Ana Catarina: a melhor do mundo que aos 13 anos já jogava com mulheres de trinta
A melhor guarda-redes de futsal do mundo chama-se Ana Catarina Pereira e é natural de Vila Franca de Xira. Aos 28 anos, tem uma mão cheia de títulos pelo Sport Lisboa e Benfica, mas não esquece a passagem pelo Vilafranquense, onde considera ter tido os melhores tempos da sua vida. A família é o seu porto seguro e é nela que vai buscar motivação para continuar a trabalhar para promover a modalidade e lutar para que as mulheres consigam mais visibilidade no mundo do desporto. Em entrevista a O MIRANTE confessa o orgulho nas suas origens e nas amizades que ainda cultiva com carinho.
O que mudou na tua vida desde a conversa com O MIRANTE, há cinco anos?
Tenho mais títulos nacionais pelo Sport Lisboa e Benfica, fui considerada duas vezes a melhor guarda-redes de futsal do mundo, e sou sócia, com o meu pai, de uma empresa de electricidade e manutenção industrial em Vila Franca de Xira.
E a nível pessoal?
Esse é o aspecto onde mais evoluí! Sinto-me mais crescida e com uma capacidade diferente de olhar para o mundo. Não sou tão impulsiva na altura de reagir; no fundo, sinto que me formei como mulher.
O que é preciso para ser a melhor do mundo?
É uma consequência natural do trabalho. Há pessoas que acham que conseguem chegar ao topo sem sacrifícios, mas estão erradas. Digo muitas vezes às atletas mais jovens que, para atingirem níveis superiores, vão ter de sofrer, chorar e perder a cabeça. Já cheguei a jogar com os dedos das mãos partidos, por exemplo. A nível psicológico, é preciso aprender a engolir sapos e a lidar com injustiças.
A dedicação ao desporto roubou-te parte da juventude?
Sem dúvida. Recusei muitas saídas à noite e muitos passeios com amigos. As tardes de cinema e as festas de aniversário eram o que mais custava abdicar. Os meus amigos chateavam-se comigo por estar sempre a dizer “não posso porque tenho jogo”. No caminho para o sucesso é inevitável desiludir as pessoas de quem mais gostamos.
Como recebeste a notícia de teres sido considerada a melhor do mundo?
Estava numa mercearia em Alhandra a comprar pão. Soube através das redes sociais e comecei a saltar e a correr dentro do supermercado. Se calhar não era preciso tanto espalhafato, mas eu tenho as emoções à flor da pele. Liguei à minha família e a minha avó e o meu pai choraram.
Houve tempo para festejar?
Assim que cheguei ao estádio da Luz comecei a trabalhar para voltar a ser a melhor no próximo ano, algo que nenhuma atleta conseguiu. As únicas situações que me retiram do foco são as entrevistas ou as mensagens e partilhas nas redes sociais.
Que relação tens com as redes sociais?
São muito importantes para a promoção do futsal feminino. Não as utilizo para divulgar o meu nome, mas, se isso for necessário, faço-o em prol de todas as outras atletas que trabalham para colocar o futsal feminino no mapa.
Lidas bem com o teu ego?
Os meus pés estão colados ao chão porque esta conquista só me traz mais responsabilidades. A pressão sou eu que a coloco aos ombros, através da autocrítica. O que os outros pensam de mim não me interessa, com a excepção da minha família que tem acompanhado a minha evolução desde que comecei a praticar a modalidade.
Estás preparada para perder?
Não trabalho para perder, mas sei que um dia vai acontecer. Estou a caminho de conquistar o tetracampeonato, mas o sucesso é efémero. O segredo é tentar retardar ao máximo que esse dia chegue e para isso é preciso manter a fome de ganhar. Gosto de ser competitiva em todos os aspectos da minha vida.
Essa postura tem consequências na vida pessoal?
Tinha, mas actualmente já não. Costumo dizer que mais do que saber conquistar uma relação, é fundamental aprender a sair dela quando as coisas não fazem sentido. Às vezes é melhor deixar ir, sem forçar. No desporto as coisas também funcionam desta forma.
“FOI A BALIZA QUE ME ESCOLHEU”
Quando nasce a paixão pelo futsal?
Primeiro nasceu a paixão pelo desporto. Andava sempre com a bola nos pés, mas também pratiquei atletismo, natação e basquetebol. Aos 12 anos fui treinar ao Vilafranquense, fiquei apenas um ano, mas foi dos melhores anos da minha vida porque diverti-me a sério.
Ainda cultivas amizades desse tempo?
Sim e jogo contra muitas das minhas amigas. Naturalmente que fui construindo mais amizades em Lisboa, porque passo aqui mais tempo, mas o meu melhor amigo é o José Morgado, que é de Vila Franca de Xira e é jornalista.
A família sempre apoiou?
Os meus pais sempre me transmitiram valores e princípios que considero serem indispensáveis numa pessoa. Recordo uma frase que ainda hoje me acompanha: “Tens que ser quem tu quiseres ser”. Isso dá-me uma confiança enorme para encarar o dia-a-dia.
A posição de guarda-redes é ingrata. Porque a escolheste?
Não fui eu que a escolhi, foi a baliza que me escolheu a mim. Tenho uma relação muito especial com ela desde início, embora tenha começado por jogar como avançada. Ou sou herói ou sou vilã, e gosto desse desafio. Na minha vida pessoal e social também gosto de ser protectora; as pessoas mais próximas costumam chamar-me de sindicalista (risos).
Como chegaste ao Benfica?
Nuns torneios de Verão estava lá a treinadora do Benfica, que me viu jogar e gostou de mim. Fui chamada para desempenhar o papel de quarta guarda-redes, sem possibilidade nenhuma de jogar. Ainda assim fiquei, tendo estado quase dois anos sem “calçar as luvas”. Fui incluída na equipa sénior e partilhava o balneário com mulheres com mais de 30 anos. Sentia-me minúscula lá dentro, mas no campo não tinha medo de sair aos pés delas, nem de as “varrer”.
És a jogadora com mais anos de casa. O que significa representar o Benfica?
Ao início sentia um orgulho enorme, quase eufórico, por representar o clube do meu coração e de toda a minha família. Hoje em dia é mais comedido, porque sinto-me verdadeiramente em casa.
Eras capaz de representar outro clube em Portugal?
Dificilmente, a não ser que exista alguma proposta irrecusável, uma vez que não somos profissionais, o que considero injusto. Temos as melhores do mundo, os melhores clubes do mundo, e somos vice-campeãs da Europa. Se conseguimos tudo isto como atletas amadoras, imagina se fossemos profissionais.
Já jogaste no estrangeiro. Gostaste da experiência?
Joguei na Lazio de Roma, em Itália. Vou recordá-la como uma experiência espectacular e que recomendo a todas as pessoas, mas a nível de futsal deixou muito a desejar. Os treinadores eram fraquinhos e o futsal era mal jogado. A melhor parte foi a cidade de Roma, que é incrível. Tento lá ir todos os anos.
A Selecção Nacional foi um sonho realizado?
É a cereja no topo do bolo! É o sentimento incrível de representar o futsal feminino por inteiro; é a emoção de cantar o hino e ver os meus pais nas bancadas, igualmente emocionados, a cantar também. Não há muitas palavras que descrevam esse sentimento.
As mulheres estão a conseguir mais protagonismo no mundo do desporto?
Penso que sim. Há mais vontade de fazer barulho e de acompanhar os movimentos feministas que lutam pelos direitos de igualdade de género. Infelizmente somos obrigadas a fazer o dobro do que os homens fazem para sermos reconhecidas. Mas não choro por causa disso: vou à luta e faço a minha parte.
Tens alguma história no futsal que gostasses de partilhar?
São tantas que é difícil escolher. Os momentos no balneário são especiais, porque conversamos, brincamos, e desabafamos sobre os nossos problemas. Conheci o mítico guarda-redes João Benedito, que me manda mensagem nos meus aniversários. Mas, essencialmente, o futsal deu-me duas grandes amizades: as minhas colegas, e capitãs de equipa, Inês e Sara. As medalhas, feitas as contas, valem só para enfeitar o quarto.
“Passava as aulas a pensar nos jogos”
Ana Catarina tem orgulho em ser ribatejana. Nasceu em Vila Franca de Xira mas grande parte da sua infância e adolescência viveu-a no Sobralinho. Há cerca de seis anos mudou-se para Alhandra, onde vive com a mãe e com a avó, embora tenha uma relação igualmente próxima com o pai e com a irmã mais nova. Estudou na Escola Básica 2/3 Soeiro Pereira Gomes, e na Secundária Reynaldo dos Santos, em Vila Franca de Xira. Afirma que nunca teve interesse em ser uma grande aluna: “A professora de Matemática dizia à minha mãe que se o quadro estivesse na rua eu prestaria mais atenção às aulas. Tinha sempre a cabeça a imaginar lances nos jogos que ia ter no fim-de-semana”.
Na universidade aventurou-se no curso de Finanças Empresariais mas depressa percebeu que não era por aí o caminho. Este ano, vai regressar aos estudos para frequentar o curso de Gestão do Desporto, na Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa. Ser jogadora de futsal, sócia de uma empresa e estudante, tudo ao mesmo tempo, desgasta, mas como o faz com paixão torna-se mais fácil.
Nos tempos livres gosta de ler, ver filmes e séries, ouvir música e correr na zona ribeirinha de Vila Franca de Xira. Sobre o concelho, acha que está a evoluir positivamente, embora aponte o estado degradado de alguns edifícios históricos como um aspecto a melhorar.