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“Sinto uma tremenda falta de paciência quando me dizem que precisamos de outro Salazar”

“Sinto uma tremenda falta de paciência quando me dizem que precisamos de outro Salazar”

Primeiro romance de Luís Ramalheira chama-se “A primavera há de chegar” e sai a 25 de Abril

Natural de Torres Novas e a residir actualmente no concelho de Vila Franca de Xira, Luís Ramalheira estreia-se como escritor com um romance que tem como pano de fundo o 25 de Abril e a história recente de Portugal. Parte da acção desenrola-se numa área rural do concelho de Santarém onde vivem muitos dos personagens. O livro começa com a queda de Salazar de uma cadeira, no Forte de Santo António do Estoril, a 3 de Agosto de 1968.

“A Primavera há de chegar” começa na queda de Salazar da cadeira e termina com um diálogo entre Salazar e um seu admirador. Que importância tem Salazar para o autor e para Portugal pós-25 de Abril? Salazar continua vivo? Quando vai morrer? Quando a minha revisora começou a ler o livro, mais ou menos a meio disse-me: «você vai ter problemas com algumas pessoas que não vão gostar de ler o que escreveu» e eu questionei-a: «que tipo de pessoas?». Ela respondeu: «pessoas de direita». E eu disse-lhe para esperar pela segunda parte do livro. No final telefonou-me a dizer: «afinal tinha razão, você tanto bate à direita como à esquerda!». Deve ser das aulas de ténis…O que Salazar diz nesse diálogo... Nesse diálogo do antigo presidente do Conselho com o admirador, todas as respostas de Salazar foram efectivamente ditas ou escritas por ele, ao longo do muito tempo em que ocupou a cadeira do poder. E há uma coincidência extraordinária. No dia 26 de Julho de 2014, estava a pouco mais de um mês de acabar o romance e vou a um casamento em Canas de Senhorim. No regresso, no dia seguinte, sugiro irmos ao Vimieiro visitar a casa onde Salazar nasceu porque a tinha descrito nesse último capítulo e ainda não a tinha visto (fui a quase todos os locais sobre os quais escrevi). Fiquei chocado com o estado de destruição a que a casa chegou. Na minha opinião a história não se apaga nunca. É criminoso! Quer se queira, quer não, Salazar faz parte da nossa história. Depois decido ir ao cemitério onde Salazar estava sepultado e dou com um grupo de umas 20 pessoas à torreira do sol em volta de uma campa, julgando eu que se tratava de um funeral. Afinal no dia 27 de Julho de 2014, dia do aniversário da morte de Salazar, um grupo de apoiantes marcara para as 11h00 um encontro no cemitério. Eu estaciono lá às 11h15, parecia que de propósito. Por uma tremenda e irónica coincidência chego naquele dia, àquela hora, àquele local. Salazar morreu e não eram mais que 20 apoiantes vindos de todo o país, presumo, nenhum problema irresolúvel para o Estado democrático! E se por acaso o SIS andava por lá, posso estar identificado como sendo um tipo da extrema-direita. Não é delicioso? Há muitas passagens do livro em zonas rurais do concelho de Santarém, em Lisboa e na antiga Lourenço Marques e algumas partes decorrem de fugida em Paris e Londres. São entendíveis os locais de Portugal e da Europa. Porquê Moçambique? Vivi em Moçambique durante dois anos, depois voltei lá no ano das primeiras eleições democráticas e desde há meia dúzia de anos que vou a Maputo com frequência. No final deste mês irei de novo e pretendo fazer oportunamente em Maputo uma apresentação do romance, o que faz todo o sentido. Outra enorme coincidência aconteceu numa dessas viagens a Maputo. Compro «O Expresso» no sábado e deixo-o em casa sem o ler, pois viajo no domingo. No aeroporto levanto novamente o jornal no balcão da TAP e quando chego a Moçambique tiro a revista e deparo com a capa: «Machava, a pior prisão do Estado Novo». Essa coincidência levou o romance na direcção da acção da polícia política em Lourenço Marques. Lá fui a correr visitar «Vila Algarve», a sede da PIDE na antiga Lourenço Marques, as prisões da Machava e de Sommerschield e vários outros locais que o livro evoca.O pano de fundo são episódios de antes e depois do 25 de Abril de 1974. Quem não tem ideia do ambiente da época pode coligir a partir dali datas, nomes de políticos, acontecimentos marcantes tanto políticos como até desportivos. Sente que há necessidade de voltar a escrever o que já foi escrito e reescrito? Claro que sim. Uma coisa é lermos um livro de “não ficção” sobre o 25 de Abril. Eu li bastantes para escrever este romance, mais de 20 obras. Outra, na minha opinião, é escrever um romance sobre essa época. O longo capítulo do 25 de Abril foi escrito em estilo cinematográfico, usando a técnica da «montagem em paralelo», que me permitiu alternar História com romance. Pode-se aprender de forma divertida. Mas não é seguramente um romance só para os putos que não sabem o que foi a revolução e o PREC… Que novidades em relação à nossa história recente pode o leitor encontrar no seu livro? Nenhumas! A merda da nossa história recente dava outro livro…Há um cheirinho a povo nas passagens antes do 25 de Abril mas a seguir ao 25 de Abril o povo sai praticamente de cena para dar lugar à burguesia, como se diria há anos... agora classe média. Influência das vivências do autor ou uma forma de dizer que o 25 de Abril significou progresso em termos de consumo, viagens... amantes caras? Se calhar também me aburguesei. Ou no fundo todos nós… De qualquer forma ainda não dou festas tão grandiosas como as do Gatsby. Mas sim, o 25 de Abril fez desenvolver o consumismo, as viagens financiadas pelo banco. Ao mesmo tempo assistiu-se a um desleixo moral e a uma indiferença que leva à inacção, que é bem própria do povo português. Aqui não nascem «Syrizas» nem «Podemos». A malta prefere ir beber umas bejecas ao café da esquina e mandar uns bitaites na net.O que sente quando ouve alguém dizer que precisamos de um novo 25 de Abril? Percebo essas pessoas mas não será necessário outra revolução. Precisamos é de estabilidade, pactos de regime, novas ideias e mais intervenção cívica. A história não se repete.O que sente quando dizem que o que nos faz falta é um novo Salazar? Uma tremenda falta de paciência! O livro é apresentado publicamente dia 25 de Abril Luís Ramalheira nasceu em Torres Novas em 14 de Janeiro de 1965. Viveu em Moçambique durante dois anos, fez parte dos seus estudos no Entroncamento e mudou-se para Lisboa em 1983. Reside no concelho de Vila Franca de Xira. Profissionalmente ligado à gestão, manteve sempre uma grande curiosidade pela arte em geral e pela escrita em particular. A sua inquietude levou-o a escrever poesia e a esboçar algumas tentativas de edição de um primeiro romance, antes de se lançar durante dois anos à escrita de «A primavera há de chegar». Melómano, coleccionador de discos, radialista (em programas de música alternativa e jazz, de informação e de sátira social), músico, enófilo, cinéfilo, episódico director de uma revista de cinema e crítico da mesma arte. Integra ainda um «think tank» onde escreve com uma periodicidade displicente sobre questões económicas e sociais. A sua primeira obra, “A primavera há de chegar” é, segundo diz com ironia, “um reflexo - ou uma ‘trágica’ consequência - de tudo isso”.A primeira apresentação pública do livro é dia 25 de Abril em Lisboa, no Torreão Nascente do Terreiro do Paço. Seguir-se-ão outras apresentações, nomeadamente em Torres Novas no dia 16 de Maio, pelas16h00 na Biblioteca Gustavo Pinto Lopes. Também será apresentado em Vila Franca de Xira. Na página do Facebook do livro irão sendo divulgadas informações.“Fui forçado a render-me ao acordo ortográfico”Plantar uma árvore, ter um filho, pode ler-se em “A Cidade e as Serras”. Faltava-lhe o livro ou o Eça não é para aqui chamado? Ainda me faltam fazer algumas coisas. Já pilotei um planador, fiz slide, mas ainda não saltei de pára-quedas. Fiz duas filhas (o filho ainda não… não sei se conta para validar a checklist), plantei uma palmeira que parece o «pé de feijão do João» e que me causa vertigens de cada vez que me empoleiro nas escadas para lhe cortar as folhas. O meu tio Zé morreu ao cair de uma árvore... Agora também já escrevi o livro. O Eça é sempre para aqui chamado. O livro foi escrito segundo o novo Acordo Ortográfico ou foi escrito segundo o português que o autor aprendeu na escola e depois “traduzido” pelo editor? Quanto ao acordo ortográfico, faço parte dos que o abominavam, mas prevaleceu o meu sentido prático. Instalaram-me uma versão do word no PC que já tinha um corretor ortográfico actualizado. Quando comecei a escrever, grande parte das palavras surgiam sublinhadas a vermelho e comecei a vacilar nas minhas convicções. Então um dia o vermelho começou a afectar-me os nervos, acabei com aquilo e resolvi escrever de acordo com o novo. E já me começo a habituar. Daqui a 10 anos já ninguém fala no assunto e continuamos todos a falar a mesma língua.Aprendeu a escrever um livro lendo outros livros ou lendo manuais que ensinam a escrever livros e frequentando aulas de escrita criativa? Lendo muitos livros e tendo pena de não ter lido muitos mais. Mas ainda espero ter tempo … se não voltarem a aumentar a idade da reforma! Gostava de frequentar um curso de literatura clássica para poder tratar o Homero por tu. Tenho uma inveja desgraçada do Gonçalo M. Tavares… E estou confrontado com a fatalidade de o José Saramago não poder dizer de mim: «ninguém tem o direito de escrever tão bem apenas aos 50 anos» como afirmou quando o Gonçalo M.Tavares tinha 35 anos e lançou o Jerusalém.Quais são os seu autores preferidos? Gabriel Garcia Marquez, que não teve que se reformar para escrever livros (uma vantagem competitiva implacável). O F. Scott Fitzgerald ajudou-me imenso nos «bloqueios de escritor», ainda mais que a aguardente de medronho… O Eça de Queiroz provoca-me insónias. Há uns anos em Porto Santo, acabei de ler os Maias na varanda, entre o início da noite e o final da madrugada. Nunca mais li Eça! Fiquei assustado! Agora antes de dormir leio sempre um livro do José Rodrigues dos Santos… Comprei há uns meses o Ulisses do James Joyce, mas estou a poupar-me para o ler na praia durante as férias. Pelo sim pelo não sobrecarrego no protector solar e levo também uma lanterna e um cobertor. Com o tempo aprendemos a ser cautelosos.Depois de ler livros desses autores alguma vez sentiu dúvidas sobre a sua capacidade de fazer algo com a mesma qualidade ou pensou sempre que era capaz de fazer melhor? Desses autores sim. Em relação à maior parte dos outros, não! Os últimos livros que li foram os dois prémios Nobel da literatura mais recentes (Alice Munro, 2013 e Patrick Modiano, 2014) e ou escolhi mal as obras ou as traduções foram atamancadas. Deu-me cá uma esperança…
“Sinto uma tremenda falta de paciência quando me dizem que precisamos de outro Salazar”

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