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As mais amplas liberdades democráticas* 

Já passei por situações caricatas e hilariantes mas nada que se pareça com alguns momentos que vivi no decorrer do chamado PREC (Processo Revolucionário Em Curso), nos meses que se seguiram ao 25 de Abril de 1974. Foram acontecimentos únicos. Alguns de grande fervor patriótico e outros de grande irresponsabilidade que, vistos agora, me fazem sorrir.
Nessa altura, era um adolescente de longos cabelos e encaracolados, usava calças à boca de sino e uma boina à Che Guevara que, ainda hoje, não sei muito bem como é que conseguia segurar na cabeça.
Como não tinha muito que fazer passava algumas noites a discutir política e, uma ou outra, a caçar fascistas e antigos polícias políticos da PIDE em barricadas organizadas por militantes de esquerda.
Nas jornadas de maior perigo lá íamos nós para a estrada fazer operações stop revolucionárias, escoltados por raparigas generosas, nas formas e nos comportamentos, que admiravam a nossa valentia e aspiravam a ser ainda mais valentes do que nós usando para isso grandes botas alentejanas e fumando dois a três maços de cigarros por dia.
De tempos a tempos mandávamos parar um ou outro carro para verificarmos se o mesmo não transportava armas debaixo dos assentos ou no porta-bagagens, ou malas cheias de notas de dólar, a caminho do estrangeiro.
Os mais velhos, conscientes do que faziam, contavam histórias de perseguições políticas durante os anos do salazarismo. Os mais novos, como eu, em vez de luta de classes, pensavam em grandes lutas de gerações.
Detestávamos a sabedoria e os conselhos dos proletários cinquentões que faziam gala em usar bonés à Lenine e sonhávamos com as grandes lutas de Maio de 68, em França, que não tínhamos podido viver, ou com o movimento “hippie” de S. Francisco que tinha proporcionado uma grande liberdade sexual a todos, menos a nós.
Numa dessas noites, na Primavera de 75, tínhamos ido, em bando, para um local habitual, fazer uma das tais barricadas. Ou tinham fugido uns pides de Alcoentre, ou havia notícias de Golpe de Estado, ou alguém com insónias tinha arranjado maneira de passar a noite acompanhado e em acção.
Às quatro da manhã não tínhamos apanhado, nem pistolas, nem bacamartes, nem sequer uns míseros corta-unhas e o fogo revolucionário começava a extinguir-se. Foi nessa altura que mandamos parar um “mini”, que era o carro da moda naquela época.
Quando nos aproximámos vimos apenas um homem ao volante e com cara de poucos amigos. Só depois é que reparamos que, com a cabeça deitada sobre a sua barriga, estava uma mulher.
Antes que alguém perguntasse se a viatura transportava armas o condutor confessou, de livre e espontânea vontade, que a sua pistola era calibre 18 e que estava prestes a disparar.
Para mim, aquele foi um dos momentos cruciais da revolução. Confrontavam-se ali na estrada, sob as estrelas, os direitos individuais de um cidadão, com a mais radical filosofia colectivista e uma castradora moral progressista.
Após um momento de silêncio, durante o qual a mulher se manteve como estava, o camarada comandante mandou seguir o carro que arrancou aos ésses. Naquela altura acreditei que o processo democrático estava a seguir o seu curso normal e que o futuro do país era de paz e liberdade. Felizmente acertei.
Alberto Bastos
* Texto publicado na edição de O MIRANTE de 14 de Junho de 1994.

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