Muitas absolvições em crimes de violência doméstica resultam do silêncio das vítimas
Raquel Rolo é juíza na Instância Central Criminal do Tribunal Judicial de Santarém
Raquel Rolo, 41 anos, é juíza de Direito na Instância Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém. Mulher e mãe, não esconde que os crimes sexuais, sobretudo quando envolvem menores, são os que mais lhe custam julgar. Numa entrevista a propósito do Dia da Mulher, a magistrada revela que mais do que o género, a questão da idade dificulta a afirmação no início da carreira de juíza.
Temos uma ministra da Justiça e uma Procuradora-Geral da República, podemos dizer que começa a haver uma justiça no feminino?
Só a partir do 25 de Abril é que pudemos candidatar-nos a este tipo de posição. Até então não existiam magistradas. Neste momento somos a larga maioria. No Supremo Tribunal de Justiça ainda estamos em minoria e a presidir tribunais judiciais ainda não tivemos nenhuma mulher mas estamos a começar a chegar a lugares cimeiros. Temos uma associação de juízas portuguesas que reivindica muito as questões da igualdade.
Há muitas desigualdades na sua profissão?
Temos salários iguais, obrigações iguais e a distribuição de serviços é absolutamente igualitária, assim como os nossos direitos e deveres. As discrepâncias têm a ver com o acesso aos tribunais superiores, onde realmente não há igualdade. Mas na União Europeia são escassos os países onde existe uma supremacia feminina nestes tribunais. Existe na Suécia, na Noruega, na Moldávia e na Roménia, são situações pontuais. Também lá chegaremos, tudo leva o seu tempo.
Desde sempre a Justiça é representada pela figura de uma mulher…
Tem a ver com a sensibilidade. Mas a justiça é sobretudo equilíbrio, daí a balança. Ainda hoje [8 de Março, Dia da Mulher] foi publicado o resultado de um estudo feito a pedido da Associação Sindical dos Juízes Portugueses que revela que as decisões judiciais em crimes de violência doméstica ou de natureza sexual não têm quaisquer expressões discriminatórias em função do género do juiz, arguido e vítima, o que mostra que estas ideias que discutimos são por vezes mitos da opinião pública.
Quando se trata, por exemplo, de crimes sexuais, a forma de os encarar não difere entre homens e mulheres?
Trabalho exclusivamente em colectivo de juízes, no crime, desde 2014. Somos sempre um grupo de três juízes onde há homens e mulheres. Trabalhamos com processos-crime com penas de prisão superiores a cinco anos, alguns com algum mediatismo e com peso na opinião pública. Temos três sensibilidades diferentes, que advêm da questão do género, mas também da forma como e onde fomos criados, das nossas convicções e convivências. É neste exercício de equilíbrio que ajustamos a pena.
Onde nota mais divergências?
Num homicídio, por exemplo, a pena pode ir dos 12 aos 25 anos. É uma margem muito grande. Há muitos critérios a considerar. Noto mais divergências na questão da idade e da experiência do que do género. No início da carreira temos tendência para aplicar penas mais pesadas, porque os crimes nos chocam muito. À medida que vamos ganhando experiência começamos a perceber melhor a nossa intervenção vocacionada para a ressocialização. Queremos inserir na sociedade o indivíduo que cometeu o crime.
Nota diferenças no comportamento das partes e testemunhas quando respondem a um juiz ou a uma juíza?
Aí sim. Mas a questão da idade também está sempre presente. Noto que é mais fácil a um colega homem afirmar-se logo no início da carreira. Há muito a tendência para sermos vistas como umas miúdas, que estão ali cheias de autoridade e que podem saber muito de Direito, mas não sabem nada da vida. Não é bem assim, mas cabe-nos a nós mulheres quebrar esse estereótipo. Tenho dado formação no CEJ (Centro de Estudos Judiciários) e muitas vezes o que digo às magistradas estagiárias é para nunca se afirmarem pelo grito, nem pelo histerismo, isso é o pior que pode acontecer a uma mulher. É preciso manter um tom calmo e sossegado.
Nunca perdeu a cabeça?
Acho que perdi a cabeça para aí duas vezes, mas nunca gritei. Peguei na minha agenda e bati com ela na mesa. Se a ideia é sermos pessoas que estão a pacificar um conflito, não vamos ser nós a perder a razão.
E em relação aos advogados?
Há senhores advogados que são pessoas muito urbanas, muito educadas e que respeitam, mas há também aqueles com uma experiência profissional enorme e que nem sempre abordam os juízes em início de carreira da melhor forma, e as juízas em particular. Temos que dar-nos ao respeito.
Que crimes lhe custam mais julgar?
Os crimes sexuais, confesso. Em Santarém temos imensos casos de abusos sexuais de crianças, são para mim os mais penosos. São vítimas que não têm voz. Quando não se consegue fazer justiça ainda é mais frustrante. Há crianças que não se conseguem explicar, o que gera dúvidas sobre o que realmente aconteceu e, na dúvida, não se pode condenar.
O que também acontece nos crimes de violência doméstica...
Em Santarém a maior parte das absolvições em crimes de violência doméstica tem a ver com o silêncio das vítimas. Silêncios deliberados. A violência doméstica é transversal a todos os estratos sociais e o perfil da vítima é muito idêntico. O relato titubeante e o não conseguir descrever com rigor certos episódios. A espiral de violência a que são sujeitas baralha-as de tal forma que é indiferente tratar-se de uma vítima com a 4ª classe ou com um curso superior. A dificuldade de expressão em tribunal é a mesma. Ficam presas entre o que aconteceu e o que querem acreditar que aconteceu.
Nos casos em que há dificuldades económicas as mulheres estão mais vulneráveis?
Sim. Muitas vezes porque elas próprias o permitem. Continuam dependentes das opiniões e das decisões dos companheiros e a aceitar um determinado tipo de violência. Tive um processo de violência doméstica e lenocínio, de Abrantes, em que o arguido, além dos abusos sexuais à própria filha, convenceu a companheira a prostituir-se para terem dinheiro. Ela fazia-o, à beira da estrada, e ele controlava. Obrigava-a a ligar-lhe antes e depois de estar com um cliente, para ter ideia do tempo que demorava. Se achasse que era tempo demais batia-lhe, porque considerava que ela tinha gostado. Um horror. O indivíduo foi preso e reatou relações com uma ex-namorada. Quando lhe perguntei se também ela tinha sido vítima de violência doméstica, respondeu: “Um ‘enxota-moscas’ de vez em quando não digo que não”. É difícil combater esta normalização da violência.
Consegue dormir depois de uma decisão difícil?
O importante, como em qualquer outra profissão, é ter a consciência tranquila. Por vezes as decisões são difíceis porque uma coisa é a verdade e outra é a verdade processual. Nunca se sabe rigorosamente tudo. Dentro do que sabemos tentamos tomar a melhor decisão. Claro que há situações que mexem connosco. As pessoas recorrem ao tribunal como último recurso. O que vemos são as fragilidades, a dor, o sofrimento, as atrocidades. Mas também temos noção de que a nossa intervenção é importante para que essa violência não se perpetue e para reparar, da forma possível, os danos causados.
A justiça funciona?
Sim, funciona, mas tem um tempo próprio que é muito diferente daquele da sociedade em que vivemos, imediatista, onde as respostas se querem para ontem. Na justiça tem que haver ponderação, calma e ouvir todas as partes. Por vezes há falta de informação e aí a culpa é um bocadinho nossa, que temos uma linguagem bastante hermética e uma forma de comunicar que nem sempre funciona.
A pandemia fez aumentar os casos de violência sobre crianças, mulheres e adultos vulneráveis?
O problema da pandemia tem a ver com o confinamento. Algumas vítimas estão fechadas em casa com o próprio agressor, 24 sobre 24 horas, o que torna os conflitos mais latentes. E a pandemia também agravou a situação económica, outro dos motivos que leva à violência.
Que desafios enfrenta uma mulher juiz na sua rotina de trabalho?
Há vantagens e desvantagens no exercício da função da magistratura. Uma das desvantagens é termos que nos privar de alguma liberdade de expressão e termos que ter alguma reserva na nossa vida privada e na nossa forma de estar. Mas depois temos uma grande vantagem, que é a independência. Se respeitarmos o Direito estamos à vontade para decidir de forma livre. Na vida familiar também temos que fazer essa gestão, o que por vezes é difícil. São muitas madrugadas de trabalho para se poder estar com o marido e os filhos ao fim do dia. A grande vantagem é que se trata de uma carreira com uma grande estabilidade.