“Há um grande preconceito na classe médica em relação à canábis medicinal”
Uso de canábis medicinal está regulamentado desde Fevereiro de 2019, mas ainda não há produtos à venda em farmácia. Doentes continuam a ter que recorrer a expedientes para lhes terem acesso. Carla Dias, que foi professora em Tremês, Santarém, preside ao Observatório Português da Canábis Medicinal há cerca de um ano e diz que o processo burocrático envolvido até à comercialização da canábis medicinal é um horror.
Carla Dias interessou-se pela canábis medicinal depois do diagnóstico de epilepsia refratária da filha Isa, agora com quatro anos. O uso de canabidiol, uma das substâncias químicas presentes na canábis, revelou-se uma enorme ajuda para ultrapassar as crises da criança. Embora o interesse tenha começado em causa própria, Carla não baixou os braços e criou o Observatório Português de Canábis Medicinal, com sede em Coimbra. Uma associação sem fins lucrativos que pretende promover e divulgar a investigação científica sobre a planta e informar sobre a sua utilização para fins medicinais. Um ano depois da legalização da canábis medicinal em Portugal ainda não há produtos à venda em farmácia e os médicos não estão sensibilizados para a sua prescrição. Contudo aumentam as licenças do Infarmed para a instalação de empresas interessadas em plantar na região e no país.
Onde adquire o Canabidiol (CBD) que administra à sua filha?
Os primeiros frascos de CBD que comprei foram adquiridos numa loja física, em Coimbra, que vendia produtos naturais. Na altura ainda era legal porque era considerado um suplemento alimentar. No início de 2019 surgiu nova regulamentação e qualquer produto com CBD passou a ser considerado uma terapêutica e a ter de ser vendido em farmácia, o que até hoje não aconteceu. A única solução é comprar pela Internet, em sites de países europeus onde esta substância continua a ser considerada suplemento. Há produtos de marcas fiáveis e há outros que são adquiridos no mercado negro.
Como se consegue garantir que têm qualidade?
São produtos que não se sabe como foram feitos. Não sabemos se são analisados, nem que dosagem têm. É esta mensagem que tem de chegar aos nossos governantes. As pessoas continuam a comprar e não sabem o que estão a comprar e isto é uma questão de saúde pública.
Que benefícios haveria se a canábis para fins medicinais fosse vendida em Portugal?
Uma das vantagens seria a necessidade de prescrição médica. O paciente saberia o que estava a adquirir. O produto seria controlado e teria que respeitar todas as condições de segurança. A prescrição médica ajudaria também a orientar o doente na toma, pois só o médico sabe o historial do doente e a medicação que mais lhe convém.
Mas já existem alguns produtos à base de canábis em venda livre em Portugal…
Sim, existem alguns derivados de canábis nas farmácias portuguesas, mas são produtos à base do óleo da semente de cânhamo que não têm propriedades terapêuticas. Não têm na sua composição o teor de CBD suficiente para serem considerados terapêuticos.
A que preço costuma adquirir o Canabidiol?
Os produtos vendidos na Internet normalmente têm uma diferença de preço mediante a dosagem. Por exemplo, um frasco de 10 ml de gotas de CBD custa cerca de 70 euros. Mas é preciso ter atenção que a toma é feita mediante o peso do paciente. Um adulto necessita de uma dosagem maior, o que encarece o tratamento. Os produtos com as duas substâncias presentes na canábis, o THC (Tetra-hidrocanabinol) e o CBD, podem ascender aos 400 euros, o que é incomportável. Daí a necessidade urgente de comparticipação do Estado.
Durante a pandemia estão a registar-se vendas recorde de canábis nos Estados Unidos da América. Em Portugal também houve um aumento?
O CBD funciona um pouco como um ansiolítico e acredito que as pessoas que estiveram confinadas tenham recorrido a ele para controlar as crises de ansiedade. É provável que um fenómeno semelhante acontecesse em Portugal se também houvesse venda livre.
Muitas empresas escolheram o país para criar plantações mas é pouco provável que alguma da produção seja vendida por cá.
O processo burocrático envolvido até à comercialização da canábis medicinal é um horror. Tivemos uma reunião com o Infarmed que nos disse que a culpa de não termos produto nas farmácias não era deles. “Não podemos ir atrás das empresas”, diz a Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde. Têm de ser as empresas a ir pedir a autorização de colocação do produto no mercado português, refere o Infarmed. Quando submetem a candidatura, as empresas têm de indicar ao Infarmed para onde vão exportar o produto. Uma parte deveria ficar no país, para venda em farmácia, mas isso não está acautelado. Alguém irá ganhar dinheiro e os pacientes portugueses não vão usufruir de nada. O solo, a mão-de-obra, os impostos são todos nossos e depois não usufruímos...
Quantas empresas já tiveram a autorização do Infarmed para cultivo, importação e exportação? Há casos no Ribatejo?
Em Janeiro deste ano eram cinco as empresas autorizadas. Mas são muitas mais as que pediram licenciamento. No Ribatejo confirmo que há pelo menos uma empresa licenciada em Benavente.
Existe falta de formação por parte dos médicos para a prescrição de canábis medicinal?
Há ainda um grande preconceito na classe médica. De acordo com a lei, só se pode prescrever a canábis medicinal depois de todos os outros medicamentos serem tentados. Além disso há falta de informação. O que os médicos sabem sobre a canábis medicinal é o que ouvem numa aula da faculdade onde se fala das drogas ilícitas. É preciso que se interessem e que procurem informação. Em vez de encherem os doentes de ansiolíticos, que têm efeitos secundários terríveis, podiam optar pela canábis. Não é um produto milagroso, nem cura, mas é uma ajuda viável.
Qual o papel do Observatório Português da Canábis Medicinal nesse campo?
Fizemos uma conferência no ano passado e tivemos a adesão de alguns profissionais de saúde. O importante é compreenderem que não podem tratar os pacientes que tomam canábis medicinal com desrespeito e preconceito. Caso contrário estes vão ter receio de falar. A vida dos pacientes já é complicada o suficiente. Procuram ajuda e não alguém que lhes complique mais a vida.
Quantos utilizadores de canábis para fins terapêuticos existem em Portugal?
Ainda não nos foi possível chegar a esse número. Como dizia, existe algum preconceito na classe médica e as pessoas ficam reticentes em divulgar o que estão a tomar. Já tentámos fazer um levantamento, mas foram poucos os que preenchem o formulário.
A informação sobre a canábis é escassa e muitas vezes incorrecta?
Temos o cuidado de divulgar no site do Observatório e na sua página de Facebook informações fidedignas. Cabe a cada um o cuidado de se informar e de não acreditar em tudo o que vê. Quando vão à farmácia e levam um produto que diz canábis, têm de olhar para o rótulo e saber interpretá-lo.
Há muita publicidade enganosa. Enquanto não houver fiscalização quais são os riscos?
Tivemos um problema grave com umas cápsulas vendidas em farmácia. No rótulo tinham a indicação de canábis, mas no interior o que continham era óleo de sementes de cânhamo. Um óleo utilizado para temperar comida, sem qualquer fim terapêutico. Algumas pessoas estavam a tomar essas cápsulas para tratar dores e ansiedade. Houve uma paciente que nos contactou depois de um problema de saúde que a conduziu ao hospital. Entregou-nos as cápsulas e o Observatório pediu uma análise num laboratório certificado. Queríamos confirmar que não continham canábis medicinal, mas descobrimos que tinham na sua composição a bactéria E-coli. Este episódio vem apenas confirmar que não é por ser vendido em farmácia que o produto respeita a lei.