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“Toda a arte vive de constrangimentos e morre de liberdade”

“Toda a arte vive de constrangimentos e morre de liberdade”

Eugénio Lisboa foi ao Museu do Neo Realismo falar de matemática e poesia num ciclo de debates que pretendem homenagear Joaquim Namorado na comemoração do centenário do seu nascimento. Joaquim Namorado é um dos poetas mais representados no museu e a sua vida profissional de 1948 a 1974 foi a de explicador de matemática, na maior parte do tempo, para estudantes do ensino superior, segundo António Pedro Pita, director do museu, que fez a apresentação do orador e da vida e da obra do autor de “Incomodidade”. Só depois do 25 de Abril Joaquim Namorado foi convidado para dar aulas na universidade. Entre 1974 e 1984 Joaquim Namorado foi finalmente convidado a realizar o seu sonho de ser professor universitário já que durante a ditadura de Salazar recusou ser cúmplice ou espezinhado por “certa gente”.Eugénio Lisboa escreveu e preparou a sua intervenção recorrendo à sabedoria do professor Bento de Jesus Caraça ao abonar-se no livro “Conceitos Fundamentais da Matemática”, que disse ser uma obra fundamental que toda a gente deve ler.“Todas as coisas têm um começo e nada se pode compreender sem os números. No tempo de Pitágoras havia uma escola com o seu nome onde se discutiam as novas ideias e onde o segredo era a alma do negócio. Quem trouxesse para o domínio público aquilo que era discutido entre pares era castigado. O Cosmos não é um caos. É regido por leis e essas leis são fórmulas matemáticas. O Universo é um constrangimento sujeito a um ritmo matemático impressionante. Pode haver poesia sem verso e verso sem poesia. O exigir-se um ritmo ou uma melodia é uma obstrução, um desafio, que valoriza. O poeta ao resolver este desafio vai encontrar certamente mais beleza no acto criativo”.Eugénio Lisboa cativou a plateia mas percebia-se que estava a falar para um público rendido e entendido na matéria.“Toda a arte vive de constrangimentos e morre de liberdade. Escrever um poema sem os constrangimentos do ritmo e da rima é o mesmo que jogar ténis sem rede”, disse, citando. “Fernando Pessoa é um bom exemplo dos poetas que escreveram sem rima mas que talvez sem darem por isso têm os seus livros cheios de rima e ritmos de apoio”.O génio aprende-se. “Gilberto Rola Pereira, que foi contemporâneo de Fernando Pessoa, era um explicador de matemática excepcional: um verdadeiro mágico para os alunos que tinham grandes dificuldades com a matemática. Ele fascinava-os e punha-os a adorarem o que antes odiavam. Criava nos alunos duas paixões; a matemática e o gosto pela poesia. Ele conseguia transmitir e criar um certo ambiente de conspiração nas suas aulas e nos recados que dava aos alunos quando lhes entregava trabalho de casa”.Muitas citações e muita erudição nesta palestra de Eugénio Lisboa que durou uma hora e se transformou numa lição sobre o que é a imaginação quando falamos de matemática e o rigor quando se trata da poesia.Poeta, critico, ensaísta, professor universitário, gestor, conselheiro cultural , Eugénio Lisboa é uma das figuras mais prestigiadas e respeitadas no meio literário e académico.“O rigor da operação matemática é de uma grande beleza poética”, citou, mais uma vez, para acentuar o que era mais importante na sua intervenção; que a grande maioria das pessoas não aprenderam a gostar de poesia porque os seus professores, mal preparados, obrigavam-nos ao calvário de dividirem orações de poemas que eram de grande beleza mas que não podiam ser compreendidos por falta de conhecimento da arte da poesia por parte de quem tinha a responsabilidade de ensinar.ComentárioO encontro do século em Vila Franca de XiraÀ mesma hora em que se discutia matemática e poesia no Museu do Neo-Realismo, com Eugénio Lisboa, o toureiro José Júlio era alvo de uma festa de homenagem no dia dos seus 80 anos.Uma boa parte dos homens dos touros são iletrados. Sabem quem foi Ernest Hemingway e Pablo Picasso, por razões especiais, mas não pescam nada sobre poesia ou literatura ou pintura, para falarmos apenas das artes mais convencionais. Se falarmos de alguns empresários, repito, de alguns empresários, iletrados é uma palavra elogiosa. De verdade são uns pequenos trafulhas. Teria sido uma boa “tourada” juntar as duas iniciativas e enquanto Eugénio Lisboa falava da escola pitagórica, da beleza dos tetrassílabos nos versos de João de Deus ou de Henrique Segurado, dos matemáticos poetas como Paul Valery ou Mira Fernandes, ao mesmo tempo José Júlio pudesse falar dos seus passes de mágico com o capote, da forma como o sangue circula nas veias de um toureiro quando olha de peito descoberto os cornos afiados de um toiro, da arte de mostrar no chão da arena aquilo que um poeta ou matemático deixa escrito no papel.Juntar Eugénio Lisboa e José Júlio a meio da tarde, em Vila Franca de Xira, para falarem de poesia, matemática e touradas, seria certamente o encontro e o acontecimento do século à beira Tejo em terras lusas. Certamente que seria uma grande honra para todos menos para aqueles que vivem com a alma e os olhos no passado e passam a vida na gosma, de língua afiada a pedirem estátuas e nomes de ruas aos políticos, quando não é o caso de exigirem que a cidade acorde todos os dias de manhã curvada e rendida aos génios da má-língua. JAE
“Toda a arte vive de constrangimentos e morre de liberdade”

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