Este vírus não é bonzinho nem é uma gripezinha
Miguel Castanho é cientista no Instituto de Medicina Molecular e professor catedrático de Bioquímica na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Natural e residente em Santarém, trabalha há muitos anos no combate aos vírus. Ironia do destino, foi um vírus que lhe trocou as voltas e o pôs a trabalhar em casa durante três meses, longe do laboratório onde ensaia respostas científicas. Esta é a primeira parte de uma entrevista que terá continuidade em próxima edição semanal.
É cientista no Instituto de Medicina Molecular. O seu trabalho actualmente está de alguma forma relacionado com a situação que o país e o mundo atravessam, causada pela pandemia do coronavírus?
Sim, já estudo vírus e o desenvolvimento de moléculas anti-virais há muito tempo. Entrámos no mundo dos vírus por causa do desenvolvimento de moléculas contra o HIV. Neste novo vírus o meu trabalho aproveita toda a experiência do desenvolvimento de moléculas para outros vírus, como o dengue, o zika e mais recentemente o sarampo. Pelo meio passámos pelo SARS-Cov-1. O que faço é olhar para a estrutura dos vírus e tentar perceber o que é semelhante entre estes vários vírus. E ver das lições aprendidas o que se pode fazer para desenvolver uma molécula anti-viral contra o SARS-Cov-2 o mais rapidamente possível, que impeça a sua multiplicação.
É um trabalho que pode estar na base de novos medicamentos?
Sim.
E em relação à vacina, acha que pode haver boas notícias no ano que vem?
A vacina é outra coisa. Se me perguntar se pode haver, a resposta é sim; mas se me fizer a pergunta contrária, se pode não haver, a resposta também é sim. Porque há esforços para desenvolver vacinas mas nada garante o sucesso desses esforços.
Os EUA apostam agora no Remdesivir, depois da hidroxicloroquina, medicamentos já existentes. Continua a acreditar que a cura pode vir sob a forma de um novo medicamento?
Sim, acredito que a cura poderá ser acelerada com novos medicamentos. O Remdesivir não é um medicamento perfeito. Tem várias limitações. Por isso é que só é administrado em ambiente hospitalar e em determinadas situações. Mas é um medicamento adaptado a este vírus e que surge muito rapidamente. Tudo isto acontece numa escala de tempo muito rápida para a ciência e para o que é habitual em relação ao desenvolvimento de novos medicamentos e novas vacinas. Mas há uma diferença importante entre um medicamento como o Remdesivir e uma vacina.
Qual é?
O Remdesivir não é perfeito mas para alguns doentes ajuda, se não houver outra solução e o doente correr risco de vida. Já a vacina não é para ser aplicada em pessoas doentes mas sim em pessoas saudáveis. Por isso não é comportável uma vacina que tenha problemas de segurança. Isso é muito importante quando se pensa no aparecimento de uma vacina. É muito mais difícil desenvolver uma vacina do que desenvolver um medicamento. Por isso é que estou mais confiante no aparecimento de medicamentos do que no aparecimento de vacinas.
As opiniões de gente da política e da ciência sobre a pandemia têm sido erráticas. Tanta informação, por vezes contraditória, não contribui para a descredibilização de uma comunicação que devia ser clara e assertiva?
Temos que separar um bocadinho as águas. Uma coisa são os especialistas, com os poucos dados que ainda têm, que ainda não sabem questões essenciais sobre o vírus, nomeadamente qual é o mecanismo da imunidade que se ganha contra o vírus… Isto acontece porque a pandemia apareceu muito recentemente. Quando alguns especialistas têm visões contraditórias isso, em si, não é um problema. Só reflecte que a questão é muito nova, estamos a meio de muitos estudos e algumas pessoas fazem antevisões ou leituras que são diferentes.
E em relação aos políticos?
A pandemia está cada vez mais politizada. Os governos perceberam logo que iam ser julgados pela capacidade que teriam ou não de gerir a situação. E para os governos e para os políticos em geral a gestão da pandemia tornou-se o assunto do momento. Começaram a acontecer fenómenos muito próprios da política e que já nada têm a ver com ciência e com saúde pública. Quem depende da gestão pública do assunto está obviamente focado nisto. Em Portugal, enfim, já é notório que passámos de uma euforia triunfalista, do milagre, e estamos quase na depressão.
Que comentário lhe merecem as declarações de pessoas com responsabilidade política ou social que continuam a desvalorizar a pandemia dizendo que não é mais que uma simples gripe e que morrem mais pessoas de AVC ou de acidente de automóvel?
É verdade que têm surgido declarações desse tipo, algumas até de pessoas ligadas à ciência. Obviamente que há outras causas de morte e que em algumas faixas etárias são superiores à Covid, mas isto não é uma corrida para ver quem faz mais vítimas. Este é um problema que se adiciona aos outros. Não podemos deixar de dar atenção aos outros para só nos focarmos neste problema, e o facto de existirem outros problemas não torna este menos importante.
Até porque ainda não se sabe quando é que isto vai acabar...
Sim e os efeitos só se podem contabilizar no fim. Portugal está com cerca de 1.600 mortos relacionadas com a Covid, em três meses, o que é imenso. Se as pessoas quiserem saber quanto é que isto dá em autocarros cheios, e comparar com a consternação causada pela queda da ponte de Entre-os-Rios, percebem a diferença de escala entre uma coisa e outra, para não desvalorizarem o impacto que isto tem. São 1.600 famílias enlutadas em Portugal em menos de três meses.
Somos imunes aos outros coronavírus ou eles fazem menos mossa?
Existem vários coronavírus e a maior parte deles causam ligeiras constipações. Este é o pior de todos.
Apesar de alguém ter dito, por acaso sua colega, que ele até era bonzinho.
Sim e não percebi essa declaração de maneira nenhuma.
Transportes públicos são um ambiente propício ao contágio
Os transportes públicos têm sido apontados como possível fonte de contágio na Área Metropolitana de Lisboa, onde tem surgido a grande maioria dos casos de Covid desde que começou o desconfinamento. O que pensa disso?
É plausível que sejam, porque as imagens que vemos não deixam grandes dúvidas e é sabido que a principal forma de contágio é de pessoa para pessoa. É um ambiente propício ao contágio, mas pode não ser o único. Precisávamos mesmo é que estivesse no terreno um plano para saber exactamente por onde estão a passar as cadeias de contágio. Porque sem isso andamos todos às aranhas.
E isso é fácil de fazer?
Fácil não é, mas é possível. Com essa estimativa conseguiríamos ter uma ideia se o principal problema passa pelos transportes públicos, por sectores de actividade como a construção ou as limpezas, ou se tudo emana de determinados bairros em que as pessoas vivem em condições mais precárias. Na posse desta informação deveriam ser tomadas medidas conscientes. Devíamos estar mais focados em tentar perceber por onde passam as cadeias de contágio do que propriamente estar a atirar para todo o lado e arranjar bodes expiatórios.
As mais altas figuras do Estado apresentaram com regozijo a fase final da Liga dos Campeões de futebol em Lisboa. Esse torneio é um factor de risco acrescido?
Potencialmente sim. É um bom exemplo da diferença entre planear e não planear. Tomou-se a opção de permitir a fase final da Liga dos Campeões, tal como se permitiu a continuação do principal campeonato nacional de futebol à porta fechada. Quem tomou esta opção deve ter pensado no dia em que for conhecido o campeão nacional, no dia em que jogarem equipas espanholas na Liga dos Campeões ou no dia em que for conhecido o campeão da Europa. Nesses dias ninguém espera que não existam ajuntamentos de pessoas. Ou que toda a gente seja muito consciente e que vá festejar com os seus amigos adeptos guardando distância de dois metros. Isso não vai acontecer. Há que ter medidas preparadas para o que vai acontecer. Não é razoável que depois digam que as pessoas contrariaram as regras.
A reabertura de fronteiras na União Europeia pode fazer crescer o número de infectados?
Tudo o que seja mobilidade de pessoas obviamente favorece o contágio. Mas também não devemos ler aqui que se devem manter as fronteiras fechadas para todo o sempre, porque isso não conseguimos. A relação entre os países e entre as pessoas assim o determina. A questão é até que ponto conseguimos fazer isto com razoabilidade ou não.
Um investigador premiado que se doutorou aos 25 anos
Miguel Castanho, 52 anos, é natural de Santarém, onde tem casa, e filho do antigo vice-presidente da câmara escalabitana, Joaquim Botas Castanho. É cientista no Instituto de Medicina Molecular e professor catedrático de Bioquímica, tendo-se doutorado aos 25 anos. Casado e pai de duas filhas, o investigador na área da bioquímica já ganhou vários prémios de investigação científica e é uma autoridade na sua área de actividade.