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“Trancam a sapiência dos mais velhos para que os medíocres não se sintam pressionados”

“Trancam a sapiência dos mais velhos para que os medíocres não se sintam pressionados”

Toureiro Mário Coelho enfrenta a vida com a mesma coragem que sempre mostrou nas arenas
Há dez anos, na altura em que celebrava as bodas de ouro como toureiro, Mário Coelho recebeu a Ordem de Mérito, atribuída pelo Presidente da República, que se destina a “galardoar actos ou serviços meritórios no exercício de quaisquer funções, públicas ou privadas, ou que revelem desinteresse e abnegação, em favor da colectividade”. Na mesma altura lançou uma auto-biografia intitulada “Da Prata ao Ouro - História de um Toureiro”. O livro, com um texto introdutório da escritora Agustina Bessa-Luís, foi apresentado a 27 de Junho na Fundação Mário Soares.Ao longo de 400 páginas, Mário Coelho escreve sobre os seus êxitos e azares e conta muitas histórias, algumas das quais passadas com gente famosa como Orson Wells, Ava Gardner, Pablo Picasso e até relata um encontro com Salazar numa rua deserta, sob o olhar atento do motorista do ditador. “Quatrocentas páginas não chegam para contar a minha experiência de vida”, disse na altura, acrescentando que todos os dias se lembra de mais episódios que dariam para um outro volume de memórias. Estávamos na década de 40. Vila Franca de Xira vivia um ambiente taurino com as crianças e jovens a alimentarem “uma montanha de sonhos”. Mário Coelho, sete anos, saiu da modesta casa na travessa dos Maiorais para ir para a vizinha Escola do Bacalhau e viu um cartaz colocado na esquinas. As figuras de dois toureiros (Diamantino Viseu e o espanhol Garcia) em tamanho natural fizeram brilhar os olhos do menino que sonhava ser matador de toiros. “Foi como o iluminar de um sonho. Nunca ali tinham colocado nenhum cartaz e não voltaram a colocá-lo”, recorda com o brilho de quem vive a emoção do regresso às origens. “Fui injectado de veneno”, acrescenta.Na mesma altura, numa entrevista dada a O MIRANTE e publicada a 29 de Junho de 2005, explicava porque voltaria a ser toureiro se voltasse atrás no tempo e porque são tão importantes os aplausos para os artistas. “Orgulho-me da minha carreira e valeu a pena este percurso. Não há outra profissão na vida tão completa e tão nobre como a de toureiro. É um sonho permanente com uma entrega total, humildade, grandeza, alegria e uma paixão infinita. Representei a minha terra e o meu país em vários pontos do mundo e senti uma grande alegria pela forma como fui reconhecido”, explicava.Mário Coelho lembrava a ténue linha que existe entre o fracasso e o sucesso e como a balança tomba para um e para outro lado com grande facilidade. “É a única profissão do mundo onde o adversário tem toda a liberdade para te roubar a vida. Nem no automobilismo, nem no boxe, aqui damos a vida para agradar ao público com um grande respeito. Basta que um espectador não goste e assobie para se multiplicar os assobios e nas palmas é a mesma coisa. Há uma sensação única quando temos milhares de pessoas de pé a aplaudir”, afirmava.Sobre a habitual tendência da nossa sociedade para desprezar o saber acumulado dos mais velhos, referia-se a uma espécie de conspiração dos estúpidos. “Sou mais uma fonte fechada e lacrada. Toda a sapiência dos mais velhos é trancada de propósito para que os medíocres não se sintam pressionados pelo seu saber. Enquanto assim for continuaremos a viver nesta mediocridade”.Coração...derrubado!A viúva de Álvaro Guerra, escritor e figura ilustre de Vila Franca de Xira, amigo de infância de Mário Coelho, conta num texto incluído na auto-biografia do toureiro, que o marido se referia a ele como “derrubador de touros e corações” mas há alturas em que os maiores “derrubadores de corações” também ficam com o coração derrubado. No livro há alguns capítulos dedicados a mulheres. O primeiro é dedicado à mãe, que o autor trata por “minha doce Mãe”, que pressentia quando ele estava a tourear em qualquer praça do mundo e acordava de repente a meio da noite, sentando-se na cama para rezar, perante a perplexidade do pai.Há depois o capítulo sobre a Dama do Bolo de Arroz que nunca esqueceu a afronta do toureiro, enquanto jovem, ter abandonado um baile sem pagar os bolos de arroz que ela comera e se vingou vinte anos mais tarde, gritando a plenos pulmões, “Fora, Fora” numa corrida em Arruda dos Vinhos que estava a correr muito bem a Mário Coelho.A actriz Audrey Hepburn tem um capítulo com o seu nome por causa de um chapéu Mazantini que o toureiro lhe ofereceu em Portugal e que ela vendeu mais tarde num leilão para ajudar pessoas necessitadas, por quatro mil dólares. Madame Couve de Mourville, esposa de um Ministro Francês, é mencionada porque não ligava a corridas mas telefonava-lhe a perguntar as datas das touradas em que participava, para acender uma lamparina e rezar uma oração.Ava Gardner, actriz que Mário Coelho conheceu em 1959, parece ter sido um caso diferente dos mencionados. Num jantar, inesperadamente, a actriz entregou-lhe as chaves e os documentos de um descapotável branco que os dois, quando passeavam em Madrid, num stand, enquanto passeavam. O toureiro recusou e ofendeu a amiga de tal maneira que esta nem se deu ao trabalho de disfarçar. Depois desse episódio estiveram sem falar um com o outro durante trinta anos até que um dia, um locutor de uma rádio da Califórnia que o estava a entrevistar o pôs ao telefone com a actriz, de surpresa.Ficou a saber que Ava Gardner já não saía de casa e pouco tempo depois leu a notícia da sua morte. “Ainda hoje me arrependo de não a ter ido visitar, estando eu tão perto”, escreve. E acrescenta: E a nostalgia, como tantas vezes na minha vida, instalou-se para não mais me deixar”.“Refiro-me à história de um toureiro que chegou a Mestre do seu Ofício”No texto que Agustina Bessa-Luís escreveu para o livro “Da Prata ao Ouro - História de um Toureiro”, há uma passagem que refere a relação que se estabelece na arena entre o touro e o toureiro.“As humilhações servem de escudo ao coração revoltado. Há um momento na lide em que o homem é generoso; é quando esquece a infância magoada, para ver no touro o seu parceiro e não o seu inimigo. O touro entra na arena para ser lidado. Ele não o sabe, rompe para a luz como um rei, investe, corre, mata se pode; como a criança que em tudo vê motivo de reinado. E vai sendo marcado e ferido, esmorece e os olhos turvam-se. Onde está a lezíria aberta? Onde está o campino que o conduz e guarda? A noite vem depressa sobre uma arena, e sobre o passeio da infância na sua rua onde tudo é familiar, as portas, os vizinhos, os cães e os companheiros. Depressa a par da noite desce e tudo perde aquele fio de prodígio com que se tecem as coisas imortais”.
“Trancam a sapiência dos mais velhos para que os medíocres não se sintam pressionados”

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