou há alguns meses o mestrado em Saúde Ambiental na Universidade de Coimbra.Formado em Educação Tecnológica e com o curso de Ciências da Educação, começou a dar aulas de Trabalhos Manuais aos 17 anos, em 6 de Outubro de 1975, num colégio particular de Rio Maior. “Foi preciso pedir uma autorização especial”, conta. O curso só o tirou depois. Actualmente dá aulas de Educação Tecnológica no centro escolar de Abrigada (Alenquer), onde é professor efectivo. Foi dirigente sindical durante muito tempo mas apenas esteve dois anos sem dar aulas para se dedicar em exclusivo a essas funções.Assumindo uma necessidade compulsiva de intervir na comunidade, esteve ainda na fundação das duas rádios locais de Rio Maior e foi director do jornal regional Voz do Oeste. O interesse pelas artes nas suas diversas manifestações é outra faceta que não descura. Em casa tem cerca de 15 mil livros e 5 mil discos em vinil. Assume-se um apaixonado por poesia e pintura e considera-se viciado em leitura e música.O Sporting é outra das paixões. “Sócio com as quotas em dia”, é visita regular do Estádio de Alvalade para ver jogos de futebol e chegou ao ponto de cortar a barba que é sua imagem de marca quando o clube leonino foi campeão de futebol no ano 2000 após 18 anos de jejum. Diz que só voltaria a repetir a façanha se fosse eleito presidente da Câmara de Rio Maior.“Andaram com forquilhas à minha procura”As memórias dos tempos quentes pós-revolução contadas por quem os viveu por dentroAugusto Figueiredo fez história ao ser o primeiro comunista eleito para o executivo da Câmara Municipal de Rio Maior, 38 anos depois dos acontecimentos de 25 de Novembro de 1975 em que a cidade ganhou projecção nacional por se ter afirmado como um bastião anti-comunista. O jovem Augusto estava do outro lado da barricada e viveu de perto os episódios que deram fama à moca de Rio Maior. Foi diversas vezes ameaçado e tentaram convencer o director do colégio onde dava aulas a despedi-lo. Não se atemorizou e nunca se calou. Até hoje.“Não era preciso ser comunista em Rio Maior para se ser alvo de perseguições. A partir do chamado Dia do Agricultor Livre (13 de Julho de 1975), quando assaltaram a sede do PCP e da Frente Socialista Popular em Rio Maior, perseguiram famílias inteiras com o argumento de que os comunistas queriam ficar com as terras e com os poços. Tudo isso foi organizado e o 25 de Novembro também, por pessoas com grandes responsabilidades no país e que o tempo encarregará de esclarecer”, diz.Assume que foram tempos muito difíceis para quem era conotado com os partidos mais à esquerda. Conta que chegaram a andar à procura dele com forquilhas e uma vez teve uma navalha encostada à garganta: “Eles não eram de cá. Disseram-me: ou te pões a andar ou sais daqui deitado”. Mesmo assim considera que não foi dos que mais sofreu. “O papão do comunismo foi a maneira de fazer a limpeza de um número muito vasto de famílias que teve de abandonar o concelho de Rio Maior”, afirma, acrescentando que “não foi fácil ser comunista em Rio Maior”. “A moca é um símbolo troglodita”No Verão Quente de 1975 ainda não era militante do PCP mas já tinha apreço pelos ideais comunistas, que aliás vinha do tempo de Angola, onde simpatizava com o movimento MPLA de inspiração comunista. “Até era para ficar em Angola se não fosse a pressão da família”, diz o homem que ainda hoje se assume como um “revolucionário de facto”. Foi na escola que começou a ganhar consciência política. Oriundo de uma família sem grandes recursos, estudou numa escola de negros com um irmão deficiente motor e as situações de injustiça que viu e viveu _ “fui o primeiro da família que fez o 5º e 6º ano, quando os meus irmãos eram tão ou mais inteligentes do que eu” _ levaram-no por esse caminho. Não esquece o Rotary Clube de Luanda que lhe concedeu a bolsa que lhe permitiu estudar. Ficou sem pai aos 12 anos e cedo se habituou a trabalhar nas férias escolares.Tal como o discurso político marcadamente ideológico, a barba, que ostenta há muitos anos e remete para a iconografia marxista-leninista, é uma imagem de marca de que não abdica. Outra imagem de marca, mas essa do concelho de Rio Maior, é a célebre moca que Augusto Figueiredo abomina. “Quem viveu esse tempo sabe que a moca era um instrumento para bater nos comunistas. Lamento profundamente quando se quer impingir a moca como símbolo de Rio Maior e ainda mais quando as pessoas que o fazem têm responsabilidades políticas. Foi o que aconteceu na inauguração do centro escolar de S. António, em Fráguas, em que uma vereadora entregou um porta-chaves com uma moca em miniatura ao director do agrupamento de escolas. Não é admissível. A vida é feita de sinais e a moca é um elemento troglodita, anti-democrático, de violência”, considera.
Um revolucionário na terra da moca

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