“A austeridade sempre existiu mas agora vai aumentar muito mais”
Luís Mira Amaral confessa-se angustiado ao pensar no aumento de desempregados.
Nestes tempos de incerteza consegue ter algumas certezas?
A única certeza que se pode ter é que o país vai passar por uma fase extremamente difícil, dado que ainda não tinha recuperado completamente da crise de 2011. E esta crise é muito mais grave. Vamos ter o desemprego a subir muito, o PIB a cair bastante e o déficit e a dívida pública a dispararem. Esta vai ser a situação económica do país, depois de conseguirmos dominar, melhor ou pior, a epidemia.
O Governo tem recebido elogios pelas decisões que tomou no combate à pandemia. Também merece elogios pela actuação no apoio às empresas e ao emprego?
No aspecto sanitário acho que agiu com algum atraso, mas também é fácil acertar no totobola à segunda-feira. Ninguém previa isto e os membros do Governo são humanos como nós e não se lhes podia exigir um dom de adivinhação que todos nós não tivemos. No entanto, a nível sanitário, a situação está estabilizada e sob controle.
E a nível económico?
Penso que também existe algum controle e que o Governo tem feito as coisas relativamente bem. Agora, as consequências económico-financeiras desta paragem forçada da economia são muito grandes, para um país que ainda estava numa situação muito frágil. Fala-se muito da ajuda europeia, mas a primeira ajuda que precisamos da Europa é através do Banco Central Europeu. Espero bem que o Banco Central Europeu continue a actuar no sentido de alguma estabilização das taxas de juro porque se não o fizer, com o nosso déficit e dívida pública a dispararem, vamos ter sérios problemas.
O apoio às empresas, nesta fase, poderia ter sido maior?
Acho que aí o Governo teve alguma contenção, possivelmente por saber, tão bem como nós, que a situação económico-financeira do país é frágil. Mas as medidas tomadas são semelhantes às de outros países, embora em países mais fortes que nós, como a Alemanha, a França, a Espanha e os Estados Unidos da América, o apoio seja maior do que em Portugal.
O essencial foi feito?
Nesta fase, para uma empresa que era viável antes da crise e que de um momento para o outro perdeu a facturação, é essencial uma injecção de liquidez imediata para que consiga aguentar e manter os seus trabalhadores a fim de, na fase de recuperação, poder participar nessa recuperação. Aí o Governo só não cedeu à proposta da CIP (Confederação Empresarial de Portugal) que desejava que uma parte do apoio fosse a fundo perdido.
Qual a avaliação que faz das decisões a nível da União Europeia?
Há que distinguir duas coisas. Primeiro é o plano de contingência que foi aprovado no Eurogrupo, dirigido por Mário Centeno, que espero que a curto prazo possa ser implementado. São cem mil milhões de euros do SURE, que é um sistema complementar ao subsídio de desemprego e de apoio ao emprego, onde o Governo português pode ir buscar algum dinheiro para complementar o esforço tremendo que está a fazer no lay-off simplificado, que foi uma medida muito positiva para apoiar aqueles que continuam formalmente empregados mas a quem as empresas não tinham capacidade para pagar o salário. Depois há o tal plano de recuperação, mas isso virá a seguir e ainda está a ser discutido.
Uma parte desses futuros apoios será através de empréstimos?
É evidente que um país como Portugal, que está altamente endividado, não gostará que uma parte do dinheiro venha através de financiamento, através de empréstimos, porque isso faz crescer a nossa dívida. Mas face às reticências da Áustria, Finlândia, Suécia e Holanda não acredito que este plano de recuperação europeia seja aprovado com todos os apoios a fundo perdido.
Toda a economia é afectada mas há sectores económicos que estão a ser mais afectados que outros?
O sector mais afectado foi o turismo. A hotelaria, restauração e os transportes aéreos também são grandemente afectados. Portugal é dos países europeus onde o turismo tem mais peso. A contribuição para o PIB nacional já andaria pelos 15 por cento e em termos directos e indirectos estaria perto dos 20 por cento. E o turismo quando retomar vai ser de forma lenta e gradual. Irá começar pelo turismo interno. Não vamos ter turismo internacional de um momento para o outro.
Há sectores que estão melhor.
A alimentação, o retalho e o sector farmacêutico não são grandemente afectados. E há um conjunto de empresas portuguesas no domínio do têxtil, vestuário, confecções, calçado, metalomecânica e químicas, que percebeu rapidamente as necessidades que havia nestas áreas e soube reconverter a sua produção para fazer produtos que são necessários nesta fase.
“A Nersant pode ter um papel importante nesta nova situação”
Foi deputado pelo círculo de Santarém entre 95 e 99 e já antes, como ministro do Trabalho e Segurança Social e ministro da Energia, tinha uma forte ligação ao distrito de Santarém. Como é que o nosso tecido empresarial regional vai ser afectado? Quais as maiores fragilidades?
Em Santarém temos um excelente grupo de empresas do sector agro-alimentar que não será dos sectores mais afectados. Também temos empresas já razoáveis no domínio da metalomecânica, que acho que também vão sobreviver. Agora, como no resto do país, o sector da restauração e o pequeno comércio poderão ser muito afectados. Em muitos casos têm estruturas fracas e por isso não se sabe se vão conseguir sobreviver.
Nestes tempos qual pode ser o papel de uma associação empresarial como a Nersant?
Assisti, quando estive no Governo, ao nascimento da Nersant, que é uma das grandes associações empresariais regionais do país, bastante activa e dinâmica. Espero que, sozinha ou como parceira da CIP, e em conjunto com esta, possa ajudar no diálogo com o Governo sobre os programas de ajuda às empresas e aos trabalhadores.
E para além disso?
A Nersant tem sido muito activa no apoio à internacionalização das empresas, que agora está suspensa e que vai ter que ser reconvertida. Vamos entrar mais no aspecto da digitalização “income” e o comércio electrónico vai desempenhar um papel muito importante nos processos de internacionalização. A Nersant pode ter um papel importante nesta nova situação explicando às empresas que a internacionalização não pode ser feita como no passado.
Como tem visto a postura do presidente do PSD durante esta crise?
O PSD tem tido uma posição responsável. Rui Rio disse que, nesta fase, não iria criar problemas e que desejava sorte ao Governo porque a sorte do Governo é a nossa sorte. Ele tem cooperado de forma exemplar com o executivo dando bastantes sugestões construtivas.
Há quem critique essa posição.
Isso não significa que tenha dado um cheque em branco ao Governo, para o futuro. Ele já disse que, se houver uma recaída, não há razões para voltarem a acontecer falhas, como as que aconteceram, compreensivelmente, no início desta crise sanitária. O PSD, como maior partido da oposição, vai ter um papel muito importante, em termos de vigiar o Governo num plano de recuperação económica do país, para que não faça erros e faça um plano realista.
Tem havido muitos avisos à banca, mesmo de Rui Rio. São justificados?
A banca tem aqui um papel extremamente difícil e muito ingrato. Precisamos de uma banca sólida, com uma estrutura financeira sólida para apoiar as empresas. Não só agora como na fase de recuperação. Temos que ter todo o cuidado. A banca não pode abrir a torneira de qualquer maneira. Tem que ter as suas cautelas na maneira como vai financiar as empresas. Não podemos correr o risco da banca ficar novamente em mau estado.
Ouvem-se já algumas queixas de demasiadas exigências por parte da banca.
Tem que haver equilíbrio e bom senso. A banca já disse que o problema é das sociedades de garantia mútua. São elas que estão a pôr muitas exigências burocráticas. Penso que a Nersant, que tem um excelente relacionamento com as sociedades de garantia mútua, e com a Garval em particular, pode ter um papel na agilização de todos estes processos. Não sou daqueles que alinham no ataque à banca, porque a banca é fundamental, nesta fase, para viabilizar as empresas e depois para as financiar na fase de recuperação económica.
Vamos começar a abandonar a situação de confinamento. O que aconteceria se aguardássemos mais um tempo?
Há um dilema entre a situação sanitária e económica. Se esquecêssemos a economia e pensássemos apenas do ponto de vista da situação sanitária, o confinamento podia manter-se mais tempo, embora fosse difícil gerir psicologicamente a situação. Mas isso faria com que a economia ficasse mais tempo fechada e assim teríamos menos hipóteses de uma recuperação económica minimamente saudável. Somos uma pequena economia exportadora. As outras economias que são nossas clientes estão a abrir e nós também temos que pôr a nossa economia a funcionar.
Podemos correr riscos em termos sanitários.
Há aqui um equilíbrio que tem que ser gerido. É isso que penso que o Governo está a fazer, com algum cuidado, chamando a atenção que uma abertura pode ter que parar se a situação se agravar. Mas acho que está a fazê-lo com bom senso e equilíbrio. E espero que este confinamento, em que os cidadãos de mais de 70 anos, que estão saudáveis, não podem sair de casa, que é o meu caso, seja visto com mais bom senso. Parece estar a fazer-se uma exclusão.
Como vê esta intervenção em força do Estado na economia numa altura em que o neo-liberalismo parecia estar a ganhar apoio?
Em Portugal nunca tivemos neo-liberalismo, nem com Passos Coelho, que teve que satisfazer um plano da Troika negociado por um Governo socialista. Agora temos um primeiro-ministro que é verdadeiramente socialista e os socialistas acham que o Estado é sempre melhor que o mercado, embora numa situação destas, de emergência, toda a gente reconheça que o Estado tinha que ter um papel fundamental.
O Estado irá manter esta actual posição na economia e na sociedade mesmo depois da crise?
Há esse risco porque os socialistas gostam da intervenção do Estado na economia. Depois de passar esta fase e entrarmos numa fase pós-pandemia considero que vão ter uma dificuldade ideológica e mental em abandonar o comando. Se o Governo fosse mais liberal, estaria mais descansado, porque um Governo mais liberal não gosta muito da intervenção do Estado na economia.
“Esta crise foi fulminante”
O primeiro-ministro começou por dizer que não haveria austeridade. Depois disse que não tinha a certeza. Qual o preço que vamos pagar por tudo isto, olhando para o que já sabemos, mesmo com as decisões já tomadas na União Europeia?
Não há milagres uma vez que o nosso déficit e dívida pública vão subir bruscamente e já estamos altamente endividados. Portugal é dos países com maior dívida pública do mundo, sendo o quarto país com maior dívida pública do conjunto dos países desenvolvidos a seguir ao Japão, à Itália e à Grécia. O que espero é que o BCE consiga, com as suas políticas, fazer com que as taxas de juro não subam para níveis alarmantes porque aí teríamos um problema de grandes dificuldades orçamentais. É uma ameaça. Se tivermos que pagar muito mais pelos juros da dívida pública o Estado, como não tem recursos ilimitados, terá que fazer cortes em outras rubricas e obviamente que há um risco, que não nego, de ter que haver ajustamentos orçamentais.
Vai haver austeridade. É isso?
Nenhum primeiro-ministro gosta de fazer austeridade, mas a austeridade não aparece por desejo dos políticos. Aparece quando não há dinheiro para tudo e há que cortar em algum lado. Quando ele diz que ficaria desiludido se não pudesse contar com o BE e o PCP em tempo de vacas magras, já está a admitir que o tempo das vacas gordas acabou. Aliás, é preciso dizer que a austeridade nunca acabou em Portugal. O que António Costa fez em relação a Passos Coelho foi ter deixado de nos atacar com aumentos dos impostos directos passando a atacar-nos através de um brutal aumento de impostos indirectos.
Com a situação que se aproxima é altura de voltar a falar da sustentabilidade da Segurança Social?
Esse é um problema de médio e longo prazo. Tem a ver com o envelhecimento da população. No curto prazo o Governo fez, e bem, o lay-off simplificado e vai gastar muito dinheiro, mas pode apoiar-se no SURE, o tal programa da União Europeia criado para financiar os governos nesses apoios ao subsídio de desemprego e de emprego.
Mas o desemprego vai acabar por aumentar significativamente.
Uma coisa que me angustia e choca profundamente é a quantidade de desempregados que, de um momento para o outro, vamos ter e que ninguém esperava. Esta crise foi fulminante. Felizmente muitos trabalhadores, através do lay-off, conseguem manter-se nas empresas embora não estejam a trabalhar, mas de facto é uma situação que me angustia profundamente.
O problema do desemprego foi atenuado e adiado.
As pessoas têm poucas poupanças e têm dificuldade em minimizar a quebra de rendimentos e por isso o Estado tem que ajudar com os apoios sociais. O Estado e as IPSS que, na crise de 2011, já tiveram um papel notável, complementando o esforço do Estado, estão novamente a ter um papel notável, juntamente com a igreja, neste apoio. A finalizar quero dizer que tive muito gosto em falar com O MIRANTE, jornal que leio sempre com atenção e espero que o distrito de Santarém, as famílias, os trabalhadores e empresas consigam minorar o mais possível os efeitos desta crise.
Comentário
O trabalho e a ousadia também têm períodos de recolhimento
Não é só em tempo de pandemia que as pessoas se recolhem e ficam no seu cantinho a ver passar a banda na televisão ou à janela. Também na vida política, social e económica há períodos em que os grandes protagonistas da nossa vida colectiva se escondem como raposas por detrás dos cargos que ocupam e, ainda pior, na retaguarda de um analfabetismo funcional que mete dó. Na minha opinião é isso que está a acontecer em alguns concelhos da região ribatejana, onde alguma classe política é medrosa, incompetente e, pior que isso, irresponsável, pois não percebe que as populações ribatejanas vão ficar a pão e água se deixarmos que o território se desertifique como aconteceu de forma ruinosa para as populações numa boa parte do norte do país.
Luís Mira Amaral é exemplo único de um político da vida nacional, que foi eleito deputado pelo distrito de Santarém, que cumpriu a sua missão de ligar a região ribatejana e os seus protagonistas aos interesses instalados no Terreiro do Paço, em Lisboa. Mira Amaral foi cabeça-de-lista do PSD pelo distrito de Santarém em 1999. Antes disso foi Ministro do Trabalho entre 1985 e 1987 e Ministro da Indústria e Energia entre 1987 e 1995, em governos presididos por Cavaco Silva. No Governo, e nos organismos que dependiam do Governo, Mira Amaral foi um verdadeiro aliado das nossas instituições, sempre disponível para abrir portas e encaminhar situações que levavam os autarcas e os empresários a Lisboa, aos gabinetes onde se tomam decisões, o que não acontece hoje em muitos casos como é público e notório.
Luís Mira Amaral tem 74 anos mas ainda trabalha todos os dias ao ritmo desses tempos em que o conhecemos na região a colaborar e a tomar partido ao lado dos agentes locais e regionais. Esta entrevista por Skype foi roubada no início desta semana, a meio da tarde, entre duas reuniões de trabalho. JAE .