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Mais do que sobreviver ao cancro é preciso saber viver depois do cancro
Maria João Simplício detectou o cancro da mama no ano passado e tem sido acompanhada pelo médico Carlos Rodrigues, coordenador da Unidade da Mama do Hospital da CUF Santarém

Mais do que sobreviver ao cancro é preciso saber viver depois do cancro

O cancro da mama é a principal causa de morte na mulher, mas quando diagnosticado atempadamente a taxa de sobrevivência é elevada. A propósito do Dia Internacional dos Sobreviventes de Cancro, 7 de Junho, conversámos com Maria João, uma sobrevivente, e Carlos Rodrigues, coordenador da Unidade da Mama do Hospital CUF Santarém. Uma conversa animada onde se desmistifica a palavra cancro e se percebe que tratar a doença não é sinónimo de tratar o doente.

Maria João Simplício, 43 anos, solteira mas casada de coração, mãe de uma menina de seis anos, assistente técnica na Segurança Social, em Santarém, há mais de duas décadas. Ex-praticante e treinadora de basquetebol no Santarém Basket Clube. Esta é a ‘ficha’ de Maria João à qual se acrescentou em 2019 a menção ‘doente de cancro’.
Detectou um caroço em Agosto com a palpação do peito, mas como a maioria das mulheres desvalorizou o incidente. Como o nódulo persistia, sentiu-se incomodada, intuiu que algo não estava bem e decidiu ir ao médico. Fez mamografia e ecografia e foi detectado o nódulo. “Quando chegou a confirmação de que era um cancro fiquei em choque. Entrei na primeira consulta, depois de saber o resultado, em pânico, aterrorizada… é uma palavra muito mal conotada”, confessa a O MIRANTE no consultório de Carlos Rodrigues, o seu médico e coordenador da Unidade da Mama do Hospital CUF Santarém.
Quando lhe foram transmitidos os dados estatísticos, cada vez mais animadores, que revelam que cerca de 85% das mulheres com diagnóstico conseguem ser curadas, saiu da consulta mais leve. Carlos Rodrigues sublinha que é este o papel do médico: dar a conhecer a realidade, os tratamentos e desmistificar a doença. “A principal causa de morte em Portugal são as doenças cardio e cérebro vasculares e ninguém chora quando tem um diagnóstico de diabetes ou de hipertensão”, nota.
A pouco e pouco foram surgindo boas notícias. O cancro estava circunscrito na mama e após avaliação genética do tumor extraído, num laboratório nos Estados Unidos da América, concluiu-se que não havia necessidade de tratamentos mais agressivos como quimioterapia ou radioterapia. “Todo o processo foi rápido e não me deu muito tempo para pensar sobre o assunto”, conta Maria João. Uma equipa multidisciplinar optou pelo tratamento hormonal, que não provoca os efeitos associados à quimioterapia e que são a parte mais visível do doente de cancro.
Maria João não esconde que só de pensar na quimioterapia ficou em grande ansiedade e, apesar de não ter sentido as perturbações físicas associadas a esse tratamento, sentiu as perturbações psicológicas. “Fui-me abaixo, tive dias muito difíceis. Valeu-me o suporte da família”, confessa. Desde a primeira cirurgia foi iniciada a reconstrução da mama. Houve posteriormente uma complicação pós-operatória que obrigou a retirar a prótese. “Fiquei assim durante um mês, mas não me fez confusão, olhava-me ao espelho e continuava a gostar de mim. Nunca tive vergonha de me despir à frente do meu companheiro ou da minha filha”, refere acrescentando que o seu receio, o que a fez tremer, foi a possibilidade de fazer sofrer quem ama e de não poder assistir ao crescimento da filha. “De resto é só uma mama, é só cabelo, são só unhas… Somos muito mais do que isso”, remata com um sorriso.
Carlos Rodrigues explica que não há doentes de cancro de primeira nem de segunda. “Fez quimioterapia é de primeira, não fez quimioterapia então não é bem cancro. Se tirou a mama é cancro, se só tirou um bocado não é”, são expressões que se ouvem com frequência mas que considera erradas, porque o sofrimento e o impacto da doença é algo pessoal que não pode ser medido por uma bitola.

Tratar a doença não é tratar o doente
Enquanto está a curar um cancro a mulher não pensa na reincidência, diz Carlos Rodrigues. Durante esse período vê o médico com frequência, sente-se acompanhada, tem um calendário e tem metas a cumprir. O problema surge quando chega ao fim do percurso. Quando o médico lhe diz ‘está tudo bem, volte daqui a seis meses’, a mulher fica ansiosa. Essa ansiedade é ainda mais notória nas mulheres mais idosas. “É frequente virem queixar-se de dores, com receio que o tumor esteja nos ossos. Nem sempre se pode desvalorizar, mas a maioria das vezes é apenas típico da idade”, refere o clínico acrescentando que o medo da reincidência corrói a vida da pessoa e tratar a doença não é tratar o doente.
“Se temos a doença tratada, mas uma pessoa aterrorizada que pensa que o chão se vai abrir à sua frente a cada dia, com medo da recidiva, então temos uma pessoa que vai viver 20 ou 30 anos com pouca qualidade, porque está intranquila”, refere reforçando que o trabalho do médico é tratar doentes e devolvê-los ao local onde estavam antes da doença, com as mesmas aptidões sociais e familiares.
O medo de uma reincidência atormenta Maria João. O estado de ansiedade do resultado do próximo exame vai estar sempre presente e para o controlar mantém o acompanhamento psicológico, também no Hospital CUF Santarém, que já tinha antes da doença.
Quando lhe perguntamos se se considera uma guerreira, por ter vencido o cancro, Maria João diz peremptória que todos os que encaram as adversidades são guerreiros e confessa que já tinha passado por outras na vida. Perdeu o pai muito cedo e perdeu o irmão, toxicodependente profundo. “Encarei o cancro como encarei outras adversidades. Posso dizer que sou uma guerreira, tal como a maior parte das pessoas que acorda todos os dias para ir viver a sua vida. A minha foi um bocadinho mais intensa nestes últimos meses”, conta, confessando que aprendeu a valorizar as pequenas coisas como os abraços da filha que agora têm sempre prioridade sobre qualquer tarefa.
A última cirurgia de reconstrução está agendada ainda para este mês. “Vai ser um Verão fantástico”, diz sorridente. O médico confirma que este ano já pode ir à praia, mas ainda não pode fazer topless. “No próximo ano fica ao critério da Maria João”, remata bem-disposto.

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