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Uma biblioteca itinerante na Chamusca que faz viajar quem vive sozinho
Felisbela Jesus. Maria José. Ju Oliveira e Ana Caranguejeiro. Salvador Prates e Cândida Rodrigues

Uma biblioteca itinerante na Chamusca que faz viajar quem vive sozinho

A Biblioteca do Ruy é um projecto que marca a diferença no concelho. Um projecto que vai às aldeias distribuir cultura e fazer companhia a quem vive mais isolado. O MIRANTE acompanhou a carrinha durante uma manhã nas aldeias do Semideiro, Chouto e Ulme.


Na manhã chuvosa de quinta-feira, 5 de Novembro, Dia Mundial do Cinema, a reportagem de O MIRANTE encontra-se com Ju Oliveira e Ana Caranguejeiro junto ao minimercado do Chouto, aldeia do concelho da Chamusca. Ambas são a cara de um projecto, desenvolvido sob a alçada da Biblioteca Municipal Ruy Gomes da Silva, que pretende cultivar hábitos de leitura na população do concelho que vive mais isolada.
A Biblioteca Itinerante do Ruy percorre todas as freguesias do concelho há cerca de quatro anos. Distribui, gratuitamente, livros e revistas mas faz muito mais do que isso: é a companhia de quem, muitas vezes, não tem com quem conversar. “Somos o ombro amigo e o desabafo de pessoas que, em muitos casos, estão à mercê delas próprias”, afirma Ju Oliveira. Licenciada em biblioteconomia, afirma estar muito satisfeita com o balanço do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido. “Há pessoas que nunca tinham lido um livro, e que agora não dispensam esse prazer. Actualmente reparo que, ao contrário do que se pensa, é nas aldeias mais afastadas que se encontram os maiores e mais apaixonados leitores”, sublinha.
A primeira cliente da Biblioteca do Ruy chama-se Maria José e tem 69 anos. A cada 15 dias dirige-se à biblioteca móvel para entregar o livro já lido e levar outro consigo. Foi a mãe que, ao longo do seu crescimento, lhe incutiu hábitos de leitura. Era também cliente assídua das antigas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, que ajudavam a ocupar o tempo numa altura em que não havia electricidade nem televisão. O seu escritor favorito é o jornalista José Rodrigues dos Santos. “A Vida num Sopro”, do mesmo autor, é o livro que lhe traz melhores recordações.
“Gosto muito de romances. Esse transportou-me para o fogo dos anos em que se constituiu o Estado Novo”, afirma Maria José. Um novo romance é-lhe entregue por Ju Oliveira. Um livro com cerca de 500 páginas, intitulado “O Prisioneiro do Céu”, de Carlos Ruiz Záfon. “A literatura treina-se, dá-nos confiança e cultura geral. Sinto-me bem por saber que posso falar com qualquer pessoa, sobre o que quer que seja”, afirma, com convicção.

“Ocupo o meu tempo a tratar
da casa e a ler”
Uma hora depois, a viatura segue o seu percurso até à aldeia vizinha do Semideiro. Dentro da carrinha há cerca de uma centena de livros e revistas para todos os gostos: romances históricos, policiais, literatura estrangeira, portuguesa, e livros sobre a história do concelho da Chamusca.
No Semideiro, a biblioteca estaciona à porta de casa de Felisbela Jesus. Faladora por natureza, diz ao repórter que não pode perder muito tempo na conversa porque tem o almoço ao lume. Aos 78 anos, afirma que ler é a coisa que mais gosta de fazer. Acabou de “devorar” em apenas 15 dias “O Mistério do Infante Santo” e a “Traição de D. Manuel”, dois romances históricos com mais de 400 páginas cada um. “Não vejo televisão. Ocupo o meu tempo a tratar da casa e a ler”, explica.
O marido, José, com quem Felisbela partilha a vida há mais de 50 anos, não sabe ler. Felisbela já tentou ensiná-lo por diversas vezes, mas nunca foi bem-sucedida. “Já desisti. Burro velho não aprende linguagem”, diz, em jeito de brincadeira. O almoço ao lume obriga-a a voltar para dentro de casa. Nas despedidas garante que a leitura vai continuar a fazer parte da sua vida porque, diz, só quer parar de viajar quando morrer.
Antes da partida para Ulme, há mais quatro paragens no Semideiro. Ju Oliveira não tem dúvidas ao afirmar que esta é a aldeia do concelho com mais hábitos de leitura.

“Ler também é brincar”
Todo o percurso da carrinha do Ruy foi realizado debaixo de chuva e vento forte. As condições pioraram na chegada a Ulme, assim que a biblioteca móvel estacionou junto à igreja. Quando Ju Oliveira e Ana Caranguejeiro se preparavam para arrumar os materiais, chegam os últimos clientes. Cândida Rodrigues e Salvador Prates, mãe e filho, são um bom exemplo de como os livros são, para além de ferramentas de conhecimento, uma forma de unir famílias.
Todas as noites, antes de adormecer, Salvador senta-se com a mãe a ler, num momento que é único, pessoal e intransmissível. “Ler também é brincar. Só que é brincar com palavras”, afirma Cândida Rodrigues. Salvador tem a timidez própria de um menino de 10 anos, mas quando fala não mente. “Gosto mais de jogar à bola do que de ler, mas a leitura é importante para eu ter boas notas”, conclui, roubando um sorriso a todos os presentes.
A manhã passou a correr. Entre muitas conversas e bons momentos, impossíveis de relatar na sua totalidade por questões de espaço, a frase de despedida de Ju Oliveira traduz, de forma incontestável, a importância de existirem mais iniciativas como esta na região ribatejana: “Não há sentimento melhor do que estarmos a trabalhar para enriquecer o espírito das pessoas”.

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