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“Não temos que tornar o nosso mundo descartável para andarmos mais seguros”
Carmen Lima e Susana Fonseca

“Não temos que tornar o nosso mundo descartável para andarmos mais seguros”

O desconfinamento está a ser feito com o recurso a materiais descartáveis e o ambiente, que inicialmente parecia estar a beneficiar da pandemia, está afinal a sofrer um revés com o uso de materiais de utilização única e consequente aumento da produção de lixo. O MIRANTE ouviu as associações ambientalistas Quercus e Zero, que pintam um cenário negro.

Em Portugal e na Europa a sensibilidade para evitar o uso de materiais descartáveis como sacos de plástico, palhinhas ou palhetas de mexer o café estava em crescendo até aparecer a pandemia. Com ela veio um retrocesso, não nas políticas, mantendo-se 2021 como data para introdução de regras mais apertadas a nível europeu, mas sim no comportamento da população. Esta é uma ideia partilhada pelas organizações ambientalistas Quercus e a Zero.
Segundo Carmen Lima, coordenadora do Centro de Informação de Resíduos da Quercus, as pessoas estão com mais receio, por exemplo, de uma coisa tão simples como beber um café numa chávena de loiça. Houve um retrocesso no tipo de serviço oferecido pelos estabelecimentos de restauração e bebidas e, com o desconfinamento, foi introduzido o conceito do descartável noutros serviços como nos cabeleireiros.
A representante da Quercus defende que o sentimento de protecção da saúde devia ter sido desmistificado pelos ministérios da Saúde e do Ambiente e dá como exemplo um “Minuto Verde” [programa da RTP, em parceria com a Quercus, onde se dão dicas sobre ambiente] exibido no período de confinamento onde se apelava às pessoas para comprarem a granel e para levarem os seus próprios sacos de casa. “Recebemos um feedback negativo por parte da população a dizer que não era o momento para apelar à compra a granel mas sim incentivar a compra de produtos embalados. Várias pessoas disseram que até a fruta estavam a comprar embalada”.
Para além do retrocesso nos hábitos do dia-a-dia com a reintrodução de produtos descartáveis, há ainda a agravante da introdução de novos usos: luvas em latex e máscaras descartáveis. Carmen reforça que este aumento da produção do lixo não acontece apenas em nossas casas, mas também em diversas actividades económicas e a nível hospitalar.
Para Susana Fonseca, secretária e colaboradora da Zero, há muitos representantes políticos a utilizar máscaras descartáveis. O que é inaceitável quando temos a indústria nacional a produzir máscaras reutilizáveis e cabe aos responsáveis dar o exemplo e apoiar a indústria nacional que se reinventou. Devemos proteger-nos sem agredir o ambiente com produção de mais lixo que vai parar a aterro.
A dirigente da Zero também defende uma comunicação mais clara por parte das entidades responsáveis sobre o que deve ser feito na protecção pessoal. Susana aponta que não temos que tornar o nosso mundo descartável para andarmos mais seguros. “Nada substitui uma boa higiene das mãos”, diz.

Preço dos sacos de plástico não é estímulo suficiente para não comprar
O imposto criado em 2015, que atribuiu um custo de 10 cêntimos por cada saco de plástico vendido nas superfícies comerciais, rendeu até 2019 cerca de um milhão de euros ao Estado. Carmen Lima, da Quercus, realça que a introdução da taxa levou a que houvesse uma diminuição em mais de 50% do uso de sacos descartáveis. Para não pagar a taxa as pessoas começaram a levar o seu próprio saco ou a comprar sacos reutilizáveis o que teve um efeito positivo na mudança de comportamentos.
Susana Fonseca, da Zero, reforça que o valor a pagar pelos sacos de plástico devia aumentar progressivamente pois já há uma certa normalização do preço que deixou de ser estímulo suficiente para o seu não consumo. De acordo com a dirigente, é preciso dar um sinal que aquele recurso tem um valor, tem um custo e que não podemos usá-lo de forma “descontrolada”. Uma defesa válida não só para os sacos de supermercado mas para todos os sacos disponibilizados nas lojas independentemente do material. “O recurso tem sempre que vir de algum lado. Se se substituir todos os sacos de plástico por sacos de papel, o papel também tem que vir de algum lado”, afirma.

A rivalidade entre Quercus e Zero

Durante mais de trinta anos a Quercus, fundada em 1984, dominou na opinião pública sempre que o assunto era o ambiente. Contudo, em 2015 foi criada a Zero, associação Sistema Terrestre Sustentável, tendo entre os seus fundadores cinco ex-presidentes da Quercus. Um grupo de antigos dirigentes históricos da Quercus abandonou a militância activa na associação ambientalista mais conhecida do país para formar esta nova organização. Entre os rostos mais conhecidos encontram-se os dos ex-presidentes Francisco Ferreira, Susana Fonseca, José Paulo Martins e Hélder Spínola, assim como o do histórico Viriato Soromenho-Marques.
Susana Fonseca confessa que foi um momento difícil. “Fiz parte da direcção da Quercus mais de uma década, e fiz durante nove anos o ‘Minuto Verde’. Mas havia uma hostilidade interna a anteriores dirigentes e consideramos que não conseguíamos trabalhar como gostaríamos dentro da Quercus. Saímos e estamos felizes com aquilo que conseguimos enquanto Zero, porque é bom para o país”, refere a ambientalista. O objectivo da associação, refere, é conseguir representar junto dos órgãos de decisão a visão de um mundo mais sustentável.
Congratulando-se com a meta recentemente alcançada dos dois mil associados, Susana afirma que agora a Zero já pode ser classificada como Organização Não Governamental (ONG) de âmbito nacional. Durante a pandemia o aumento de sócios foi exponencial. A ambientalista não sabe qual o motivo mas adianta uma hipótese: talvez seja porque as pessoas pararam para reflectir sobre o ambiente e o futuro que querem.
Não querendo entrar em competição com a Quercus, Susana Fonseca defende que o importante é juntar esforços para que haja um movimento ambientalista português mais forte e mais interventivo, que monitorize o que os intervenientes políticos vão fazendo com os dinheiros públicos. “Precisamos de todos para fazer a transição para a sustentabilidade. Nada está garantido e os sinais que vemos no terreno não são animadores”, diz.

“Não temos que tornar o nosso mundo descartável para andarmos mais seguros”

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