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Aumento de casos de Covid-19 é banal e não vai haver vacina eficaz
Para Jorge Torgal não é preocupante o número de novos casos diários mas sim o número de internados nos cuidados intensivos

Aumento de casos de Covid-19 é banal e não vai haver vacina eficaz

Jorge Torgal, professor catedrático, especialista em saúde pública, não é homem de rodriguinhos e remata com convicção análises sobre a pandemia, que em várias situações vai em contra-corrente com outras posições. Natural de Santarém, o médico com duas especialidades, não acredita que a Covid-19 venha a ser debelada por uma vacina, tal como a gripe não o foi. É crítico sobre a continuidade de se apresentarem diariamente os números de infectados e diz que há uma falta de estratégia de comunicação do Governo para fazer com que as pessoas percam o medo. Considera que o aumento do número de casos é uma coisa banal e que as pessoas vão ter de aprender a conviver com um vírus que não vai provocar uma segunda vaga, mas várias. Afirma que as classes desfavorecidas são as mais vulneráveis à transmissão da doença e a ilação que tira da pandemia é de que o país aguentou bem o embate por já ter alguma preparação e por ter um sistema social e de saúde que funcionaram bem.

Estamos perante uma pandemia ou um pandemónio?

Estamos perante uma pandemia, mas também um pandemónio social, que no meu entender não corresponde à gravidade da epidemia. Compreende-se que no início tenha causado grande inquietação. Estávamos perante uma situação nova que tinha precedentes preocupantes e isso justificou o grande alarme que se criou. Mas depois não tem havido uma análise bem medida dos dados.

O facto de todos os dias o Governo dar números de infectados alimenta essa intranquilidade?

Isso causa uma certa preocupação social. O facto é que não é uma questão nacional, é mundial. Há um “contómetro” de mortos que não se compara com mortos por outras causas.

Não se compara a que nível?

Ninguém conta as mortes por malária, por exemplo. Todos os anos ainda morrem centenas de milhares de pessoas com Sida. Também não se contam as mortes por tuberculose, pneumonia, gripe… Estamos perante uma situação em que a comunicação social tem uma parte da responsabilidade, que também é alimentada pelos políticos.

A Covid-19 vai ter mais implicações sociais que de saúde?

As consequências económicas já estão a ser gravíssimas. Vamos ter centenas de milhares de portugueses desempregados. Mas na saúde também há problemas colaterais graves, porque o medo que se instalou fez com que as pessoas deixassem de procurar os cuidados médicos de que necessitavam. Pessoas com cancros que deixaram de fazer tratamentos por medo de irem ao hospital. Vamos ter mortes prematuras.

Não o preocupa o número de casos todos os dias?

Não me preocupa que existam 500 ou 600 casos por dia. Porque esses casos não significam doença, em geral. O que me preocupa é o número de casos hospitalizados e em cuidados intensivos. Em Portugal chegámos a ter 271 pessoas em cuidados intensivos e temos agora 63 e 404 pessoas hospitalizadas (dia 13 de Julho). Quando dizem que os hospitais estão sobrecarregados, acho alguma graça, porque já tivemos 1.211 pessoas internadas em simultâneo por Covid-19.

Ou seja, há que encarar isso com normalidade…

É banal porque a epidemia não vai desaparecer. É muito interessante, por exemplo, que quem vai à Madeira ou Açores seja testado antes. É uma boa medida na lógica de atrair turistas, mas não tem futuro porque não podem viver na ilusão de que vão fazer uma reserva sem a Covid-19, como sem a gripe, ou a Sida ou outras doenças transmissíveis virais. É normal e banal que se mantenha um número elevado de casos, até porque antes as pessoas suspeitas iam 14 dias para casa, agora são testadas.

Mas esta doença é mais grave que uma gripe…

As pessoas não se apercebem que a gripe é uma doença gravíssima. Apesar de vacinarmos mais de metade das pessoas com mais de 65 anos no ano passado morreram 3.331 pessoas, mais do dobro das que morreram com Covid-19. As pessoas estão habituadas a não valorizar a gripe socialmente, mas tem uma mortalidade elevada.

Era mesmo necessário parar praticamente o país?

A estratégia de manter as pessoas em casa para baixar o nível de transmissão foi seguida mundialmente e era difícil qualquer Governo não a seguir, porque para isso teria de estar bem preparado e ninguém estava bem preparado para uma epidemia desta dimensão. Utilizaram-se as medidas históricas, que vêm da Idade Média, que é fechar-nos em casa à espera que passe.

Que lição se tira desta situação?

Portugal teve várias coisas a seu favor em relação a outros países. Tinha uma preparação da situação do ébola, em que houve exercícios de organização hospitalar e tinha ainda reservas estratégicas de 2009 do surto da gripe A (H1N1). Tem um sistema de saúde organizado e o facto de ter médicos de família permitiu que as pessoas que tinham sintomatologia estivessem em casa e fossem acompanhadas pelo seu médico por telefone evitando o entupimento das estruturas hospitalares.

Os hospitais privados passaram um bocado à margem da situação?

Os hospitais privados não estão organizados nem previstos para doenças infecciosas. Estão vocacionados para o que tem a ver com cirurgias e meios complementares de diagnóstico. Embora se tivessem disponibilizado para o caso de ser necessário.

As condições sociais têm influência na transmissão da doença?

As classes sociais mais desfavorecidas são as que correm mais riscos de infecção. Um senhor que trabalhava nas obras apareceu infectado. Vivia numa casa com sete pessoas em duas assoalhadas, portanto estavam todos infectados. A realidade social mostra que os mais frágeis são os que mais sofrem com qualquer epidemia. É esperado que isto aconteça.

Quando é que a sociedade volta à normalidade?

Foi muito fácil fechar, mas é muito difícil abrir porque não é fácil mudar a lógica da comunicação. É difícil que as pessoas percam o medo. Os políticos não querem, depois do esforço que fizeram, e bem, e dos custos sociais que isto tem, ser apanhadas de uma forma mais despreocupados em relação às consequências. Há uma dificuldade em fazer a sociedade retomar a sua vida normal.

Já não é possível voltar atrás e fechar o país?

Não pode do ponto de vista económico e não se justifica do ponto de vista de saúde. É importante que Portugal tenha sido escolhido para acolher a final da Liga dos Campeões de futebol. São oito equipas, pelo menos há oito hotéis cheios em Lisboa. Isto faz com que Portugal esteja na comunicação social do mundo, o que tem um valor enorme para a imagem do país.

Acredita que vai haver uma segunda vaga pior do que a actual?

Segunda? Vai haver segunda, terceira, quarta… como há as da gripe todos os anos.

Porque é que há tantas versões contraditórias sobre a Covid-19?

Há uma epidemia que atingiu colegas meus, matemáticos, físicos, juristas… Toda a gente foi infectada pelo vírus da sabedoria das doenças. Passámos a ter muitos comentadores. É precisa uma estratégia de comunicação que ajude as pessoas a compreenderem qual é a gravidade da doença e que retire o medo que se instalou. A mortalidade em Portugal é na maioria de pessoas com mais de 80 anos.

Esse medo só passará quando houver vacina?

Não acredito que venha a existir uma vacina que acabe com a doença. Há quantos anos temos vacina para a gripe? A gripe acabou? Temos vacina contra o sarampo e ainda há surtos da doença. Para doenças que ocorrem na vida adulta, transmitidas pelo ar, com elevado grau de infecciosidade até hoje não tem havido vacinas eficazes.

Que ilações se tiram desta pandemia?

A doença nunca traz nada de bom. Mas deu para ver que temos uma sociedade muito desigual, continua a haver muita gente fragilizada socialmente. O Serviço Nacional de Saúde apesar de tão fragilizado e atacado foi capaz de responder. Percebemos que houve uma liderança política que foi essencial. Verificou-se que o nosso sistema de solidariedade social funciona.

“Médicos podem ser substituídos em muitas coisas”

Nos 21 concelhos do distrito de Santarém existem nove médicos de saúde pública. É caso para nos preocuparmos?

A questão não está apenas nos médicos. É preciso saber quantos enfermeiros de saúde pública, quantos técnicos há, como é que são constituídas as equipas e que idade têm os profissionais. Um dos grandes defeitos nacionais é não se perceber que os médicos podem ser substituídos em muitas coisas. Em Portugal há uma lógica de que o médico é que é o salvador. No Québec vemos que para cada médico há cinco ou seis enfermeiros, depois há negociadores de conflitos familiares, psicólogos, nutricionistas que ajudam uma família a viver com mais saúde.

Podia haver mais médicos de saúde pública…

Quando fui para medicina a maioria dos meus colegas queria ser pediatra, porque era onde se ganhava dinheiro. Há uns anos os alunos começaram a querer seguir dermatologia, porque qualquer senhora quer tirar um sinal, qualquer senhor não quer ter uma marca que o torne menos belo. Para a saúde pública vai pouca gente porque vai ter de fazer carreira como funcionário público e isso hoje não é atractivo. Na sociedade actual há a ideia de que é mais competente quem ganha mais dinheiro, não quem tem mais saber numa área.

É preciso apostar mais em profissionais de rectaguarda?

É preciso ser um médico a medir a tensão arterial a um doente? É preciso ser o médico a fazer a consulta de continuidade de uma pessoa e dizer-lhe que pode continuar a tomar a medicação porque está tudo bem? Na lógica portuguesa se não for o médico a fazer isso o doente sente-se desconsiderado. É preciso ultrapassar isto para obter uma maior rentabilidade.

Santarém tem sido vítima de grandes falhanços de liderança

Nasceu em Santarém. Quando lá vai nota alguma coisa de diferente na cidade?

Em relação ao meu tempo de juventude o que era o centro da cidade morreu. As forças vivas da cidade encontravam-se no Café Central. Havia um Clube de Santarém que era muito vivo. Agora as pessoas vão ao centro comercial.

Gosta de passear no centro histórico?

O centro está descaracterizado e não houve capacidade de renovação. Tem de haver medidas que levem a que as pessoas tenham interesse em ir ao centro da cidade. A gestão da cidade ao longo dos anos leva a que não haja nenhuma loja importante no centro da cidade, nenhum equipamento cultural interessante. Há as portas-do-sol que só tem uma componente paisagística. A cidade não soube apostar em factores diferenciadores.

Estou a ver que é um crítico da política de Santarém.

Não é uma questão de cores políticas. Houve um falhanço grande nas lideranças para fazer com que a cidade tivesse uma vida social relevante, para estrangeiros e para as pessoas que vivem à volta. O centro de Tomar mantém-se vivo e Santarém está morto.

Porque demoraram tanto tempo a ser feitas as obras do bloco operatório do Hospital de Santarém?

Falta de liderança política. Se a população tiver uma boa liderança e tiver voz conseguem-se as coisas. Nenhum Governo dá nada se não houver uma força que o obrigue. As lideranças locais e regionais são fundamentais para que haja desenvolvimento e resposta aos problemas que surjam.

A Lezíria do Tejo está a dois passos de Lisboa e parece que pouco ganha com isso.

A zona perde porque não consegue ter motivos de atracção local. Porque é que há tantos médicos que trabalham no Hospital de Santarém e vivem em Lisboa. Porque não há coisas interessantes na cidade.

O Centro Nacional de Exposições devia ser um pólo de atractividade para Santarém?

Fui lá uma vez a uma exposição canina. O espaço tem alguma actividade, mas que está desligada do centro da cidade. É apenas um pavilhão onde se fazem exposições.

Filho da burguesia preso por propaganda contra o regime

Jorge Torgal tinha os seus 19 anos quando foi preso em Santarém com mais quatro jovens da sua geração, entre os quais o seu primo e médico pneumologista João Roque Dias. Andavam a distribuir propaganda subversiva aos olhos do regime ditatorial. Jorge conduzia o carro do avô, emprestado sem o avô saber, e foram caçados pelo comandante da polícia e mais uma dúzia de agentes armados. Eram suspeitos de colocarem nas caixas do correio uns folhetos sobre a crise académica em Lisboa.


Os cinco detidos eram todos bons rapazes da conhecida burguesia de Santarém e o caso foi uma bomba. Um escândalo que durou mais que os dois dias em que estiveram nos calabouços do Governo Civil de Santarém para acalmarem e serem interrogados pela polícia política Pide, que tinha escritório no Entroncamento. Mas antes já tinham sido interrogados pelo comandante da PSP, homem simples e de pouca formação académica, que ficou aterrorizado quando o primo de Jorge respondeu “trivial” à pergunta sobre o que é que falavam quando se juntavam. O comandante não sabia o que era trivial e isso fê-los estar mais tempo presos.


Jorge Torgal faz este ano 72 anos de idade. Médico, professor de medicina, com um currículo impressionante fez a sua juventude em Santarém, onde ainda vai regularmente encontrar-se com amigos ou familiares. Fez parte do coro do Círculo Cultural Scalabitano apesar de confessar que nunca teve muito jeito para cantar. Era bom aluno no liceu. “Não era difícil entrar para medicina, a dificuldade era ter uma família que conseguisse pagar os estudos”, recorda.


Foi estudar medicina para Coimbra por vontade da mãe que não o queria em Lisboa, já que havia no historial da família casos de perdição na capital. No terceiro ano do curso começou a trabalhar ao mesmo tempo como delegado de propaganda médica e isso deu-lhe a independência suficiente para se mudar para Lisboa. Ganhou consciência política muito cedo, por ter tido um primo preso pela Pide, quatro anos, sem culpa formada. Pai de uma filha, Jorge só teve uma incursão partidária em 1975 nas primeiras eleições livres, pelo Movimento de Esquerda Socialista (MES). Mas depressa abandonou as lides. Não é filiado mas confessa-se simpatizante do PS onde tem e teve grandes amigos, como Mário Soares.


Jorge Torgal foi criado pela mãe e pelo avô, que era da já desaparecida Camionagem Ribatejana. O pai faleceu quando ele tinha cinco anos. Tem feito um percurso invejável. Professor catedrático da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, jubilado em 2018, onde dirigiu o departamento de saúde pública, foi subdirector-geral de saúde, presidente do conselho directivo do Infarmed. Desempenhou funções de vice-presidente da Cruz Vermelha Portuguesa durante 12 anos, tendo sido administrador do hospital da instituição. Foi membro da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento durante 10 anos.


Licenciado em medicina desde 1974, obteve os títulos de especialista em Dermatologia (1984) e em Saúde Pública (1991). Doutorou-se em Medicina /Saúde Pública /Bacteriologia em 1990. Foi também director do Instituto de Higiene e Medicina Tropical durante dez anos. É director do Centro de Investigação em Saúde Comunitária (CISCOS) e foi jovem investigador no INSERM, França (1978-1980) e no Instituto Pasteur, Paris, França (1986-1988). Actualmente é director da Escola Superior de Saúde do Alcoitão. Recebeu o Prémio Nacional de Investigação da Sociedade Portuguesa de Dermatologia e o Prémio Ricardo Jorge, Prémio Nacional de Investigação em Saúde Pública, em 1991. Foi agraciado com a medalha de Ouro por Serviços Distintos do Ministério da Saúde, em 2017.

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