
Um antigo comerciante que se dedicou à escrita e à história de Coruche
Crise e exigências legais levaram-no a fechar a retrosaria que geriu durante 56 anos
Aos 88 anos, Heraldo Bento lança livro sobre um almirante da Armada Portuguesa no Brasil que nasceu em Coruche. O encontro com os seus amigos e leitores é dia 25 de Abril às 11h00 na Biblioteca de Coruche.
Em Coruche todos conhecem Heraldo Bento, um antigo comerciante da terra com 88 anos. Há quase sessenta anos que tinha porta aberta no centro da vila. Quando começou a trabalhar atrás do balcão depressa se tornou um amigo dos seus clientes. O negócio da retrosaria levava à sua loja quase todas as mulheres da vila. São muitas as histórias que se contam sobre ele e sobre a sua importância para a comunidade. Era ele que lia e escrevia cartas quando as pessoas analfabetas o procuravam. A mais curiosa que nos contou foi a de uma mãe que escrevia cartas ao filho que se encontrava na guerra em Angola. “A mãe queria contar ao filho que a sua namorada andava com vestidos curtos e sempre a passear para fora da vila. Ela pedia-me para escrever mas eu achava que aquela informação não valia a pena, só ia desestabilizar o rapaz que andava na guerra. Dizia que escrevia mas não escrevia e esse casal ainda hoje está casado”, recorda.Heraldo Bento confessa que chorou no dia em que teve que fechar definitivamente a porta da sua retrosaria (venda de roupas, tecidos e materiais para costura) que esteve aberto ao público durante 56 anos. Foi com mágoa que teve que fechar as portas em Dezembro de 2013. O edifício, situado no centro da vila, onde funcionava a retrosaria com o seu nome, foi demolido. Diz que foram as novas leis e a crise que destruíram o seu negócio. No entanto, não baixou os braços e continuou activo sendo uma das figuras incontornáveis da terra. Aos 88 anos acaba de escrever mais um livro que vai ser apresentado na segunda-feira, 25 de Abril, na Biblioteca Municipal de Coruche sobre a vida de Francisco de Brito Freire. “Não sou escritor, sou atrevido. Não escrevo por vaidade ou para alimentar o meu ego. Apenas acho que existe muito pouca informação sobre a história de Coruche e este é o meu pequeno contributo para deixar às gerações vindouras uma pequena parte da história do nosso concelho”, diz em entrevista a O MIRANTE. O antigo comerciante também publicou um livro sobre Coruche e o rio Sorraia com o apoio da câmara municipal e da Associação de Defesa do Património.Heraldo Bento é o mais novo de quatro irmãos. Tinha ainda mais quatro de um relacionamento anterior do seu pai. Quando tinha alguns meses de idade fracturou um braço numa queda e nunca mais recuperou. Nada que o incomode. Aliás, foi esse problema físico que, anos mais tarde, o livrou da tropa. Completou a quarta classe e começou a trabalhar aos 12 anos para ajudar a família. Trabalhou sempre no comércio mas diz que os primeiros dois anos de trabalho foram os mais marcantes. “Naquela altura absorvia tudo o que via e ouvia. No meu primeiro emprego aprendi a lidar com muitas coisas, e com todo o tipo de pessoas, e isso ajudou-me quando comecei a trabalhar por conta própria”, recorda.Estabeleceu-se por conta própria aos 32 anos. Começou o negócio com um sócio mas entretanto ele saiu e Heraldo continuou sozinho à frente da loja. Quando iniciou a sua actividade não tinha pé-de-meia que ajudasse no investimento inicial. Valeram-lhe alguns fornecedores conhecidos que lhe deram crédito. O comerciante tinha casado há pouco tempo e queria constituir uma família. Casado há 56 anos tem dois filhos e dois netos. Confessa que não ficou rico com o seu negócio.“Posso ser acusado de muita coisa mas de ganhar dinheiro à custa dos clientes é que não. Pelo contrário, preparei muitas encomendas para os clientes enviarem para o estrangeiro e nunca cobrei nada por esse serviço. Por isso é que os outros comerciantes diziam às pessoas para irem ao Heraldo que ele fazia tudo aos clientes”, conta.Garante que se não fossem as leis que obrigaram as lojas a remodelarem equipamento e a crise financeira que atingiu o país ainda tinha a loja aberta. Adorava fazer as montras. “Quando apareceram todas as exigências para fazer alterações na loja ponderei no que devia fazer. Se remodelasse tudo teria que fazer um grande investimento e depois os meus filhos poderiam ter que ficar a pagar as minhas dívidas, por isso optei por fechar. Com grande mágoa. Sinto quase como um crime o que me fizeram. Quem faz as leis não percebe nada do que se passa no comércio do interior do país”, lamenta.Além do gosto pela escrita, Heraldo Bento tem também outra paixão: o desenho. Aos sete anos a mãe levou-o para uma professora para estar entretido com outras crianças nos tempos livres. O seu talento para o desenho começou a sobressair. É canhoto apesar de também conseguir escrever com a mão direita, por na escola, naquele tempo, não permitirem que se escrevesse com a mão esquerda. Aos 15 anos fez a sua primeira exposição na câmara municipal. “Um senhor viu os meus desenhos, achou que eu tinha jeito e convidaram-me para expor os meus trabalhos”, conta.Para além de escrever e desenhar também gosta muito de ler. Afirma que foi através da leitura que descobriu o mundo sem sair de casa. “As Vinhas da Ira”, de John Steinbeck, foi o primeiro livro “a sério” que leu, quando tinha 15 anos, que o marcou e despertou para a vida.Está a acabar de escrever mais um livro sobre o comércio de Coruche. “Publicar um livro custa dinheiro e eu não tenho dinheiro para editar um livro sozinho. Felizmente a câmara municipal e a Associação de Defesa do Património têm-me apoiado nesta aventura”, afirma sorridente.

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