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Os ciganos não são todos iguais
Família Figueiredo vive há décadas em barracas construídas em terrenos da Companhia das Lezírias, em Samora Correia

Os ciganos não são todos iguais

Após o episódio de agressões a um empresário, a revolta contra a comunidade cigana instalou-se no concelho de Benavente. Quatro meses depois O MIRANTE foi ver como vive uma família cigana que está há mais de duas décadas em Samora Correia. As condições precárias são as mesmas de sempre mas o racismo e a intolerância tem aumentado ao longo do tempo.

Era para ser temporário, mas já estão naquele terreno que é propriedade da Companhia das Lezírias, em Samora Correia, há mais de duas décadas. Em frente ao contentor a que chama de casa, José Figueiredo, acena-nos ao mesmo tempo que anuncia a nossa chegada aos restantes membros da família. “É aqui que vivemos há 20 anos à espera de uma casa que nos prometeram”, diz, apressando-se a mostrar os quatro cantos da habitação que partilha com Benvinda Oliveira, a esposa de cabelo negro e avental ao peito e Leonel, um filho com atraso cognitivo.
“Não pagamos nada, mas agora a Câmara de Benavente pôs-nos a pagar luz. Já cá vieram há uns dias instalar os contadores”, explica revoltado porque só vive da reforma da esposa de “duzentos e poucos euros” e juntos gastam perto de 100 euros em medicamentos.
As palavras saem-lhe da boca a ferver. “Somos daqui, feitos, nascidos e criados. Somos pobres, a minha mulher é doente e vivemos nestas condições”. De pele morena e cabelo grisalho, José tenta fazer as contas para dizer a idade. “Só sei que nasci em 1965, agora quantos tenho não sei”, diz, confuso. Ao lado, a estrutura em ferro de uma antiga barraca onde agora só há roupas e cobertores a embrulhar electrodomésticos e televisões prende-lhe o olhar. “Já morámos ali, com melhores condições, mas ardeu tudo vai fazer dois anos. Quando as pessoas souberam disseram que foi bem feita porque vivemos à custa delas. Mas a nós ninguém nos dá nada”. Por outro lado, diz, só vê em Samora, Porto Alto e Benavente, “racismo contra os ciganos”.
“Gostava de não ser cigana”, atira Sofia Figueiredo, de olhos verde-água e longos cabelos negros, enquanto aconchega no colo o pequeno Azael Silva, de um ano. “Há muito racismo e tenho medo que aconteça aos meus filhos o que aconteceu comigo. Na escola olhavam-me de lado, punham-me menos comida no prato, chamavam-me cigana e eu não gostava”.
Sofia estudou até ao sexto ano. Sabe ler, mas já não se lembra como se escreve. “Quando é para tratar de papéis sou eu que faço tudo”, diz o seu companheiro, Rafael Silva que aprendeu a ler e a escrever sozinho, sem nunca ter ido à escola, porque o pai morreu cedo e mãe era pobre. “Aos cinco anos comecei a fazer-me à vida porque não tinha o que comer. Só nessa altura roubei, não me julguem”, pede.
O percurso profissional de Rafael Sila está manchado pelo preconceito que acompanha a etnia, embora tente contrariá-lo. Começou a trabalhar aos 14 anos na agricultura, em Espanha e os últimos empregos que teve foi como funcionário de duas empresas de Samora. Foi despedido há cinco meses por culpa, diz, de ser cigano. “Quero trabalhar, sempre trabalhei. Agora estou inscrito no Centro de Emprego à espera que apareça alguma oportunidade”, conta Rafael. “Mas não aparece”, interrompe Sofia Figueiredo. Depois explica: “Quando vêem que somos ciganos o mais normal é negarem-nos o lugar”.
Sofia, que só trabalhou em campanhas da apanha de fruta sazonais, em Espanha, antes de ser mãe, vai começar dentro de dias um curso de informática, remunerado, através do Instituto de Emprego e Formação Profissional.
A habitação onde o casal vive com a filha Naima e o filho Azael, é uma barraca com madeira, esferovite e outros materiais que improvisam paredes. Os tapetes fazem de chão e a falta de cobertura impermeável no telhado faz do lugar “uma piscina quando chove” e “os bebés, que são asmáticos ficam sempre doentes”. Há apenas dois compartimentos, que fazem de quarto e cozinha. Casa-de-banho só na casa ao lado onde moram os pais de Sofia, José e Benvinda.
Os 374 euros que o casal recebe de abono pelos dois filhos são o sustento da casa. Para completar o orçamento familiar, Rafael vende a sucateiras o ferro-velho que encontra no lixo com a ajuda de José, que antes de uma hérnia lhe “dar cabo das costas”, vendia roupa porta-a-porta, tendo chegado a viver alguns anos, admite, do Rendimento Social de Inserção.
A família Figueiredo já concorreu no passado às habitações sociais, mas nunca foi contemplada. “Ter uma casa com um quarto para os filhos” que consiga pagar é o “maior sonho” de Sofia Figueiredo. “Mas não se encontra nada a menos de 400 euros e isso é muito, mesmo com ele [Rafael Silva] a trabalhar”.

“Por uns pagam os outros, mas os ciganos não são todos iguais”
A sina da família Figueiredo é igual à de muitos outros que nasceram e cresceram com o rótulo de pertencer a uma minoria étnica, alvo de preconceito e discriminação racial. Apesar de esta família não ter bons carros à porta, porque nem tem nenhum, de não viver do Rendimento Social de Inserção ou de não se “meter em confusões” é muitas vezes posta no mesmo saco. “Ninguém nos quer cá. Porquê? Porque por uns pagam os outros, mas os ciganos não são todos iguais”, diz Rafael Silva.
Desde que um grupo de uma comunidade cigana residente em Benavente agrediu com violência um empresário à porta do seu restaurante, em Junho passado, o racismo, diz, “só tem piorado”. “Ainda ontem fui ao café e quando estava a levar o meu pedido para a mesa vieram logo atrás com medo que não pagasse. Se isto não é perseguição, é o quê?”, questiona Rafael. Sofia acrescenta: “Nem nos damos com esses de Benavente, mas somos tratados de uma maneira diferente por termos a etnia que temos”.
Os comportamentos que fazem esta família sentir-se diferente, acontecem quando procuram a integração frequentando cafés e restaurantes da cidade e piora nos hipermercados, onde todo o percurso entre prateleiras é merecedor de olhares desconfiados. “Quando vou às compras pedem-me para mostrar o carrinho de bebé para ver se levo alguma coisa lá escondida. Depois pedem desculpa”, conta Sofia.

Município de Benavente promove integração

Na última Assembleia Municipal de Benavente, tal como O MIRANTE deu conta, foi notório o descontentamento da população relativamente à insegurança, desrespeito e episódios de violência provocados por pessoas desta etnia. Ouviu-se de tudo um pouco. Houve apelos ao presidente da câmara para que expulse as pessoas de etnia cigana do concelho e discursos mais comedidos, a dizer que apenas devem ser tomadas medidas para os que não sabem estar em sociedade.
Para o presidente da Câmara de Benavente, Carlos Coutinho, o assunto é delicado e a sua resolução está a ser concertada com o Alto Comissariado para as Migrações, entidade com quem a autarquia está a trabalhar desde Julho. O objectivo é “promover medidas de integração destas comunidades no mercado de trabalho e na sociedade em geral”.
A O MIRANTE, sobre a família Figueiredo e as condições em que habitam, Carlos Coutinho, refere que “serão tratados como os outros, sem benefícios ou discriminação”. A solução, explica, passa pela candidatura ao concurso de habitação social do município que está a decorrer até 16 de Novembro, para atribuição de sete casas em regime de arrendamento apoiado. “Os concursos são iguais para todos, não é por serem ciganos que vão ser beneficiados, nem prejudicados”, adverte. Sobre a conta de electricidade que esta família diz que vai ter de começar a pagar, o autarca diz, sem certezas, que “já [antes] pagariam luz”.

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